terça-feira, 29 de novembro de 2016

Trump ganhou. Para onde olhamos?

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Rafael Mahfoud Marcoccia é professor do Centro Universitário da FEI, fez Doutorado sobre Doutrina Social da Igreja e é colaborador do site católico Terre d'America. 

Passada a surpresa da eleição de Donald Trump para presidente dos Estados Unidos, várias análises começaram a circular. Entre os cristãos, há aqueles que comemoram a vitória do republicano, seja porque ele se coloca com uma agenda pró-vida, seja porque Hillary, que tem relações complicadas com a Igreja, perdeu. E há aqueles que lamentam e não entendem como um candidato com um discurso muitas vezes preconceituoso possa ter vencido. Para onde olhamos?
Há um consenso de que a vitória de Trump foi impulsionada pela classe operária que sente um mal-estar crescente com a globalização, que exportou empregos industriais para o México, em menor escala, e para a China, em maior volume. Os empregos somem e a renda também despenca – dados mostram queda de 14% somente nos últimos dez anos. Além disso, 80% dos apoiadores de Trump se disseram cansados de políticas que favoreciam grupos específicos da população, como negros e imigrantes. Ou seja, o mal-estar é também cultural e de identidade. Em suma, o fenômeno aponta para o cansaço daqueles “de fora” do sistema com aqueles que comandam o processo. Trump captou a insatisfação e usou um discurso certeiro.
Fenômeno semelhante ocorre na Europa. O Brexit é consequência disso, da mesma forma que a francesa Marine Le Pen, voz de direita contra a imigração e a União Europeia, tem 25% das intenções de voto na corrida presidencial, o que a levaria ao segundo turno. Partidos antiglobalização de direita também estão ganhando força na Alemanha, na Holanda, na Hungria e na Áustria.
Em comum com Trump, todos canalizam a seu favor as angústias dos cidadãos que se sentem marginalizados pela globalização e vitimados pela imigração, culpando minorias e forças externas pelos problemas sociais e pelo desemprego, e incentivando o sentimento nacionalista.
Estamos diante de um discurso que divide a sociedade, que joga uns contra outros, que tem propostas mais reativas que propositivas. Esse é o principal problema. Reportagens dos jornais mostram que desde a eleição de Trump foram contabilizados 310 ataques de quem se diz ser seu seguidor contra negros, homossexuais e imigrantes.
Frente a esse cenário, o Papa Francisco defende a “cultura do encontro”, com uma participação social efetiva e plural e disposta ao diálogo sincero em todos os níveis: desde a cooperação entre os países até às associações, obras de caridade, cooperativas etc. que já promovem, em suas comunidades, a dignidade da pessoa e o bem comum através do acolhimento e integração das pessoas à sociedade.  Ou seja, por meio de ações baseadas não nas ideologias – quaisquer que sejam -, mas no amor às pessoas concretas que estão diante de si.
Como S. João Paulo II escreveu, retomando Paulo VI, devemos construir a “Civilização do Amor, o fim para o qual devem tender todos os esforços tanto no campo social e cultural, como no campo económico e político” (“Dives in misericordia”). Tomar ações concretas para uma sociedade mais justa, fraterna e inclusiva. Afinal, diz S. João Paulo II, “a solidariedade é a responsabilidade de todos com todos os homens” (Centesimus annus).
Em qualquer situação, a Igreja reafirma a esperança. O sistema político pode estar ruindo pela corrupção ou por discursos e propostas vistas como irresponsáveis, e isso machuca a todos. Mas não eliminam a experiência de inúmeras pessoas e obras cristãs que, com sua criatividade e liberdade, respondem aos desejos de bem comum, de felicidade e de justiça.

Jornal "O São Paulo", edição 3129, 23 a 29 de novembro de 2016.

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

A fraternidade e os direitos humanos

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Ricardo Gaiotti Silva é advogado, juiz eclesiástico no Tribunal Interdiocesano de Aparecida, mestrando em Filosofia do Direito pela PUC-SP e mestrando em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade de Salamanca - Espanha.

