segunda-feira, 31 de julho de 2017

O clima e o final dos tempos


Desde 1997, portanto há vinte anos, começava o longo processo de discussão internacional sobre a proteção do clima. Tudo culminou com a assinatura do chamado Acordo de Paris, em 2015. Ficou acertado ao longo desse tempo que os países cuidariam de reduzir a produção de gases que provocam o chamado efeito-estufa e que outras tantas medidas para a proteção do planeta seriam adotadas ao longo do tempo.
A realização da cúpula do G-20, que reúne os países representativos de quase noventa por cento da economia mundial assinalaria o momento de concretização desse conjunto de providências.
A cúpula, porém, não teria um final feliz, como ficou evidenciado pelo anuncio antecipado pelo Presidente dos Estados Unidos, Trump, de que iria retirar seu apoio ao Acordo. Disso tomaram nota os membros do G20, sem que possam fazer nada a respeito.
O grave problema é que o mau exemplo dos EUA já foi seguido pela Turquia, que nem mesmo assinara o documento, e só por muita habilidade da diplomacia alemã não gerou a ruptura da Arábia Saudita e da Indonésia. Isto é, antes mesmo de produzir efeitos o acordo já está sendo violado.
Ao inserir na pauta da doutrina social da Igreja, que desde a edição da histórica Rerum novarum para além dos aportes relativos ao mundo do trabalho, da paz e do desenvolvimento, agora também se ocupa do tema ambiental, o Papa Francisco explicitou que existe, e ninguém deixa de reconhecer, verdadeira “divida ecológica” posto que: «O aquecimento causado pelo enorme consumo de alguns países ricos tem repercussões nos lugares mais pobres da terra».
E, no ponto 52 da Laudato Si´, o Papa exorta, com claridade: É necessário que os países desenvolvidos contribuam para resolver essa dívida, limitando significativamente o consumo de energia não renovável e fornecendo recursos aos países mais necessitados para promover políticas e programas de desenvolvimento sustentável.
Percebe-se a objetividade da proposta: quem poluiu além da conta deve, necessariamente, limitar o consumo de modo a que os demais possam incrementar o respectivo desenvolvimento que, decerto, exigirá maiores demandas energéticas.
Embora o presidente francês Macron, que acaba de tomar posse, tenha mantido a esperança acesa ao anunciar que outra cúpula mundial será convocada para o próximo mês de dezembro, em comemoração ao segundo aniversário do acordo de Paris, é certo que o clima está muito quente e a combustão pode fazer derruir em uma imensa bola de fogo, todo o mundo universo.
Wagner Balera
Jornal "O São Paulo", edição 3159, 26 de julho a 2 de agosto de 2017.

A Igreja e as ações afirmativas

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Ivanaldo Santos é doutor em filosofia e professor do Departamento de Filosofia do Programa de Pós-Graduação em Letras da UERN.

