quarta-feira, 9 de maio de 2018

Gaudete et Exsultate - Capítulo II: dois inimigos sutis da santidade


Tendo em vista a experiência cristã que somos chamados a viver nos dias de hoje, descrita, mais adiante, no 4º capítulo da mesma Exortação, o papa Francisco nos alerta para duas sutis ameaças à sua autenticidade evangélica: o fechamento sobre si mesmo e sobre suas próprias ideias e o empenho em realizar seus próprios projetos segundo planos, estratégias ou organizações por nós elaborados.
Designa essas duas tentações como agnosticismo e pelagianismo, que têm em comum a confiança em nós mesmos. O papa Francisco sublinha que em ambas apegamo-nos a nossos ideais e aos caminhos que escolhemos para realizar nossos projetos sociais e pastorais, esquecendo-nos de que a vida e a ação cristãs não têm outro caminho senão acolher e cultivar, em nossa vida, o Espírito de Jesus, que é graça e dom de Deus.  

Francisco Catão

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Percorrendo o texto:

Desejo chamar a atenção para duas falsificações da santidade que nos poderiam extraviar: o gnosticismo e o pelagianismo. São duas heresias que surgiram nos primeiros séculos do cristianismo, mas que continuam a ser de alarmante atualidade. Nelas aparece um imanentismo antropocêntrico, disfarçado de verdade católica. Em primeiro lugar conta verdadeiramente o eu, nem Jesus Cristo nem os outros interessam. [Nº 35]

O gnosticismo atual
O gnosticismo supõe «uma fé fechada no subjetivismo, onde apenas interessa uma determinada experiência ou uma série de raciocínios e conhecimentos que supostamente confortam e iluminam, mas, em última instância, a pessoa fica enclausurada na imanência da sua própria razão ou dos seus sentimentos» [Nº 36]
Ao longo da história da Igreja, ficou claro que o que mede a perfeição das pessoas é o seu grau de caridade, e não os conhecimentos que possam acumular. Os «gnósticos» concebem uma mente sem encarnação, incapaz de se interessar pelos outros. Preferem «um Deus sem Cristo, um Cristo sem Igreja, uma Igreja sem povo». [Nº 37]
Isto pode acontecer dentro da Igreja, tanto entre os leigos das paróquias como entre aqueles que ensinam filosofia ou teologia nos centros de formação. É típico dos gnósticos crer que, com as suas explicações, podem tornar perfeitamente compreensível toda a fé e todo o Evangelho. [Nº 39]
O gnosticismo é uma das piores ideologias, pois [...] considera que sua própria visão da realidade suplanta tanto o mistério de Deus e da sua graça, como o mistério da vida dos outros [...] Mesmo quando a vida de alguém tiver sido um desastre, mesmo que o vejamos destruído pelos vícios ou dependências, Deus está nele presente. [Nº 40-42]
Mal chegamos a compreender a verdade, e ainda com maior dificuldade, expressá-la. Por isso, não podemos pretender que osso modo de entender nos autorize a exercer um controle rigoroso sobre a vida dos outros. [Nº 43]
Na Igreja, convivem legitimamente diferentes maneiras de interpretar muitos aspetos da doutrina e da vida cristã, que, na sua variedade, ajudam a explicitar melhor o tesouro riquíssimo da Palavra [...] São Francisco de Assis [...] reconheceu a tentação de transformar a experiência cristã num conjunto de especulações mentais, que acabam por nos afastar do frescor do Evangelho. [Nº 43-46]

O pelagianismo atual
O gnosticismo deu lugar a outra heresia antiga, que está presente também hoje [...] O poder que os gnósticos atribuíam à inteligência, alguns começaram a atribuir à vontade humana, ao esforço pessoal. Surgiram, assim, os pelagianos. Já não era a inteligência que ocupava o lugar do mistério e da graça, mas a vontade. [Nº 47-48]
Quem se conforma a esta mentalidade embora fale da graça de Deus com discursos edulcorados, «no fundo, só confia nas suas próprias forças e sente-se superior aos outros por ser irredutivelmente fiel a um determinado estilo de ser católico» [...] Costumam transmitir a ideia de que tudo se pode com a vontade humana [...] a que se acrescenta a graça. [Nº 49]
A falta dum reconhecimento sincero, pesaroso e orante dos nossos limites é que impede a graça de atuar melhor em nós [...] se não reconhecemos a nossa realidade concreta e limitada, não poderemos ver os passos reais e possíveis que o Senhor nos pede em cada momento. A graça atua historicamente e vai nos transformando de forma progressiva. Se recusarmos esta modalidade histórica e progressiva, podemos chegar a negá-la e bloqueá-la, embora a exaltemos com as nossas palavras. [Nº 50]
A Igreja ensinou repetidamente que não somos justificados pelas nossas obras ou pelos nossos esforços, mas pela graça do Senhor que toma a iniciativa [...] Só a partir do dom de Deus, livremente acolhido e humildemente recebido, é que podemos cooperar com os nossos esforços para nos deixarmos transformar cada vez mais [...] Só a caridade torna possível o crescimento na vida da graça, porque, «se não tiver amor, nada sou». [Nº 52-56]
Ainda há cristãos que insistem em seguir outro caminho: o da justificação pelas suas próprias forças [...] com muitas atitudes aparentemente diferentes entre si: a obsessão pela lei, o fascínio de exibir conquistas sociais e políticas, a ostentação no cuidado com o prestígio da Igreja, a vanglória ligada à gestão de assuntos práticos, a atração pelas dinâmicas de autoajuda e realização autor referencial. [Nº 57]
Sem nos darmos conta, pelo fato de pensar que tudo depende do esforço humano canalizado através de normas e estruturas eclesiais, complicamos o Evangelho e nos tornamos escravos dum esquema que deixa poucas aberturas para que a graça atue. [Nº 59]
Para evita isso, é bom recordar a primazia das virtudes teologais, que têm Deus como objeto e motivo, em cujo centro, está a caridade [...] Em meio à selva de preceitos e prescrições da Lei, Jesus abriu uma brecha, que permite vislumbrar dois rostos: o do Pai e o do irmão. Não nos dá mais dois preceitos, entrega-nos dois rostos, ou melhor, um só: o de Deus que se reflete em cada irmão, especialmente nos mais pequenos, frágeis, inermes e necessitados. [Nº 60-61]
Que o Senhor liberte a Igreja das novas formas de gnosticismo e pelagianismo que a complicam e detêm nosso caminho para a santidade! Exorto cada um a se questionar e a discernir diante de Deus a maneira como possam manifestar o amor em sua vida. [Nº 62]
Jornal "O São Paulo", edição 3195, 18 a 24 de abril de 2018.

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