terça-feira, 20 de março de 2018

Celebrando o dia da Mulher

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte

Angela Vidal Gandra Martins é Doutora em Filosofia do Direito (UFRGS)/ Sócia Advocacia Gandra Martins/Membro da Academia Brasileira de Filosofia.

A celebração do dia da Mulher é sempre uma ocasião de reflexão sobre o seu papel e o motivo pelo qual é destacada.... De fato, não há o dia do homem.... Há, portanto, uma diferença antropológica natural, ainda que goze da igualdade de direitos e oportunidades devida a cada ser humano.
Pensando no que queria compartilhar em torno desse dia, deparei-me com um texto de Fulton Sheen, filósofo americano muito profundo, mas prático, que, embora longo, gostaria de transcrever: “Imagine uma orquestra no palco diante de um maestro famoso que regerá uma linda sinfonia composta por ele mesmo. Cada membro da orquestra é livre para seguir o maestro e assim contribuir para a harmonia. Mas cada membro é também livre para desobedecer ao maestro. Suponha que algum dos músicos deliberadamente toque uma nota falsa e induza a violinista ao lado a fazer o mesmo. Ouvindo o desafino, o maestro poderia seguir duas alternativas: levantar a batuta e ordenar que recomeçassem a tocar ou ignorar o acorde destoante. De qualquer forma, sua atitude não faria nenhuma diferença visto que aquele acorde já foi para o espaço atingindo uma altura de mil e cem pés por segundo, seguindo adiante e afetando a infinitesimal pequena radiação do universo. Como uma pedra caída no lago causa uma ondulação que afeta a mais distante zona costeira, esse acorde afeta até mesmo as estrelas...Em algum lugar nesse universo de Deus soará essa desarmonia”.
Como a filosofia deseja estudar o mais profundo do ser, é óbvio que deve abrir-se à realidade tal como é intrinsecamente - the way things are -, como expressa o jusfilósofo Lon Fuller. Nesse sentido, li também recentemente uma narrativa em um periódico australiano que contava a história em quadrinhos de um pato que quis fazer uma operação para tornar-se ganso...
Partindo desses exemplos gráficos como inspiração, pensava em como a sociedade poderia ser se a mulher vivesse como tal; fosse respeitada como tal; amasse como tal;  vivesse seu destino antropológico maternal como tal; se lhe fosse totalmente permitida a prestação de sua original contribuição profissional em harmônica somatória de luzes; se se fizesse valer pelo que é, sem comparações e oposições, mas sim através da afirmação e maximização de sua unicidade  feminina..., ou seja, se cada mulher se decide a viver com profundidade seu papel na sinfonia sendo simplesmente e totalmente mulher e  trazendo sonora harmonia a toda sociedade através de sua contribuição única...
Utopia? Definitivamente não, já que a força da natureza - a força do ser! - é infinitamente maior do que a do não ser. Parabenizo, portanto a cada mulher por suas lutas positivas, convidando também a cada uma, e também a toda comunidade masculina, a refletir em como vivem - identidade -, e oferecem o espaço - reconhecimento - para que cada mulher seja cultivada e possa se realizar plenamente como tal, de forma que seus acordes harmonizem novamente a sociedade ecoando perenemente através do espaço e dos tempos.
Jornal "O São Paulo", edição 3190, 14 a 20 de março de 2018.

Cinco anos do Papa Francisco


Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs.

Gestos, visitas e ações que valem uma encíclica. Esta poderia ser uma fórmula sintética de sublinhar os cinco anos do pontificado do Papa Francisco. Eleito à Cátedra de Pedro no dia 13 de março de 2013, Jorge M. Bergoglio, a bem dizer, logo passou a usar uma linguagem de sabor popular, com os pés no chão e as mãos estendidas. Gestos simbólicos, sem dúvida, mas sobretudo marcados pela presença de um pastor fortemente temperado por uma espiritualidade radicada na Palavra de Deus e na comunhão com o próximo.
Mas o contrário também é verdadeiro: um voo de pásaro às cartas encíclicas Lumen Fidei (2013) e Laudato Si’ (2015), bem como à exortação apostólica Evangelii  Gaudium (2013) ou a seus discursos e mensagens em geral, bastará para dar-se conta que seus escritos costumam ser tão simples quanto profundos, tão concretos quanto um olhar, um toque, um abraço, um ouvido atento, uma presença amiga. Vem à tona a figura evangélica do bom pastor que conhece suas ovelhas e estas conhecem sua voz (Jo 10,1-21).
Na prática do pontífice, os relatos evangélicos e a Boa Nova de Jesus Cristo possuem primazia absoluta, tanto em seu modo de falar quanto em seu modo de agir. Como o Mestre, sabe comunicar-se com as multidões – na Praça São Pedro, em Roma, ou nas visitas pelos diversos países – mas, ao mesmo tempo, é capaz de deter sua caravana quanto alguém grita por “compaixão” (episódio dos dez leprosos – Lc 17,11-19) ou o  “toca” de mais perto (mulher que sofre de fluxo de sangue – Mc 5, 25-34), porque o desespero é maior.
Por outro lado, a familiaridade com o Evangelho leva o Papa Francisco a igual vizinhança com os mais necessitados. A esse respeito, alguns gestos marcaram de forma particular a sua ação. No campo das migrações, por exemplo, visita as ilhas de Lesbos (Grécia) e Lampedusa (Itália), além da fronteira entre México e Estados Unidos. Acolhe em sua casa e em sua mesa o povo da rua. Tem visitado hospitais, casas de refugiados e presídios, inclusive lavando os pés dos prisioneiros. Manifesta um carinho especial para com doentes, as crianças e pessoas aflitas, chegando a telefonar-lhes ou responder suas cartas.
Uma volta às fontes! Talvez esteja seja uma outra forma de resumir o pontificado do Papa Francisco. Fontes entendidas aqui como a novidade do Evangelho, a Doutrina Social da Igreja e a situação concreta em que vive e se move a população mais pobre e indefesa. Daí sua insistência em passar da “globalização da indifereça e da economia que mata” à “cultura da solidariedade”.
Jornal "O São Paulo", edição 3190, 14 a 20 de março de 2018.

Liberdade de escolha e dilemas éticos


Elis Lavanholi é bacharel em Tradução - Línguas Inglesa e Espanhola.