A fraternidade é um tema que está presente em diversas constituições modernas. Com a Declaração Universal dos Direitos Humanos ela obteve seu reconhecimento, tornando-se um objetivo de fundamental importância para o desenvolvimento dos povos. Contudo, a humanidade vive um retrocesso na proteção dos direitos humanos, consequentemente da fraternidade, haja vista o aumento do egoísmo, das inúmeras situações de desigualdade, da pobreza e injustiça.
Tudo isso indica não só uma profunda carência de fraternidade, mas também a ausência de uma cultura de solidariedade, o que se ver é o aumento da “mentalidade do descartável, que induz ao desprezo e abandono dos mais fracos, daqueles que são considerados inúteis”, nos ensinou o Papa Francisco (Mensagem para o dia mundial da paz, 2014). Porém, o homem tem uma vocação à fraternidade, essa que deve ser recuperada.
Dentre os caminhos que podem levar a valorização da fraternidade, destaca-se o pensamento do filósofo Jacques Maritain. Ele considerava que a fraternidade é um instrumento para a busca do bem comum e da justiça social, uma vez que a finalidade da sociedade humana, não pode ser confundida com a proteção egoísta do bem individual, pois, o bem comum deve ser o resultado do equilíbrio garantido pela fraternidade (Os direitos do homem e a lei natural, Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1967).
Assim, a proposta da fraternidade consiste primariamente em que todos se sintam responsáveis por todos e, por conseguinte, esta responsabilidade não pode ser delegada só ao Estado (BENTO XVI, Carta Encíclica Caritas in Veritate, n. 38), todos têm uma parcela de contribuição na construção da fraternidade.
Com efeito, a fraternidade vence o egoísmo e cria um equilíbrio entre liberdade e justiça, entre responsabilidade pessoal e solidariedade, entre bem dos indivíduos e bem comum. Assim, uma comunidade política deve agir de forma transparente e responsável para favorecer tudo isto.
Enfim, a fraternidade deve ser praticada e fomentada pelo Estado, e por todos os cidadãos, pois ela é a chance de cada um ser tratado com dignidade pelo simples fato de ser pessoa humana, criando assim, uma verdadeira sociedade justa.
Neste contexto, deve se considera ainda que a justiça e a fraternidade caminham juntas, na perspectiva de conduzir a humanidade à igualdade de oportunidades como expressão do bem comum ao alcance de todos. Assim, para a garantia dos direitos dos homens, visando o bem comum e a justiça, é necessário à fraternidade, ou seja, os direitos das pessoas serão fielmente assegurados por meio do respeito à dignidade humana, que tem por exigência a realização da fraternidade.
Portanto, é necessário que se promova a fraternidade, para a garantia dos direitos fundamentais dos homens.
Jornal "O São Paulo", edição 3128, 16 a 22 de novembro de 2016.

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Para pôr o País nos trilhos…

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Klaus Brüschke, é membro do movimento dos Focolares, ex-publisher da Editora Cidade Nova, articulista da revista Cidade Nova.

A PEC 241 está sendo proposta como uma medida imprescindível para pôr o País nos trilhos. O equilíbrio das contas públicas seria condição sine qua non para que o Brasil torne a crescer. A CNBB emitiu uma nota alertando que essa medida “elege, para pagar a conta do descontrole dos gastos, os trabalhadores e os pobres […]. Além disso, beneficia os detentores do capital financeiro, quando não coloca teto para o pagamento de juros, não taxa grandes fortunas e não propõe auditar a dívida pública”.
Nas últimas décadas, no mundo globalizado, a dimensão econômica tem desempenhado um papel hegemônico na vida em sociedade. Confunde-se sociedade com mercado, progresso de um país com crescimento do PIB, cidadãos com consumidores, trabalhadores com insumo, inclusão social com inclusão na sociedade de consumo, Estado com empresa…
As várias medidas na agenda do governo não estão permeadas desse modo de ver? O projeto de País que elas contemplam, em vez de ser o de uma sociedade mais justa, fraterna, inclusiva e plural, não é preparar um mercado competitivo na economia global? A necessária reforma trabalhista, em lugar de se pautar pela primazia do trabalho sobre o capital e pela garantia dos direitos dos trabalhadores nas atuais relações trabalho-capital, não visa ao aumento da competitividade dos empreendimentos? A reforma da Previdência, em vez de assegurar uma vida digna aos idosos, não mascara o dreno de recursos públicos para o capital financeiro?
O congelamento orçamentário provocará a diminuição proporcional do Estado num País em crescimento populacional, econômico e… de demandas. Mas isso significa dar mais espaço à sociedade civil, conforme o princípio da subsidiariedade e com mecanismos de uma democracia participativa? Ou se transferem importantes aspectos da vida da população, que não podem ser condicionados pelo lucro e pela eficiência, à iniciativa privada (ou seja, ao capital)?
Será que um olhar mais atento não mostrará que, para além da crise econômica – e política, e moral –, o País passa por uma crise bem mais crônica e profunda, uma crise social? A desigualdade de renda e oportunidades – de trabalho, instrução, cultura, lazer, cidadania –, a violência – a provocar mortes em níveis de uma guerra –, os preconceitos raciais, sexuais e religiosos – com episódios escandalosos e indicadores vergonhosos – e tantos outros aspectos… “Tratar” da crise econômica sem considerar a crise social não agrava esta ainda mais? Um adequado ajuste fiscal não deve ser formulado a partir de definição de políticas públicas que encarem esses desafios?
Para enfrentar isso, urge devolver a primazia à política. Não certamente à vergonhosa caricatura que se está fazendo dela, mas àquela que é “uma forma sublime do exercício da caridade” (Paulo VI). É nesse campo que se fazem necessárias reformas. Não meras adequações institucionais, mas uma mudança radical da cultura política. Necessitamos de uma prática democrática que contemple mais do que um processo eleitoral representativo da sociedade e imune ao poder econômico. Necessitamos de informação transparente e honesta, de participação social efetiva e de pluralismo dialógico. As soluções não estão dadas por princípios definidos por um grupo político, mas são dinamicamente construídas na interação dos diferentes atores sociais durante a travessia.
Um bom início é escapar à dicotomia ou-isso-ou-o-caos e voltarmos a debater criticamente o País que queremos.
Jornal "O São Paulo", edição 3127, 9 a 15 de novembro de 2016.