“Ações afirmativas” são políticas, ações, atos ou medidas especiais e temporárias, tomadas ou determinadas pelo Estado, pelo direito e pela sociedade civil com o objetivo de garantir a dignidade da pessoa humana.
Na sua aplicação, ganham destaque os diversos organismos e pastorais da Igreja, cujas ações, quer sejam afirmativas, pastorais ou de outra natureza, são guiadas por Jesus Cristo, “caminho, verdade e a vida” (Jo 14, 6), palavras presentes “ontem, hoje, sempre” (Hb 13, 8). Justamente porque é guiada pelo “mistério da fé” (I Tm 3, 9) a Igreja, ao longo de sua história, sempre procurou desenvolver ações afirmativas de garantia da dignidade da pessoa humana. Por exemplo, já no tempo apostólico tinha por princípio não haver “necessitado algum; porque todos os que possuíam herdades ou casas, vendendo-as, traziam o preço do que fora vendido, e o depositavam aos pés dos apóstolos" (At 4, 34). Na Idade Média, criou casas de proteção para os peregrinos, para os necessitados e outros grupos sociais.
A preocupação com o resgate da dignidade da pessoa humana é uma constante na vida da Igreja. Muito antes do termo “ação afirmativa” entrar para a produção intelectual das ciências humanas e dos debates em torno das políticas públicas a Igreja já executava ações de resgate da dignidade humana. 
No entanto, a partir da encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, os esforços da Igreja em prol do resgate da dignidade da pessoa humana e, por conseguinte, das ações afirmativas, se multiplicaram. Apenas a título de exemplo, tem-se o grande esforço da Igreja, nas primeiras décadas do século XX, para integrar socialmente camponeses pobres da Europa, de proteger e garantir a vida de grupos sociais perseguidos pelo nazismo (judeus, ciganos, etc.) e, no pós-Segunda Guerra Mundial, a ação de resgate da dignidade da pessoa humana de populações que viviam nos portos de países como, por exemplo, a Itália e a França. Vale lembrar que tais ações foram uma das inspirações para o Concílio Vaticano II.
A sociedade contemporânea está marcada por profundos problemas, rupturas sociais e crises: do Estado, das políticas públicas, dos sindicatos, da família, causada pelas drogas, pelo abandono, pela negação da vida (aborto, eutanásia, etc.). A consequência de todo esse complexo de crises é a formação, por exemplo, das cracolândias espalhadas pelo país, dos presidiários, com penas leves, que necessitam de reinserção social, de pessoas vítimas da violência, da infância e da terceira idade que necessitam de proteção.
Dentro deste contexto a Igreja, enquanto sacramento da salvação e construtora do “reino de Deus” (At 1, 3), é convocada a ser um agente eficaz do resgate da dignidade da pessoa humana. Ela mantém toda uma rede de ações afirmativas que se estendem pelas pastorais sociais, passando por escolas, creches e faculdades até culminar em hospitais e na rede das Santas Casas de Misericórdia.
As Fazendas da Esperança, que trabalham com a restauração da dignidade de pessoas vítimas do mundo das drogas, são um exemplo dessa ação. Nos últimos tempos, tem se debatido a possibilidade de ter Fazendas da Esperança que trabalhem com o processo de reinserção de presos ao convívio social.
Dentro do atual quadro de crises e rupturas sociais, o desafio da Igreja é ser fiel a Jesus Cristo Salvador e, por conseguinte, à doutrina social cristã e, guiada por essa fidelidade, aumentar as ações afirmativas e o trabalho de resgate da dignidade da pessoa humana.
Jornal "O São Paulo", edição 3159, 26 de julho a 2 de agosto de 2017.

“O maior e mais belo mosteiro beneditino do Mundo”

Mosteiro de Monreal
Maria Luiza Marcílio é professora titular de História da Universidade de São Paulo. Foi presidente da Comissão de Direitos Humanos da USP e do Instituto Jacques Maritain do Brasil. Fez seu doutorado na Université de Paris (Sorbonne). Foi professora visitante nas Universidades do Texas, Berkeley e Puerto Rico (EUA); do Minho (Portugal) e de Paris (França).