A paixão pela liberdade é um aspecto muito positivo da cultura contemporânea. Afinal, se não fôssemos livres, não poderíamos amar. A liberdade, bem orientada, revela o melhor de cada um de nós.
Porém, a cultura contemporânea é também influenciada por correntes de pensamento que confundem a liberdade com uma espécie de impulso arbitrário. A lógica é simples: o prazer nos satisfaz, é útil; devemos honrar nossos desejos, pois somos livres.
Porém, é preciso refletir sobre as consequências das escolhas na vida pessoal e na vida social, pois o ser humano vive em sociedade. E nesse contexto de valorização da liberdade – mesclada com as máximas do individualismo e do hedonismo -  alguns temas presentes no debate público ganham contornos polêmicos e polarizados. Tudo depende da noção de liberdade de escolha.  

Afinal, a liberdade de escolha é soberana?

As pessoas, de modo geral, baseiam suas opiniões e escolhas nas informações disseminadas pela grande mídia. Os meios de comunicação, contudo, tendem a retratar os assuntos – quaisquer que sejam as suas nuanças - a partir de uma perspectiva dualista, binária e simplória: liberal versus conservador, flexível versus intolerante, vítima versus opressor. Além de inconsistentes, tais dicotomias negligenciam aspectos fundamentais para o entendimento da realidade.
Constata-se, por exemplo que no debate de temas como o aborto, o soberano argumento da “liberdade de escolha” desqualifica antecipadamente posições contrárias, como se essas fossem de per si intolerantes ou fanáticas. Os mais prejudicados por essa pobreza de argumentação são as próprias mulheres, até mesmo adolescentes, que carecem de informações precisas para tomarem decisões melhor fundamentadas, não precipitadas. As consequências físicas e psíquicas do aborto, para a mulher que o pratica, estão documentadas. O peso da cultura machista, o abandono, que pressiona e induz ao aborto, é fato notório, reforçado e facilitado pela legislação permissiva do aborto. A morte de seres humanos inocentes é real. Porém, não há debate. 
Outro exemplo ilustrativo é a discussão atual sobre pessoas transgêneras – i.e., que não se identificam com seu sexo biológico. Por um lado, há o argumento de que o indivíduo é livre para decidir o que fazer com seu corpo. Porém, a Universidade John Hopkins (Boston), que há vinte anos foi pioneira nessas cirurgias abandonou a prática. Por quê?  As mesmas trazem consequências físicas e psíquicas irreversíveis, e os distúrbios emocionais anteriores não eram aliviados por elas. Constatou-se alto índice de suicídio entre as pessoas que a elas se submeteram. Além disso, em se tratando de crianças, pesquisas científicas apontam que a maioria daquelas identificadas com “disforia de gênero” não continuam com o transtorno após a puberdade. Tais pesquisas e experiências mereceriam entrar no debate, mas de fato não é assim. Tudo se simplifica com o respeito à “liberdade de escolha”, inclusive a infantil. Será mesmo livre uma escolha tão mal informada? A sábia sentença evangélica adverte: “a verdade vos fará livres”.
Em suma: esquivar-se de pensar e prescindir da análise das consequências pessoais e sociais de uma escolha significa não desejar - de fato – a liberdade, e sim o exercício de um mero arbítrio irrefletido.  

Verdade e liberdade

A verdadeira liberdade pressupõe o acesso a informações e a oportunidade de uma reflexão fundamentada e ponderada sob os diversos ângulos, tão ricos, que a realidade humana oferece. A dignidade inerente à pessoa humana só é assegurada levando-se em conta seus aspectos biológico, psicológico, social e espiritual. E só seguindo essa pista a legislação poderá efetivamente promover o “bem comum”, isto é, aquele conjunto de condições que permitam e favoreçam o desenvolvimento integral da pessoa humana.  
São João Paulo II em sua memorável encíclica Fides et Ratio convidava todos a refletirem profundamente sobre o homem, e sobre a sua busca constante de verdade e de sentido. Só neste horizonte da verdade – dizia o Papa -  poderá compreender, com toda a clareza, a sua liberdade e o seu chamamento ao amor.

Sínodo Arquidiocesano de São Paulo: Urgências e Desafios da Missão na Grande Cidade.

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte

Pe. José Ulisses Leva é prof. da PUC SP.

A Cosmopolita São Paulo se recria e se reinventa cotidianamente. A Pauliceia desvairada enaltecida pelo paulistano e poeta Mário de Andrade se redescobre como universalista e pluralista todos os dias. No frenesi da efervescente cidade, a cada instante, surgem novos conceitos e novos valores, mas a megalópole não perde sua identidade, como lemos na famosa inscrição estampada no Brasão: “Non ducor, duco”. Assim, a cidade constituída através de uma Ermida e de um Colégio, por São José de Anchieta, no Planalto, se agiganta e mantém viva sua missão: Não sou conduzido, conduzo.
Como acompanhar o gigantismo e brilhantismo da cidade de São Paulo? Como senti-la plural, sem perder seu dinamismo e sua identidade? Essas perguntas podemos fazer, também, tendo como referência da Igreja de Cristo Jesus presente entre nós. O Jesuíta, São José de Anchieta, no dia 25 de janeiro de 1554, a quis edificada no Planalto alicerçada por um Colégio, mas, também, dedicada ao Apóstolo São Paulo. A cidade traz a Educação imbricada com o religioso; a Sociedade paulista está em simbiose permanente com a Igreja de Cristo Jesus.
Lembremo-nos que nosso Orago é o Apóstolo São Paulo, quando da Ereção Canônica da primeira Paróquia a ele dedicada, em 1591, criação da Diocese em 1745 e, posteriormente, Arquidiocese em 1908. O missionário anunciava Cristo Jesus nas cidades e utilizava linguagem urbana. Esteve nas praças e no Aerópago Ateniense. Esteve em Roma e também nas cidades portuárias. Procura conhecer o coração humano, suas querências e mazelas, para testemunhar o Ressuscitado. Não relutava o martírio, mas pregava firmemente até o fim o bom combate.  Combater hoje significa dialogar racionalmente com todas as gentes, porém, sem perder a dinâmica e o dinamismo da Fé.
No hoje da Metrópole Deus continua a se revelar e a dialogar conosco. Na barulhenta e movimentada cidade como falar, com quem falar e onde escutar o Altíssimo? Quais são os Aerópagos da grande cidade? Qual a linguagem que devemos ter para anunciar Jesus Cristo? Qual a metodologia que devemos empregar para testemunhar coerentemente o Ressuscitado? 
As pessoas querem a Igreja aberta e dialogante. Quantos ainda procuram a clareza e a precisão da Doutrina, contando sempre com a coerência e testemunho daquele que prega, para o empenho eficaz daquele que escuta. Na Cosmopolita e multifacetária São Paulo encontram-se pessoas que querem ouvir o Evangelho de Cristo Jesus. Elas se encontram no turbilhão do gigantismo da metrópole que muitas vezes seduz para o personalismo e individualismo.
Assim se comportava nosso Padroeiro São Paulo Apóstolo “Ai de mim se não evangelizar (1 Cor 9, 16). A missão se dá junto aos desafios, e eles sempre existiram e ainda persistem. Podemos assim dizer que é desafiante ser Cristãos e manter os Valores que são Eternos anunciados por Cristo Jesus. O Salvador nos indica a Ressurreição e nos fala no Mandamento do Amor, quer seja ele o mais próximo de nós ou o mais diferente de nós. O maior desafio é o outro, isto é, aquele que pensa diferente de nós, que anuncia diferente de nós, que se faz oculto e marginalizado, ou até aquele que nem mesmo quer saber da existência e transcendência de Deus.
Portanto, o desafio é sair de nós mesmos e dos nossos rigorismos teóricos e quando não inócuos. Precisamos nos lançar ao diferente dialogando, sem perder as conquistas bimilenares da Igreja.  Devemos sempre ocupar todos os espaços para anunciar o Evangelho de Jesus Cristo, proporcionando liberdade e Vida “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14, 6).
Jornal "O São Paulo", edição 3189, 7 a 13 de março de 2018.