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

O humanismo cristão no século XXI

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte

Ivanaldo Santos é doutor em filosofia e professor do Departamento de Filosofia do Programa de Pós-Graduação em Letras da UERN.

No período de 06 a 08 de outubro aconteceu em São Paulo, nas dependências da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o III Congresso Latino-Americano Jacques Maritain. Um congresso promovido pelos Institutos Jacques Maritian da América do Sul. O evento foi um marco nas discussões sobre as interpretações da obra do pensador francês Jacques Maritain, mas também nos debates sobre os problemas contemporâneos, especialmente a defesa da vida e da dignidade da pessoa humana.
De um lado, Jacques Maritain, um dos maiores convertidos do século XX, dentro de um cenário marcado pelo terror, pela burocracia e pela cultura da morte, ou seja, as primeiras décadas do século XX, desenvolveu a teoria do humanismo integral. Um humanismo que, num primeiro momento, se abre para Deus, para a transcendência, para a vida mística e para as mais elevadas formas de cultura (arte, música, etc.), mas, logo em seguida, num segundo momento, conduz o ser humano para o respeito à vida e a dignidade da pessoa humana. O humanismo integral foi fundamental para, em 1948, ser aprovada pela ONU a Declaração Universal dos Direitos Humanos. O humanismo integral foi um dos movimentos mais importantes do século XX, tanto dentro da Igreja como nos diversos segmentos que lutaram pela ética e pelos direitos humanos no mundo.
De forma preocupante o século XXI vê o desenvolvimento de uma série de políticas e ideologias que desrespeitam a vida humana. Entre essas políticas citam-se: a idolatria pelo Estado, o terrorismo, o abandono dos refugiados, a cultura da morte que se materializa na violência cotidiana, no aborto, na eutanásia e na pena de morte.
Dentro desse contexto, muito parecido com o que Maritain viveu nas primeiras décadas do século XX, a Igreja e os cristãos são convocados a, num primeiro instante, ter uma atitude de conversão, de busca genuína da vida mística, mas, não ficar preso a essa busca. Pelo contrário, num segundo momento, é necessário buscar edificar o homem integral, um modelo de homem que não é apenas material, mas também espiritual, artístico, educacional, ético e que, por isso, valoriza e respeita a dignidade da pessoa humana. O século XX foi o século da construção da teoria do homem integral. Já o século XXI precisa ser o século que os cristãos vão colocar em prática esse homem integral e, com isso, derrotar a cultura de morte e estabelecer o respeito a todas as formas e manifestações da dignidade da pessoa humana. Uma dignidade que se inicia com a concepção e só termina com a morte natural.
Por fim, afirma-se que, de um lado, o século XXI vive os mesmos dramas e angústias de todos os outros séculos da história da humanidade. Nesse sentido, isso representa o grande caminho da Igreja para lentamente ir construindo o Reino de Deus. No entanto, do outro lado, desde o século XX o ser humano tem aperfeiçoado, de forma perversa, a arte de matar e de infligir dor ao seu semelhante. O século XXI é a continuidade desse processo. Nesse sentido, o cristão é convocado a combater a morte, como lembra o Papa Francisco, com as armas da misericórdia e da valorização da dignidade da pessoa humana. Neste processo, a Igreja e os cristãos irão construir o humanismo integral no século XXI. 
Jornal "O São Paulo", edição 3126, 2 a 8 de novembro de 2016.