Esta afirmação é dos especialistas em Historia Beneditina, da Universidade de Palermo. O mosteiro é surpreendente! Hipnotiza o visitante, deslumbrado pelo esplendor de luz, pelas cores e pelas alturas de seus múltiplos quadros, todos em mosaicos! A Igreja e o Mosteiro de Monreal ficam na capital da Ilha da Sicilia, em Palermo, na Itália.
Sua edificação nos leva à época em que o Reino normando da Sicilia vivia em seu apogeu, ou seja, no reinado de Guilherme II (1172-1189). Um dos frutos mais significativos desse momento foi a fundação da Catedral e da Abadia beneditina de Monreal. A invasão dos Normandos, no inicio do século XI na Itália meridional, foi seguida da longa conquista da Sicilia. O rei normando Roger II foi coroado rei de Palermo em 1130 e esse reino durou séculos. Enquanto o Mediterrâneo esteve sob o controle absoluto dos árabes, a Cristandade ocidental passou então a dispor de um ponto de partida no Mediterrâneo, para sua dominação. Os normandos transformaram radicalmente a Ilha, que se tornou majoritariamente romana na religião, essencialmente latina no plano lingüístico e européia ocidental na cultura. Os normandos passaram a Ilha à obediência do Papa. Uma vez terminada a conquista o rei normando fundou igrejas e o sucessor o rei Guilherme II voltou-se para Monreal e para a fundação de um Mosteiro com seu maravilhoso Claustro, anexo à igreja que ultrapassou por sua riqueza, extensão e valor, a todas as anteriores.
Segundo uma lenda, a origem da Igreja e Mosteiro beneditino se deve a um sonho do Rei da Sicilia, o normando Guilherme II. A lenda narra que certo dia Guilherme adormeceu sob uma árvore no campo e em sonho apareceu-lhe a Virgem Maria, que disse: "Neste lugar onde dormes está escondido o maior tesouro do mundo. Escava-o e com ele construa um templo em minha homenagem". Seguindo o mandado, ao acordar o rei ordenou que o local fosse escavado e ali encontrou um tesouro em moedas de ouro, que foram empregadas na construção do santuário. Para a decoração foram chamados mestres árabes, venezianos e bizantinos especializados na técnica do mosaico, que ajudaram a construir o Mosteiro, cobrindo-o da abside às altas paredes laterais, com painéis de excepcional valor artístico.
A Catedral de Monreal supera em altura, comprimento e altura a todas as demais abadias beneditinas. É também a única em beleza na composição da arte do mosaico policromo e dourado. No centro e no ponto mais alto, sobre o altar mor, esta o mosaico de Jesus Cristo, o Pantocrator (o todo poderoso). Ele nos persegue, onde quer que andemos no interior do templo, com seu olhar severo e ao mesmo tempo cheio de ternura. Junto e em seu redor vem a sua corte celeste composta por anjos, profetas e santos.
Nas altas paredes laterais há uma divisão em dois níveis. No primeiro, mais baixo, estão reproduzidas cenas do Antigo Testamento. Acima deste e separando-o do segundo nível, há um friso nitidamente influenciado pela tradição da arte islâmica. Nesse nível e separadas por vitrais com vidro incolor, estão cenas do Novo Testamento; fechando-as no mais alto, largo friso, com bustos dos apóstolos e de santos. O teto da Basílica é em madeira pintada de cores. Sustentando essas paredes estão colunas, em pedra única, montadas por arcadas com capitéis esculpidos em motivos diversos.
O conjunto dessa obra esplendida sobe como um hino ao Verbo eterno, entrado na História como criador, redentor e juiz. O todo é rico de uma profunda significação simbólica. Ela contem a resposta ao drama do homem cuja resposta é Deus. Os mosaicos da Catedral do Monreal representam sobretudo a descrição da historia do mundo, em sua versão bíblica, que começou pela criação e terminou pela atividade dos Apóstolos que fizeram conhecer e engrandecer a Igreja de Cristo no mundo. O piso também merece atenção pelo refinado trabalho em mosaicos de mármores e pórfiro.
A obra inteira foi realizada em curto espaço de tempo. O rei ofereceu a catedral à Virgem Maria Nuova, e a cerimônia de consagração se deu em 1166.
O Claustro, ao lado, ultrapassou todos os demais, completando o esplendor da Catedral, mostrando a luxuriante sequência da escultura de seus 216 capitéis, que chegaram até nós quase intactos. Em cada lado desse quadrado é mostrado um serie de arcos em ogivas que se abrem ao interior sobre um jardim do convento. Nesse jardim gramado, em cada um de seus cantos há um arvore de simbologia diversa. A palma é emblema clássico da fecundidade e da vitoria. A romãzeira é considerada como um dos produtos da terra prometida, como símbolo do Paraíso Celeste e da Igreja. A figueira considerada como o alimento, o mais importante. A oliveira, pois dela se extrai o óleo santo, uma das matérias sacramentais. No ângulo Sudeste se encontra o Pequeno Claustro, no centro do qual esta a fonte que inspirou a admiração comovida de poetas e artistas. Nos quatro lados do Claustro sucedem os arcos com suas duplas colunas e capitéis de pedra única, esculpidas com cenas diversas, que encantam e fascinam. As colunas, em numero de 228 suportam os capitéis, com suas variadas formas onde os artistas esculpiram na pedra motivos os mais diversos. Vai-se das cenas da vida de Jesus às cenas do Antigo Testamento, passando por cenas de caça, de colheitas, de combate entre guerreiros supondo o conhecimento completo da simbologia medieval. Apenas uma equipe de cinco mestres, esculpiu as duplas colunas e seus capitéis, quase todos de origem da França meridional, assistidos por um numero impreciso de ajudantes que deveriam ser marmoristas, escultores, compositores, dizem os especialistas em Historia da Arte sacra.
No mosteiro não há mais monges desde a Unificação da Itália, quando o Rei Vitor Emanuel II, em um de seus primeiros atos, decretou, em 1860, a estatização de todos os mosteiros da Itália. O Claustro e Mosteiro de Monreal tornaram- se museu, abertos à visitação publica.