Adeus a Germain Grisez, Longa Vida ao Direito Natural


Angela Vidal Gandra Martins é Doutora em Filosofia do Direito (UFRGS)/ Sócia Advocacia Gandra Martins.

No dia primeiro de fevereiro, perdemos o grande filósofo franco-americano, Germain Grisez. Apaixonado pela teoria de Tomás de Aquino, ainda que através de uma releitura própria, levantou questões essenciais sobre a natureza humana, seu agir e liberdade. E, como católico praticante, ao ritmo de “Fides e Ratio”, aprofundava na metafísica do ser, hoje e agora, secular, mais do bem do que do mal, como é próprio do ser que é uma afirmação e não uma negação, porém sem perder sua vocação à eternidade. Como escreveu por ocasião de sua morte, John Grondeslski, acadêmico americano que se inspirou em sua obra: que possa continuar sendo uma luz para os jovens pensadores que desejam empreender um sério trabalho intelectual para encontrar respostas satisfatórias para uma verdadeira “vida boa” sustentada por uma saudável ética social.
Grisez, desde que defendeu seu doutorado na Universidade de Chicago, sentia-se comprometido em auxiliar a comunidade acadêmica a refletir. Como comentou, em artigo recente, o jusfilósofo de Oxford, John Finnis:  desejava ajudar a descobrir o bem; o outro; a abertura à verdade e à própria fé.  Grisez, através de sua profissão e como filósofo, sentia-se responsável por servir e despertar o amor pelos verdadeiros valores éticos.
Ainda que não compartilhe de todas as suas posturas, admiro profundamente sua defesa da lei natural como denominador comum das relações sociais, base do autêntico pluralismo. De fato, falar hoje sobre uma lei natural como denominador comum da vida em sociedade evoca muitas vezes um posicionamento preconceituoso, desde o superficial politicamente incorreto, passando erroneamente pelo permissivismo naturalista ou identificando-o com uma postura religiosa.
Será possível que diferentes concepções possam conviver concordando sobre princípios provenientes de uma lei natural? Sim, pois compartilhamos uma mesma natureza. Ainda que praticamente 90% da vida em comunidade possa ser opinável, e dependa de decisões da maioria, há alguns pilares sobre os quais se edifica o diálogo, que devem ser respeitados, como por exemplo, o direito à vida, à liberdade ou à verdade: ninguém gostaria de instituir a mentira ou a infidelidade como regra de convivência social.... Por sua vez, os direitos deles provenientes não estão sujeitos à vontade arbitrária dos que governam, cabendo-lhes simplesmente reconhecê-los.
É nesse sentido tão prático que Grisez e outros filósofos que explicam o Direito Natural, aprofundaram nas bases teóricas e científicas que fundamentam as relações humanas e que demonstram também empiricamente o verdadeiro caminho para a felicidade, já preconizado desde Aristóteles, ainda que, hoje infelizmente, a prova é contrária, já que vivemos no século mais depressivo da história da humanidade por desafiar esses parâmetros naturalmente evidentes.
Como afirmou Bento XVI em sua iluminadora Encíclica Spes Salvi (n. 25) cada geração deve fazer sua própria contribuição para estabelecer estruturas convincentes sobre a liberdade e o bem, que possam auxiliar a próxima geração, como um guia orientativo para o uso adequado da liberdade humana. Dessa forma, sempre dentro dos limites humanos, oferecerão também uma certa garantia para o futuro. Grisez foi uma luz nesse sentido, ao promover os sábios limites positivos da natureza, como a aeronáutica respeita a lei da gravidade para voar cada vez mais alto. Que ele nos ajude a todos a entender melhor e sublinhar o que nos une como seres humanos para alavancar nossas relações pessoais e sociais, bem como um Direito justo, e assim poder efetivamente cruzar os céus sem limites.  
Jornal "O São Paulo", edição 3188, 28 de fevereiro a 6 de março de 2018.

A Igreja e a intervenção federal no Rio de Janeiro


Ivanaldo Santos é Filósofo, escritor e professor universitário.