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Eleições e política: de onde recomeçar?


Ilustração: Sergio Ricciuto Conte

Marco Montrasi é economista e responsável de
Comunhão e Libertação no Brasil.

Cada circunstância, cada acontecimento é sempre um novo desafio se estamos minimamente abertos e disponíveis a nos deixar provocar sem medo pela realidade. Por isso, também essas eleições podem ser uma grande ocasião. Por que uma ocasião? Porque nascem inevitavelmente perguntas que nos recolocam em movimento: qual é a minha contribuição neste momento de tão grande confusão? É possível recomeçar? Em que deposito a minha esperança? Tenho ainda esperança ou o meu alívio é um simples “amanhã vai melhorar”? Qual é a minha responsabilidade?
A primeira responsabilidade que temos é a de nos educarmos para descobrir o que é o nosso “eu”. A origem dos valores (da vida, da pessoa, do bem comum...) está na descoberta daquilo que eu sou, do desejo de infinito que constitui o meu coração. Esse processo, que não é óbvio, é como juntar os cacos de um homem despedaçado que assim pode começar a dar valor às coisas: a uma garrafa, a um livro, até chegar à forma de tratar o dinheiro e a coisa pública. Esta é a crise profunda da qual estamos vendo as consequências: perdemos o valor das coisas porque perdemos a consciência do nosso “eu”.
“Nada é tão fascinante quanto a descoberta das reais dimensões do próprio eu, nada é tão rico de surpresas quanto a descoberta do próprio rosto humano. É uma aventura apaixonante. Mas, para lançar-se nessa aventura e vencer aquela estranheza em relação a nós mesmos, é preciso alguém com quem olhar o humano que há em nós, alguém que não se assuste diante dele” (J. Carron, A beleza desarmada. São Paulo: Companhia Ilimitada, 2016, p. 136).
O Papa Francisco é testemunha viva desse olhar. Vê-se a sua esperança e como ela gera uma presença que não deixa ninguém indiferente. Um “eu” vivo que não se lamenta diante das dificuldades do mundo, mas se move servindo o homem. Por que ele é assim?
Estamos num momento crucial em que cada um de nós pode deixar-se levar pelo pessimismo e pela acusação a um mundo corrupto e sem esperança, ou pode começar a desejar aprender esse processo de construção lenta e árdua, mas real, possível, que desenvolve uma cultura nova. Com humildade precisamos aprender a aprender -  como dizia Zygmunt Bauman, o mais importante estudioso da sociedade pós-moderna: “Ensinar a aprender. O oposto das conversas comuns que dividem as pessoas: umas certas, outras erradas. Entrar em diálogo significa superar o limiar do espelho, ensinar a aprender a se enriquecer com a diversidade do outro. Ao contrário dos seminários acadêmicos, dos debates públicos ou das discussões partidárias, no diálogo não há perdedores, mas apenas vencedores. Trata-se de uma revolução cultural em relação ao mundo em que se envelhece e se morre antes de crescer. É a verdadeira revolução cultural em relação àquilo que estamos acostumados a fazer e é o que permite repensar a nossa época. A aquisição dessa cultura não permite receitas ou escapatórias fáceis, ela exige e passa pela educação que requer investimentos de longo prazo. Nós devemos nos concentrar nos objetivos de longo prazo. E esse é o pensamento do Papa Francisco. O diálogo não é um café instantâneo, não dá efeitos imediatos, porque é a paciência, a perseverança, a profundidade. Ao caminho que ele indica, eu acrescentaria uma única palavra: assim seja, amém” (Entrevista a Stefania Falasca, publicado no jornal italiano Avvenire, em 20/09/2016).
Jornal "O São Paulo", edição 3124, 19 a 25 de outubro de 2016.