segunda-feira, 10 de julho de 2017

Os “novos” liberalismos e a doutrina social da Igreja


No mundo todo, nesse tempo de incerteza e buscas de novos caminhos, vem sendo apresentadas supostas novas formas de liberalismo. Na Europa, a eleição de Macron para presidente da França deu força ao “liberalismo social”, que inclui uma real igualdade de oportunidades como condição para a liberdade individual. No Brasil, a Fundação Perseu Abramo designou “liberalismo popular” a uma tendência da população de baixa renda que parece querer “menos Estado” e mais espaço para a iniciativa individual na economia.
O ufanismo de uns e o alarmismo de outros amplifica certas tendências, dando-lhes contornos maiores do que realmente têm. Contudo, vale aqui um diálogo com a doutrina social da Igreja – que não é um programa ideológico ou partidário e por isso mesmo se propõem a dialogar com todos que querem construir o bem comum.
Assistimos a uma crise mundial dos Estados sociais, que mantém a economia de mercado, enquanto as demandas e os direitos sociais ficam a cargo do Estado. Trata-se de uma linha hegemônica na maioria dos países ocidentais ao longo do século XX, que costuma ser associada à socialdemocracia, apesar de se apresentar em muitos outros programas políticos.
Em grande parte, essa crise se deve a razões de ordem material, pois os governos não conseguem atender às crescentes necessidades sociais com os recursos disponíveis. Mas também reflete o descontentamento das pessoas que buscam um reconhecimento de sua dignidade e de sua capacidade de escolha que não é adequadamente atendido por programas assistenciais de Estados centralizadores.
Nessa perspectiva, entende-se a sabedoria da doutrina social da Igreja, que muito antes da crise atual já propõem que a pessoa, com sua dignidade e sua capacidade de protagonismo, solidariedade e solução dos próprios problemas, seja o centro tanto das políticas econômicas quanto das sociais.
Superando os esquematismos que contrapõem mercado e Estado, como se as respostas a todos os problemas tivessem que vir de um ou de outro, a Igreja sempre viu, nas palavras de Bento XVI, “a necessidade de um sistema com três sujeitos: o mercado, o Estado e a sociedade civil” (Caritas in veritate, 38).
O desejo de liberdade e realização pessoal não pode ser confundido com vitória do individualismo. A população não quer um Estado omisso nas questões sociais e econômicas, mas sim um Estado subsidiário – isso é, um Estado que ajuda (subsidia) as pessoas a resolverem seus problemas, sem impor ideologias ou formas de resposta.
Francisco Borba Ribeiro Neto
Jornal "O São Paulo", edição 3158, 5 a 25 de julho de 2017.

Você tem fome de que? De tempo!

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte

Ana Lydia Sawaya é professora titular de Fisiologia da UNIFESP - campus São Paulo e é conselheira do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