O governo federal, por meio do presidente Michel Temer, e o governo do estado do Rio de Janeiro, por meio do governador Luiz Fernando Pezão, assinaram, em 16/02/2018, um decreto que determina, entre outras providências, a intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro. A intervenção federal no Rio de Janeiro foi aprovada pelo Congresso nacional, sancionada pelo presidente da república e ficará em vigor até 31/12/2018.
A intervenção federal no Rio de Janeiro é um dos temas mais debatidos atualmente nos meios universitários, intelectuais e nas redes sociais. Trata-se da primeira vez que esse dispositivo é utilizado. O governo federal, as forças armadas, os governos estaduais e municipais ainda estão se adaptando a essa nova realidade. Em muitos aspectos técnicos e jurídicos ainda existem muita coisa para esclarecer e resolver.
De um lado, a intervenção federal se justifica diante do caos vivido pelo Rio de Janeiro que ameaça se espalhar por outras regiões do país e diante dos graves problemas sociais causados pela falta de segurança, pela onda de violência que se alastra pelo Rio de Janeiro. Do outro lado, é necessário ter cuidado com o suo da intervenção federal. A intervenção não pode ser pretexto para o aumento da violência, para o uso do terror oriundo das estruturas de repressão pertencentes do Estado.
Diante da intervenção federal, o Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Orani João Tempesta, em entrevista concedida a BBC Brasil, afirmou que “eu não sou técnico para saber o que é melhor e o que não é. Temos que aguardar os resultados para verificar se foi bom ou não” e, por isso, é necessário esperar que tal intervenção “dê resultados” e convocou os cristãos a orarem para que “isso aconteça”.    
As palavras de prudência de Dom Orani João Tempesta apresentam o papel da Igreja diante da intervenção federal no Rio de Janeiro. De um lado, a Igreja não é um órgão técnico de segurança. Logo, não deve emitir juízos técnicos nessa área. Diante do caos vivido pelo Rio de Janeiro e que poderá se espalhar por amplos setores do país, talvez a mais sensata ação tenha sido decretar a intervenção federal. Do outro lado, a Igreja não pode ficar omissa diante de um fato tão grave, ela não pode se calar. A Igreja tem que clamar para que a dignidade humana de policiais, militares, de membros das comunidades pobres e, enfim, do cidadão comum seja respeitada e garantida. Nenhum cidadão – seja policial, morador de favela ou outra categoria – pode ter sua dignidade desrespeitada. Além disso, a Igreja tem o dever de lutar pela construção de uma cultura de paz que supere toda forma de violência, de terror e caos urbano. A Igreja precisa usar sua estrutura (paróquias, etc.) para criar uma consciência em favor da paz, da solidariedade e do respeito ao ser humano. Justamente o ser humano que tanto é o policial morto de forma covarde por bandidos como é o cidadão comum que é refém do caos urbano. Diante das incompreensões, do ambiente de radicalização política e das ideologias alienantes, a Igreja deve ser um oásis de paz. Ela deve anunciar Jesus Cristo, o Príncipe da paz, e, por isso, criar um ambiente de reconciliação social, de convivência entre todos os setores da sociedade e de reconstrução da vida urbana. Por incrível que pareça, o sucesso da intervenção federal depende de o sucesso da Igreja ser capaz de construir um espaço de paz, uma cultura de paz no Rio de Janeiro e que essa cultura se espalhe para o resto do Brasil.
Jornal "O São Paulo", edição 3189, 7 a 13 de março de 2018.

Um século da maior pandemia assassina da história: “a gripe espanhola” (1918-2018)


 Padre Léo Pessini

Toda vez que ocorre uma nova epidemia ou pandemia de qualquer vírus novo, com muita facilidade a população entra em pânico, quando não orientada responsavelmente pelo sistema público de saúde.  Retornam ao nível consciente medos atávicos de pestes que outrora dizimaram milhões de seres humanos.  O livro clássico do historiador francês Jean Delumeau História do medo no ocidente 1300-1800 (Companhia de Bolso, São Paulo, 2009), nos apresenta os três medos clássicos da história antiga e medieval, são (1) o mar (onde estão os monstros; (2) a escuridão, trevas (onde atuam os ladrões e assombrosos seres noturnos) e (3) as pestes (que ceifavam impiedosamente milhares de vidas). Estas três realidades não deixam ainda hoje de ser um perigo, mas em grande parte o ser humano com o conhecimento técnico científico se aparelhou para se proteger destes perigos. É provável que ainda o que mais assusta ainda hoje são as novas formas de pestes, as diferentes pandemias. Quando surge em algum ponto do planeta alguma nova epidemia desconhecida, o mundo fica em polvorosa, e ressurgem os velhos medos atávicos de extinção da humanidade.  É só lembrarmos o que ocorreu em relação a AIDS a partir de 1981, quando foi identificado o vírus HIV, que já ceifou a vida de mais de 30 milhões de seres humanos, sendo que temos em torno de 37 milhões de seres contaminados no mundo, dois terços dos quais na África subsaariana.  A tão prometida vacina para esta pandemia para o ano 200 ainda não chegou praticamente duas décadas depois, e o que hoje temos para combatê-la é tão somente o coquetel antirretroviral, que não cura mas ajuda a pessoa a viver com a doença. Infelizmente são poucos ainda os que tem acesso a esta medicação antirretroviral. No Brasil, temos em torno de 250 mil soropositivos, sore os 670 mil contaminados que recebem esta medicação do Ministério da Saúde gratuitamente. Na África o cenário é simplesmente desolador, pois praticamente não existe medicação.     
Mais recentemente tivemos na África Ocidental a epidemia do Ebola (2014), que veio causou muitas perdas humanas e materiais.  No Brasil, por ocasião do verão, volta sempre o temor do retorno de epidemias de dengue, zika e chikingunya.  Neste momento que redigimos este texto, o Brasil, especialmente o Estado de São Paulo, passa por uma onda epidêmica de Febre Amarela, com várias mortes comprovadas.  Neste mesmo momento, nos EUA, o que não acontecia há muito tempo, uma epidemia gigantesca de febre amarela colocou em alerta e em crise o sistema de saúde pública norte-americano, incapaz de socorrer a todos os vitimados pela epidemia de febre amarela.  Como vemos estamos diante de uma questão de saúde pública de primeira grandeza em nível global, para além dos limites geográficos de cada distinto país. Não existe barreiras geográficas que impeçam a expansão do vírus. Este não precisa de passaporte para entrar num outro país.
Este ano de 2018 marca o 100º aniversário da assim chamada maior pandemia de gripe da história humana, que ficou conhecida como “gripe espanhola”. Entre 50 e 100 milhões de pessoas morreram, aproximadamente 5% da população mundial e cerca de meio bilhão de pessoas ficaram infectadas. Esta pandemia fatal matou muito mais do que a Iª Guerra Mundial, que teria causado a morte de 9,6 a 15 milhões de vítimas. Nos Estados Unidos, por exemplo, em apenas um ano a expectativa média de vida caiu 12 anos, de acordo com estatísticas oficiais do governo americano. As perdas de vidas mais numerosas, foram de jovens adultos saudáveis, entre 20-40 anos, em vez de crianças e idosos, que geralmente são sempre os alvos mais fáceis e vulneráveis.
Ao longo do século XX, muitos historiadores e cientistas realizaram numerosos estudos e lançaram várias hipóteses a respeito de sua origem, disseminação e consequências. Muita coisa foi cientificamente esclarecida, mas nem tudo. Consequentemente, gerou-se muitos equívocos quanto a compreensão desta pandemia.
E como teria chegado ao Brasil? Aqui, as estimativas são de que 35 mil pessoas morreram, entre elas, o presidente reeleito para o 2o. mandato, Rodrigues Alves, em janeiro de 1919. Não temos certeza, mas especula-se que o vírus chegou em terras brasileiras pelo navio inglês Demerara, que havia atracado em Recife e em Salvador em 1918. O grande fluxo migratório que o Brasil recebia também é apontado como uma das causas do alastramento da epidemia de gripe.
Precisamos tentar corrigir esses equívocos, compreender melhor o que realmente aconteceu, aprender a prevenir e mitigar tais ameaças de saúde pública no futuro. Seguindo o Dr. Richard Gunderman, professor de Medicina da Universidade de Indiana (EUA), elencamos os 10 dos maiores equívocos relacionados com esta pandemia, da qual se pensou que “exterminaria a humanidade”:
1.  A pandemia teve sua origem na Espanha. Ninguém mais acredita que a chamada "gripe espanhola" seja originária da Espanha. A pandemia provavelmente adquiriu nome por causa da I Guerra Mundial (1914-1918), que estava em pleno andamento na época. Os principais países envolvidos na guerra estavam empenhados em evitar incentivar seus inimigos, então os relatórios sobre a extensão da gripe foram suprimidos na Alemanha, Áustria, França, Reino Unido e EUA. Por outro lado, a Espanha que era um país neutro na guerra, não tinha necessidade de manter a gripe sob sigilo. Isso criou a falsa impressão de que a Espanha estava assolada pela pandemia. Na verdade, a origem geográfica da gripe é debatida até hoje, embora hipóteses tenham sugerido o Leste Asiático, a Europa e até mesmo no Kansas (EUA).
2.  A pandemia foi o resultado da aparição de um "super-vírus". A gripe de 1918 se espalhou rapidamente, matando 25 milhões de pessoas apenas nos primeiros seis meses. Isso levou a muita gente temer o fim da humanidade. Alimentou-se a suposição de que a gripe era letal. No entanto, estudos científicos recentes sugerem que o próprio vírus, embora mais letal do que outras cepas, não era fundamentalmente diferente daqueles que causaram epidemias em outros anos. Grande parte altíssima taxa de mortalidade pode ser atribuída a aglomeração em campos militares e ambientes urbanos, bem como uma má nutrição e saneamento, em função da guerra. A explicação é que muitas das mortes foram decorrentes do desenvolvimento de pneumonias bacterianas em pulmões já enfraquecidos pela gripe.
3.     A 1ª. onda da pandemia foi a mais letal. Na verdade, a onda inicial de mortes da pandemia no 1o. semestre de 1918 foi relativamente baixa. A 2ª. onda, de outubro a dezembro de 1918, é que causou maior número de mortes. A 3ª. onde, na primavera de 1919, foi mais letal que a 1ª, mas menos que a 2ª onda. Os cientistas hoje afirmam que o aumento exponencial de mortes na 2a. onda foi causado por condições favoráveis à disseminação deste vírus mortal.   As pessoas com casos leves ficaram em casa, e mais graves foram encaminhadas a hospitais e acampamentos, aumentando assim transmissão de uma forma mais letal do vírus.
4.  O vírus matou a maioria das pessoas infectadas por ele. Na verdade, a grande maioria das pessoas que contraíram a gripe de 1918 sobreviveram. As taxas de mortalidade nacional entre os infectados geralmente não excederam 20%. No entanto, as taxas de mortalidade variaram entre os diferentes grupos. Nos Estados Unidos, as mortes foram particularmente altas entre as populações nativas americanas, talvez devido a menores taxas de exposição a estirpes passadas da gripe. Em alguns casos, comunidades indígenas inteiras foram dizimadas. Uma taxa de mortalidade de 20% excede amplamente uma gripe típica, que mata menos de um por cento das pessoas infectadas.
5.    Terapias existentes na época tiveram pouco impacto sobre a pandemia. Não houve terapias antivirais específicas disponíveis durante a gripe de 1918. Isso ainda é verdade hoje, onde a maioria dos cuidados médicos para a gripe visa apoiar pacientes, em vez de curá-los. Existe uma hipótese sugerindo que muitas mortes por gripe podem ser atribuídas à intoxicação por aspirina. As autoridades sanitárias da época recomendaram grandes doses de aspirina de até 30 gramas por dia. Hoje, cerca de quatro gramas seriam considerados a dose diária máxima segura. Grandes doses de aspirina podem causar muitos dos sintomas da pandemia, incluindo o sangramento. Observa-se, no entanto, que as taxas de mortalidade foram igualmente elevadas em alguns lugares do mundo onde a aspirina não estava disponível. Então a pesquisa e o debate continuam.
6.     A pandemia tornou-se a notícia mais importante e conhecida. Funcionários da saúde pública, policiais e políticos tinham na época serias razões para minimizar a gravidade da gripe de 1918, o que resultou em menos cobertura na imprensa. Além do medo de que a divulgação pudesse encorajar inimigos durante a guerra, eles queriam preservar a ordem pública e evitar o pânico. No entanto, os funcionários responderam. No auge da pandemia, foram instituídas quarentenas em muitas cidades, em algumas destas os serviços públicos foram restringidos ao essencial, a polícia e corpo de bombeiros.
7.  A pandemia mudou o curso da Primeira Guerra Mundial. É improvável que a gripe tenha mudado o resultado da Primeira Guerra Mundial, porque os combatentes de ambos os lados do campo de batalha foram igualmente afetados. No entanto, não há dúvida de que a guerra influenciou profundamente o curso da pandemia. Concentrar milhões de pessoas criou circunstâncias ideais para o desenvolvimento de cepas mais agressivas do vírus e sua disseminação em todo o mundo.
8.    A imunização generalizada acabou com a pandemia. A imunização contra a gripe como a conhecemos hoje não foi praticada em 1918 e, portanto, não desempenhou nenhum papel no fim da pandemia. A exposição a estirpes anteriores da gripe pode ter oferecido alguma proteção. Por exemplo, soldados que haviam servido nas forças armadas durante anos sofreram menores taxas de morte do que novos recrutas. Além disso, o vírus em rápida mutação provavelmente evoluiu ao longo do tempo em cepas menos letais. Isto é previsto por modelos de seleção natural. Como as cepas altamente letais matam seu hospedeiro rapidamente, elas não podem se espalhar tão facilmente quanto menos letais.
9.     Os genes do vírus da gripe nunca foram sequenciados. Em 2005, os pesquisadores anunciaram que eles determinaram com sucesso a sequência de genes do vírus da gripe de 1918. O vírus foi recuperado do corpo de uma vítima de gripe enterrada no Estado do Alasca, bem como de amostras de soldados americanos que adoeceram na época. Dois anos depois, verificou-se que os macacos infectados com o vírus exibiam os sintomas observados durante a pandemia. Estudos sugerem que os macacos morreram quando seus sistemas imunológicos reagiram exageradamente ao vírus, uma chamada "tempestade de citoquinas". Os cientistas agora acreditam que uma reação exagerada do sistema imune contribuiu para altas taxas de mortalidade entre adultos, jovens saudáveis ​​em 1918. 
10.   A pandemia de 1918 oferece poucas lições para 2018. As epidemias de gripe grave tendem a ressurgir ciclicamente, após alguns anos ou décadas. Os especialistas acreditam que a próxima é uma questão não de "se", mas "quando" isto ocorrerá. Enquanto poucas pessoas vivas podem recordar a grande pandemia de gripe de 1918, podemos continuar aprendendo suas lições, que variam desde o valor do senso comum à lavagem das mãos e às imunizações, até os potentes medicamentos antivirais de hoje. Hoje, sabemos mais sobre como isolar e lidar com um grande número de doentes, prescrevendo antibióticos, não disponíveis em 1918, para combater infecções bacterianas secundárias. Talvez a melhor esperança resida na melhoria da nutrição, saneamento e padrões de vida, que tornam os pacientes mais resistentes à infecção.
Olhando para o futuro, prevê-se que continuaremos a enfrentar epidemias de gripe com seus ataques anuais em relação ao ritmo da vida humana. Oxalá, que tenhamos aprendido algumas lições a partir desta pandemia, bem como, outras lições no enfrentamento da pandemia vírus HIV/AIDS (a partir de 1981), e mais recentemente do combate do Ebola na África Ocidental, evitando-se assim uma catástrofe mundial.
A recorrência inesperada de novas epidemias e pandemias desconhecidas, sempre que surgem, coloca sempre o sistema de vigilância nacionais e mundial via organização Mundial da Saúde e ministérios da Saúde, em vigilância continua. A globalização não ocorre somente na área de produtos, serviços e instrumentos intercambiáveis. Se a humanidade tivesse prestado atenção antes, teria já percebido vivemos a época das doenças globalizadas desde há muitos milênios, portanto, não tem muita novidade por aqui, a não ser o aumento exponencial de sua letalidade e aumento exponencial de número de vítimas, aqui sim provocadas pela própria ação do ser humano.  O curioso e fantástico, é que já temos o conhecimento científico necessário de como prevenir e combater, a grande maioria dessas doenças endêmicas fatais. Mas situações de desigualdades e iniquidades provocados pelos seres humanos, provocam mais vítimas que as próprias doenças em determinadas circunstancias.