Outro dia na saída de um evento deparei-me com três potinhos onde os participantes tinham que escolher um deles e depositar sementes de feijão para responder à frase colada ao vidro: você tem fome de que? Num dos potinhos estava escrito: de cozinhar (era um evento sobre nutrição), mas estava quase vazio (salvo alguns aficionados...). O que estava cheio até à borda dizia: de tempo!
A grande fome de hoje é a fome de tempo! Mas o tempo é algo de que podemos dispor com a nossa liberdade. Está à nossa mão e ao nosso dispor. Santo Agostinho dizia que o tempo existe no espírito do homem, é uma extensão do nosso espírito. É em nosso espírito que reside a memória do passado, a intuição do presente (o presente do presente) e a espera do futuro. Então ele depende essencialmente da nossa liberdade!
Mas quem roubou o nosso tempo? Por que ele escapou de nossas mãos?
Um escritor do leste europeu, Václav Belohradsk, nos dá uma pista. Ele diz: “Poderíamos sintetizar assim a essência daquilo que nos ameaça: os Estados programam seus cidadãos, as indústrias, seus consumidores, as editoras, seus leitores etc. Toda a sociedade, aos poucos, torna-se algo que o Estado produz” (L’Altra Europa, 1986, apud L. Giussani O eu, o poder, as Obras, São Paulo: Cidade Nova, ,2001). Podíamos acrescentar: a televisão, seus telespectadores, o Facebook ou Istragram, os seus visualizadores.
Somos cada vez mais de-finidos por um poder externo à nossa vontade e que vem de fora. Que pretende determinar nossa fome e nossos desejos, oferecendo desejos que não são realmente satisfatórios ou conforme à medida do nosso coração. Estamos sempre fora de nós mesmos e assim perdemos o TEMPO que é essencialmente nosso. Somos cada vez menos criativos e cada vez mais passivos, vítimas de um tempo que não foi determinado por nós e, por isso, cada vez mais desnorteados e vazios. É comum ouvir de quem trabalha com crianças que sofrem com obesidade, frases do tipo: ‘eu preciso sentir a boca cheia’. Esses profissionais relatam que essa sensação parece preencher o vazio, a tristeza, o tédio e a carência afetiva que as crianças descrevem sentir.
A coisa mais importante a fazer é entender o problema, a armadilha que a sociedade moderna e o poder nos fizeram entrar. E retomar o nosso TEMPO em nossas mãos.  Escolher aquilo que preenche nossas almas e não nossas bocas ou nos iludem com sensações prazerosas momentâneas, mas que incrementam o vazio logo que passam. E o que preenche nossas almas?
A tradição da Igreja, em particular dos monges, nos ensina muitas coisas a esse respeito. Em um livro, extremamente didático O Céu Começa em Você (Petrópolis: Vozes, 1998) A. Grun explica que o primeiro passo é reservar diariamente um tempo (meia hora, por exemplo) para ficar quieto, e aprender a permanecer em si mesmo. Assim quando a turbulência interior que é como uma água em grande movimento (lembra da correria e falta de tempo que agita tudo?) se aquietar, vou começar a enxergar, a entrar no âmago dos meus pensamentos e discerni-los (a agua sem movimento reflete meu verdadeiro rosto). E aos poucos aparecerá quem sou eu, o que realmente desejo, o que me incomoda e o que devo fazer. Os pensamentos e sentimentos maus e os bons virão à tona e poderei trata-los com a oração e iniciar um processo de cura em direção à paz que é o que o nosso coração mais anseia.
Nessa nova condição de vida descobriremos que o tempo se amplia, e aumenta de forma surpreendente; e que temos tempo de fazer tudo o que nos alegra e nos é necessário. Veremos que quem fez o mundo o fez em ordem e não uma desordem. E descobriremos como ensina Santo Agostinho que o tempo, na verdade, é uma dimensão do nosso espírito.
Jornal "O São Paulo", edição 3158, 5 a 25 de julho de 2017.

segunda-feira, 3 de julho de 2017

A unidade pode superar o conflito?


Um dos quatro postulados que o Papa Francisco aplica à doutrina social da Igreja na Evangelii Gaudium é “a unidade prevalece sobre o conflito” (EG  226-230). Num momento conflitivo e polarizado como o atual, poucas afirmações podem ser mais desafiadoras do que essa.
Não se trata de uma ingenuidade que fecha os olhos para a realidade: “O conflito não pode ser ignorado ou dissimulado; deve ser aceito. Mas, se ficamos encurralados nele, perdemos a perspectiva, os horizontes reduzem-se e a própria realidade fica fragmentada. Quando paramos na conjuntura conflitual, perdemos o sentido da unidade profunda da realidade” (EG 226).
Para superar as atuais dificuldades do País, temos que agir juntos, sermos capazes de superar os interesses privados e buscar o bem comum, dialogar para encontrar caminhos novos. Mas parece que estamos mais preocupados em destruir os argumentos e anular o trabalho dos que pensam diferente, do que em crescer com eles e criar espaços onde todos possam contribuir e ter sua dignidade reconhecida.
Se imperam ideologias e fundamentalismos, reina o sectarismo. Se nos abrimos para a realidade e para uma racionalidade integral, que não se limita ao instrumental, mas enfrenta também os desafios da ética e do sentido das coisas, reina o diálogo e se trilha o caminho para a unidade e a solidariedade.
Quando nos fechamos em nossas ideologias, queremos impor nossos argumentos e forçar a realidade a entrar em nossos esquemas. Quando queremos verdadeiramente conhecer a realidade e superar seus desafios, somos obrigados a reconhecer a existência e a contribuição dos demais.
Hoje a defesa intransigente de interesses particulares e o apego obstinado às próprias posições afastam os brasileiros desse caminho de unidade capaz de construir o bem comum.
Mas o que pode fazer alguém ir além dos próprios interesses ou reconhecer a verdade (ainda que parcial) das ideias do outro? É Bento XVI que responde indiretamente, em seu discurso inaugural da Conferência de Aparecida: “Onde Deus está ausente, o Deus do rosto humano de Jesus Cristo, estes valores [que constroem a unidade] não se mostram com toda a sua força, nem se produz um consenso sobre eles. Não quero dizer que os não-crentes não podem viver uma moralidade elevada e exemplar; digo somente que uma sociedade na qual Deus está ausente não encontra o consenso necessário sobre os valores morais e a força para viver segundo a pauta destes valores, também contra os próprios interesses” (13 de maio de 2007).
Ajudar, com seu testemunho, a construir essa unidade é uma tarefa primordial dos cristãos na atual conjuntura brasileira.
Francisco Borba Ribeiro Neto
Jornal "O São Paulo", edição 3157, 28 de junho a 4 de julho de 2017.