O Papa Francisco, violência e fraternidade


Francisco Catão, teólogo, foi professor no Instituto Pio XI e na Faculdade São Bento, autor de vários livros, tais como “O que é a Teologia da Libertação”, “Em busca do sentido da vida” e “Espiritualidade cristã”.

O tema da Campanha da Fraternidade este ano é absolutamente central no Magistério do Papa Francisco. Faz parte do que há de mais marcante no seu ministério.
Para começar, é um dos quatro grandes princípios que comandam a Doutrina Social da Igreja no seu programa de governo, a Exortação Apostólica Alegria do Evangelho (AE, cap. IV, 226-230) e figura também no centro de sua principal Encíclica, a Laudato si’, como expressão da “ecologia integral” (cf. LS, cap. IV, 137-162).
Na Exortação Apostólica, explica que no contexto secularizado do mundo atual, a Igreja, pela sua vida e doutrina, é testemunha de Jesus. Não lhe compete a tarefa de indicar como se deve organizar a sociedade. Tal tarefa temporal é da responsabilidade pessoal e coletiva de todos, envolvendo os cristãos, leigos, religiosos ou clérigos, por uma vida comprometida na família, no trabalho, e/ou em movimentos, partidos, organizações e outras instituições adequadas.
A ação social, política e econômica dos cristãos deve sempre visar à paz, sem todavia, dissimular ou ignorar os conflitos, mas também sem jamais recorrer a qualquer espécie de violência, a exemplo de Jesus, de quem devemos dar testemunho.
A Laudato Si, por sua vez, interpreta a forma com que tratamos o planeta como um sintoma da violência que habita em nossos corações (LS 2). O pecado manifesta-se hoje, com toda a sua força de destruição nas várias formas de violência social (LS 66).
No mundo e no nosso país, temos vivido desde o terrorismo, até as mais diversas formas de violência, explícita ou dissimulada, como reconhecem os muitos textos da CF 18.
A liberdade do ser humano, que não é plenamente autônomo, adoece quando este se entrega às forças cegas do inconsciente, das necessidades imediatas, do egoísmo e da violência (LS 105), fruto de uma visão que confere ao homem um poder ilimitado sobre o mundo e consolida o arbítrio do mais forte, favorecendo as imensas desigualdades, injustiças e violências para a maior parte da humanidade (LS  82).
Dante disso, qualquer solução técnica que as ciências, através das várias organizações temporais, pretendam oferecer, embora indispensáveis, será insuficiente para resolver os graves problemas da violência. Ela é sempre uma ofensa a Deus uma infidelidade ao Evangelho. Será preciso fazer apelo aos crentes para que sejam coerentes com a sua própria fé e não a contradigam com as suas ações (cf. LS 200).
As religiões, contudo, quando pactuam até se vinculam ao poder político, são tentadas a adotar práticas de violência. Francisco entende que esse comportamento ambíguo e inaceitável provém não tanto de uma autêntica tradição religiosa, mas de determinismos culturais contrários ao seu espírito (cf. LS 200).
O anúncio do Evangelho começa sempre com a saudação de paz, que supõe uma fraternidade oposta a toda forma de violência, possível apenas, na medida em que nos confiamos ao Senhor que venceu o mundo e sua permanente conflitualidade, “pacificando-o pelo sangue da sua cruz” (Col 1, 20) (LS 229).
Cristãos, devemos poder rezar o “Pai nosso” como filhos agradecidos, unidos no perdão, dizendo: “perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos aos que nos têm ofendido”. Superamos assim a violência com o amor fraterno, que convive com as diferenças: ”vejam como eles se amam!”.
Jornal "O São Paulo", edição 3188, 28 de fevereiro a 3 de março de 2018.

Empatia é o primeiro passo


Cristina Casagrande

No filme Cinderela em Paris (1957), o par romântico Jo Stockton (Audrey Hepburn) e Dick Avery (Fred Astaire) travam um diálogo importante sobre a noção de beleza que acaba resultando na importância da empatia – a arte de se colocar no lugar do outro. Nessa conversa, fica estabelecida a tese de todo o filme: a empatia atinge a essência das pessoas e tem raízes mais profundas que a mera aparência. Indo mais além, podemos dizer que o exercício da empatia não só é maior que a aparência, mas também é mais eficiente do que simplesmente as boas razões.
Ao se tratar da defesa pela vida, essa questão fica bastante evidente. Kristan Hawkins, presidente da Students for Life, ao receber o Prêmio Weyrich de Liderança Juvenil, em 2009, se pronunciou em meio a grandes aplausos: “Não cheguem até as pessoas com estatísticas sobre o aborto. Nós temos que relatar casos e histórias que mostram como o aborto fere a pessoa. As pessoas não querem saber o quanto você domina o assunto, mas o quanto você se importa com elas”. É claro que não devemos desconsiderar os números, eles são muito necessários, mas não se pode fazer disso nossa maior motivação.
É preciso saber se colocar no lugar do outro: quando falamos na defesa da vida, é necessário pensar em todas as vidas envolvidas, especialmente a mãe que está em crise para ter um bebê. Para isso, é preciso ouvir as necessidades dela e encontrar indentificações.
No livro Papa Francisco. Conversas com o Cardeal Bergoglio, o pontífice cita seu predecessor para exaltar a importância de escolher, em primeiro lugar, aquilo que une as duas partes, no exercício do apostolado. Citando as encíclicas de Bento XVI sobre a caridade e a esperança, Papa Francisco relembrou de quando seu predecessor foi à Espanha, e que todos esperavam que ele tocasse em temas polêmicos, mas Bento XVI preferiu falar primeiro de coisas positivas, para depois vir o resto. Francisco sintetizou o exemplo e a mensagem de Ratzinger dizendo que é necessário priorizar o que nos une: “Assim será mais fácil abordar num momento posterior as diferenças”.
Na comunicação em defesa pela vida, é preciso colocar a empatia em prática, ao mostrar, como bem disse Kristan Hawkins, que nos importamos com as mães dos nascituros, os pais e todas as pessoas envolvidas nesse processo de dar à luz uma criança – e no que vem depois também: a difícil tarefa de criá-las. Para isso, é preciso saber ouvir as reivindicações daqueles que apoiam a descriminalização do aborto.
Os argumentos são diversos: o aborto é um caso de saúde pública; a mãe tem sérias condições físicas e psicológicas que a impossibilitam de ter um bebê; a situação econômica em que ela vive não lhe dá chances de criar uma criança etc. Diante desses argumentos, a comunicação deve estar, em primeiro lugar, pronta para ouvir, para então transmitir mensagens que demonstram compreensão diante da dor do outro e só depois dar o próximo passo.
Esse passo seguinte deve ter muito claro a ideia de que o aborto é algo que não só atinge a criança, mas algo que machuca física, social e psicologicamente a mãe. Nesse sentido, devemos estabelecer uma comunicação positiva, que exalte a importância e a força da mulher e o quanto nos preocupamos com ela e com seu entorno. Nunca é tarde para lembrar que cuidar da mãe é cuidar do bebê e vice-versa, e a comunicação tem um papel essencial nessa missão.

Boas intenções diabólicas

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte

Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

No mundo todo, inclusive no Brasil, vem ocorrendo um crescente acirramento dos antagonismos. As causas vão desde a forma como nos comunicamos nas redes sociais até o desencanto e a insegurança diante das crises atuais e da incapacidade dos políticos em oferecer soluções.
Em nossas redes sociais, vamos nos acostumando a só ouvir ideias semelhantes às nossas, a sermos aclamados quando falamos de modo mais agressivo aquilo com que os demais concordam, a rotularmos quem pensa diferente como ingênuo, ignorante ou mal-intencionado.
Essa dinâmica vem se estabelecendo também na comunidade católica. Vemos cada vez mais os espaços eclesiais sendo invadidos por posicionamentos de grupos, de esquerda ou de direita, progressistas ou conservadores. Os ânimos se inflamam e cristãos bem-intencionados, escandalizados com o que veem, com a justa intenção de defender o bem, a verdade e a Igreja, partem também para a radicalização e para a agressão. Por exemplo, tanto a recente partidarização ocorrida no 14º Intereclesial das CEBs, em Londrina, quanto as reações contrárias podem tornar-se ocasião para ações bem-intencionadas, mas que só dividem.
Deus é aquele que une, e o diabo aquele que divide. Essas boas intenções, fomentando a divisão, servem ao diabo, não a Deus. Do ponto de vista estritamente político, uma afirmação contundente, aplaudida por dezenas que já concordavam antes de ouvi-la, mas rechaçada por todos os demais, vale menos que uma afirmação conciliadora, que não recebeu palmas de ninguém, mas levou algumas pessoas a se questionarem e mudar suas opiniões – mesmo que parcialmente. Militâncias comprometidas são necessárias, militâncias que não sabem dialogar com o diferente atrapalham.
A maior contribuição da Igreja na construção do bem comum não reside tanto no fato de proclamar a verdade, pois a verdade em relação às coisas do mundo já está presente na lei natural, ao alcance de todo ser racional. Sua maior contribuição está em ajudar as pessoas, pelo amor de Deus e a acolhida da comunidade eclesial, a se converter à verdade, superando barreiras pessoais e sociais.
Dizer profundas verdades, mas sendo agressivo, sem ir ao encontro do irmão, sem procurar entender suas razões e motivações, não ajuda na construção da Igreja nem do bem comum. Esse era o pecado dos fariseus do tempo de Jesus – e todos nós poderemos nos tornar modernos fariseus, de esquerda ou de direita, progressistas ou conservadores.
Também não devemos pecar por omissão. Mas temos que agir segundo a lógica do Evangelho, não segundo a do mundo. Jesus nos ensina a corrigir nosso irmão começando pelo diálogo pessoal, depois procurando os amigos e por último indo a público (cf. Mt 18, 15-17). É exatamente o contrário da dinâmica das redes sociais, onde vamos logo a público, valendo-nos da força dos argumentos, com pouca atenção à situação do irmão.
O Papa Francisco, percebendo o crescimento desses antagonismos, há muito vem insistindo no diálogo. E para dialogarmos precisamos entender as motivações de nosso irmão. Alguma razão ele teve para aderir a uma posição que nos parece errada. Para convencê-lo do erro, precisamos saber quais são suas motivações e sermos capazes de explicar como uma posição mais adequada responderá também àquilo que houver de justo em suas motivações.
Haverá sempre aqueles que não se deixam convencer, mas nosso objetivo não é dobrar a esses, mas sim convencer àqueles de intenção justa.
Nesse ano eleitoral, tanto a partidarização quanto o ataque aos partidos serão cada vez mais aguerridos. Para o bem de todos, a comunidade cristã deve continuar sendo um espaço de encontro, correção mútua e conversão.
Jornal "O São Paulo", edição 3187, 21 a 27 de fevereiro de 2018.