Uma justa compreensão da laicidade

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Daniela Jorge Milani é mestre e doutoranda em Filosofia do Direito na PUC-SP e advogada em São Paulo.

Estado laico não é estado antirreligioso ou ateu, não é hostil à religião ou censor de práticas religiosas em espaços públicos, não seleciona entre argumentos que podem e não podem ser debatidos publicamente, não exclui, não ergue muros!
São muitos os equívocos na compreensão deste instituto político-jurídico.
Primeiro, cabe dizer que não foi Cristo ou a Igreja que deu origem a um Estado fundido com a religião. Na verdade, desde a Antiguidade clássica era a religião que legitimava o poder familiar e civil. O poder temporal decorria do poder religioso. Não havia separação.
No Egito o Faraó era considerado o próprio Deus, portanto a obediência lhe era devida nesta condição. Nas famílias e tribos da Grécia e Roma antigas os primogênitos e herdeiros das fórmulas religiosas sagradasé que se tornavam seus chefes. Cidades eram fundadas a partir de um ritual religioso. Significa dizer que não havia divisão entre poder espiritual e civil, o poder era uno.
Jesus de Nazaré foi subversivo nessa questão, pois ao dizer: “A César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, retira do imperador parte de seu poder. Foi uma completa mudança de paradigma.
A Idade Média se caracterizou pela presença da Igreja na sociedade, tendo o Papa como representante de Deus na terra. Porém, a Igreja também sofria com esta situação, pois o ideal de submissão do poder temporal ao espiritual se transformou em ingerência do poder do império sobre questões internas da Igreja, reis nomeando e destituindo bispos e papas conforme interesses políticos. Evidente que isto gerou enormes abusos. Viu-se também o fenômeno do cesaropapismo, em que reis pretendiam anexar a seu poder civil o poder espiritual com o qual Cristo havia investido sua Igreja, pretendendo ser eles próprios os representantes de Deus na terra.
O início da Igreja no Brasil sofreu as mesmas interferências indevidas. O Estado era católico, confessional, isto é, a Igreja era completamente submetida à Coroa Portuguesa. Não havia autonomia dos bispos e padres. Diversos direitos eram restringidos a cidadãos não católicos.
Ao contrário do que se possa imaginar, a separação entre os poderes temporal e espiritual é totalmente aceito pela Igreja.
A laicidade do Estado garante não apenas a autonomia das esferas civil e religiosa, mas a igualdade de direitos entre os cidadãos independente de sua crença. Não significa, todavia, hostilidade em relação à religião ou supressão do âmbito público e da política de manifestações religiosas, da expressão dos cidadãos religiosos e das argumentações motivadas por crença em Deus. Esta seria uma visão ideológica de laicidade, parcial, , não neutra.
O verdadeiro Estado laico reconhece a liberdade de crença e não crença, acolhe e congrega, favorece o diálogo e a cooperação, faz parcerias em prol do bem comum, não nega acesso ao ambiente público e político por motivos religiosos a qualquer cidadão. Afinal a religião está presente com força na pós-modernidade, havendo quem fale em pós-secularização, isto é, na persistência da religiosidade e da fé, não obstante a promessa de libertação racionalista do Iluminismo e do cientificismo.
A diferenciação é imprescindível para não nos tornarmos um país laicista, excludente, que apenas tolera a religião e vê o cidadão religioso como alguém de menor importância e, em seu extremo, chega a proibi-lo de utilizar símbolos de sua religião em escolas, empresas e repartições públicas, como tem ocorrido na França.
Jornal "O São Paulo", edição 3157, 28 de junho a 4 de julho de 2017.