Um momento de grande transformação que exige muita reflexão


Ana Lydia Sawaya é professora titular de Fisiologia da UNIFESP - campus São Paulo e é conselheira do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

Quem negará que o país está vivendo um momento de grande transformação? Mudanças radicais na política, grandes mobilizações sociais com milhões de pessoas nas ruas, quer para protestar contra um governo, quer para se divertir e pular o carnaval. Até o carnaval está mudando! Quem diria milhões de pessoas organizando blocos?
A vida não é mais “a mesma de sempre”, e é cada vez menos privada ou individual. Há um desejo claro, um anseio comum de se encontrar, se comunicar, de lutar ou viver junto com os outros. Imaginar que cada um ia se enfurnar atrás do seu computador solitariamente como muita gente dizia a um tempo atrás, não representa uma percepção correta, pois a realidade está indo na direção oposta.
Mas para onde? Por que? O que estamos buscando? Ainda parece pouco claro. Outra demonstração dessa transformação em ato é que a maioria das pessoas não sabe em quem votar, e não só porque não há mais esquerda ou direita. Tudo parece fluído, mas não o desejo das pessoas que cresce e se mobiliza. A cidade tem-se tornado cada vez mais um espaço público e de convivência.
A percepção da importância da política cresceu em todas as camadas sociais, assim como o desejo de se divertir, ver ou fazer coisas bonitas como as belas fantasias de carnaval, ou as bandas que tocam música de fim de semana na Avenida Paulista. Há os excessos, mas estes não parecem ser a regra.
E a igreja como a instituição mais antiga, com uma história milenar, tem algo a dizer para ajudar as pessoas? E Cristo seu fundador, como está presente? Sabemos que Ele não morreu, mas vive conosco para sempre, pois é o Deus Emanuel. Mas o que Ele nos diria agora?
Precisamos de profetas! Pois são eles que ouvem o Senhor e nos comunicam suas palavras. Nós cristãos sabemos que são eles, os santos de cada época que indicam a estrada do novo, como aconteceu com os mosteiros e a reconstrução da Europa, ou as ordens mendicantes e a mudança da sociedade medieval para as cidades.
Estamos iniciando a quaresma e este é um momento privilegiado para rezar, ouvir com atenção o que o “Espírito fala às Igrejas”, viver a caridade e a atenção aos outros e ser vigilante e atento no uso das coisas materiais. Estes são instrumentos que a sabedoria da Igreja entrega na mão de cada um de nós indicando que cada um tem um coração ao qual o Senhor fala. É o momento mais propício do ano para que cada um possa dizer em seu coração como o profeta ainda menino: “Senhor fala que o teu servo escuta”. E não esqueçamos que a Igreja está pedindo que todos reflitamos e nos engajemos até em atividades concretas para fazer frente à violência que assola o nosso país.
“Hoje não fecheis o vosso coração, mas ouvi a voz do Senhor”, nos diz a antífona de quaresma.
Um momento de grande transformação exige muita reflexão e escuta!
Jornal "O São Paulo", edição 3187, 21 a 27 de fevereiro de 2018.

Bioética em tempos de 'bios' e ‘pós-tudo'!


Leo Pessini
Cada época histórica da humanidade é marcada por certas “palavras chaves” que se tornam uma espécie chave para a compreensão daquele momento, no aspecto cultural, socioeconômico e político. Os historiadores, antropólogos e arqueólogos, dividem a chamada pré-história humana em três períodos consecutivos, segundo o método de manufatura de ferramentas, utensílios e armas da época. Temos assim a chamada idade da Pedra, ou período neolítico (6 mil a.C. a 2.5 mil a. C), seguiu-se a idade do bronze (Oriente Médio, 2.300 a.C.), com o desenvolvimento de uma liga metálica, resultante da combinação de cobre (descoberto em torno de 6500 a.C.) com o estanho; e finalmente a idade do ferro (de 1200 a.C. a 550 a.C.), quando surge a metalurgia do ferro, embora os primeiros indícios de utilização do ferro são de 3200 a.C.
Hoje, vivemos a chamada época do “Bios”, que teve início com a descoberta da dupla hélice do DNA (Watson e Crick, em 1953) que inaugurou entre nós a chamada “era genômica”, como uma instigante novidade, singular atrativo do progresso técnico cientifico, com promessas de “revoluções milagrosas”, mas também trazendo serias questões e inquietudes relacionadas com o futuro da vida no planeta e o quanto não ficará manipulável e vulnerável a identidade do ser humano neste contexto. Os economistas afirmam que a “biotecnologia” será o carro chefe da economia neste século XXI. E a ladainha do novo dicionário de palavras que se inspira em “bios” aumenta muito rapidamente: biologia, biogenética, biogenômica, bioterrorismo, bio erro, biopoder, bioestatística, biocombustíveis, biodiesel, biodegradáveis (Produtos), biogerontologia, biodiversidade, biociência, bioenergética, bioenergia, bioengenharia, bioequivalência, bioestatística, biofísica, bioinformática e tantas outras.
Nesta contemporaneidade marcada pelo reinado do “bios”, apresenta-se também a mentalidade ou ideologia dos “pós tudo” .... Enfim, vivendo num momento de mudança de época, mais que de uma época de mudanças, falamos de: pós modernidade, pós-humanismo, pós- cristianismo, pós-genômica, e agora também, pasmem senhores, algo um tanto mais sofisticado e sutil, a “era da pós-verdade”! O que seria isto? Como atinge as nossas vidas? Veremos no próximo texto que segue a este.
Em meio a este cipoal de neologismos que se ligam a raiz “bios” e ao prefixo “pós”, que nomeiam novos processos de pesquisa e conhecimento que dão nomes a novos produtos, descobertas, e épocas históricas, emerge uma novidade! Ainda de uma maneira tímida, esta novidade aos poucos vai ganhando maior visibilidade e sendo valorizada, como uma necessidade em todos os âmbitos da vida, desde o nível pessoal até o cósmico ecológico. Trata-se do surgimento do neologismo “bioética”. Na perspectiva de um dos seus pioneiros, o bioquímico norte-americano, pesquisador no âmbito da biologia molecular, V. R. Potter (1911-2001), bioética seria a “ponte para o futuro” e também “ciência da sobrevivência” ou “moralidade da sobrevivência humana” (1970). Estamos sem dúvida alguma diante de um lance de esperança para humanidade em termos de humanização do progresso tecno científico, proteção do meio ambiente (ecologia), enfim de valorização da “vida e da ética”, ou de uma “ética da vida”, como sendo definida como “sabedoria humana”, ou seja, o conhecimento de como utilizar o conhecimento para a proteção da dignidade do ser humano, promoção do bem social e vida cósmico-ecológica.