segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Natal do Deus conosco

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Padre Reginaldo Manzotti é coordenador da Associação Evangelizar é Preciso e pároco reitor do Santuário Nossa Senhora de Guadalupe, em Curitiba (PR). Apresenta diariamente programas de rádio e TV.

Mais uma vez nos preparamos para comemorar o Natal. A cada ano a sensação que se tem, através das propagandas vinculadas na mídia, é que está se perdendo mais e mais o verdadeiro sentido do Natal.
Papai Noel tornou-se o símbolo do Natal, e a festa do Deus Menino, que nasceu numa simples manjedoura, pobre entre os pobres, na gruta de Belém, tornou-se um pretexto para um consumismo desenfreado.
Até mesmo entre nós católicos, muitos sabem que celebram o nascimento de Jesus, mas não se atém à grandiosidade que envolve este fato. A festa do Natal é de fundamental importância para o cristianismo, pois se celebra a encarnação de Deus feito homem (Jo 1, 14).  Jesus, o Emanuel, Deus Conosco que entra na história sendo frágil criança, é Deus que se esvaziando de si mesmo, vem a nós, assumindo nossa condição humana em tudo, menos no pecado. Vem para trazer a luz, a paz, a salvação. Juntamente com a Páscoa, o Natal é uma das maiores festas da religião católica.
Nesse tempo é comum passarmos nas ruas e vermos os moradores pintando, arrumando, decorando suas casas para o Natal, isso é válido, mas não podemos nos esquecer que é em nosso coração que Jesus quer nascer e renascer a cada ano.  Por isso a Igreja, Mãe e Mestra oferece um tempo propício para nos prepararmos para viver o Natal em toda sua plenitude. Este tempo chama-se Advento – chegada.
Esse tempo que vivemos e nos torna mais humanos é uma graça especial de Deus. Ele a cada ano nos concede este momento de humanização. Enquanto a ressurreição é o momento da eternização do humano, o Natal é a humanização do eterno. E ao celebramos o eterno no humano nos tornamos melhores. Parece óbvio, mas o mundo se torna mais solidário porque os homens recebem neste tempo uma graça de Deus.
A noite santa e o dia de Natal têm esse encanto de nos fazer olhar para aquilo que há de mais digno em cada ser humano: o divino corporizado, transformado, materializado. Somos chamados a olhar o lado bom e a melhor parte que cada um de nós tem. Por isso o Natal é tão especial e maravilhoso.
O encanto vem do Natal porque nele o lado de Deus presente em nós fica mais latente, o pedaço de Deus derramado em cada ser humano pulsa mais forte e no mesmo ritmo que nossos corações. Mesmo os cristalizados, endurecidos, mesmo aqueles que ficaram amargos, aqueles que ficaram profundamente marcados pela mundaniedade, explodem diante do eterno, diante da manifestação frente a Deus, que do alto dos céus abre as nuvens, passa e se faz um de nós. A noite de Natal permite bombear em todas as nossas veias, a eternidade que existe dentro de nós.
Há coisas ruins, há mágoas? Supere-as. Um anjo apareceu aos pastores e anunciando o nascimento do Menino Jesus os encheu de luz, mas o que disse em primeiro lugar não foi glória ou paz, foi: “Não tenhais medo” (Lc 2, 10a), não temais, não tenhais pavor, não desiludais.
O mal que pode estar em nós é infinitamente menor do que o bem, porque Deus o eterno, materializou-se e nós somos um pedaço de Deus.
Natal é Natal porque Jesus nos dá esse presente. O Verbo se fez carne, o Verbo se fez um de nós. A palavra se fez carne e se fez luz. Vale a pena insistir, vale a pena deixar a luz nos guiar. Essa luz, esse Cristo que veio nos trazer um jeito diferente de olhar o mundo, tem que ser um referencial não só no Natal, mas sempre.
Jornal "O São Paulo", edição 3082, 17 de dezembro de 2015 a 5 de janeiro de 2016.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

A esperança do Natal em meio à crise

Editorial do jornal O São Paulo, ed. 3082, de 17 de dezembro de 2015 a 5 de janeiro de 2016.


Num momento de crise econômica, política e social, como este atual, nossa mentalidade consumista e cética tende a pensar este Natal como aquele “de poucos presentes”. Ou reduzi-lo a um momento de esquecimento, de alegria e celebração, onde não lembramos dos problemas que voltarão quando a festa acabar.
Mas o Natal, inclusive o da crise, é uma festa de esperança, onde celebramos o fato de que Cristo nos “primereia”, no neologismo do Papa Francisco.  Ele vem primeiro, vem em nosso auxílio sem que tivéssemos feito algo para merecê-lo.
J.R.R. Tolkien escreveu que as coisas de Deus são sempre surpreendentes e imprevistas, ainda que tenhamos passado toda a nossa vida ansiando por elas. Cristo nos “primereia”, toma a iniciativa, vem ao nosso encontro, e nós, mesmo que sempre tenhamos desejado isto, nos surpreendemos cativados.
A celebração do Natal não é só do menino-Deus que nasceu na manjedoura há séculos. É a celebração daquele primeiro encontro feito por cada cristão em sua caminhada na fé, que cada um de nós recorda com gratidão e ternura.
Todos nós, num dia, numa ocasião específica, encontramos Cristo em nossa vida. Geralmente foram ocasiões que pareciam banais. Outros pensariam em autossugestão, “coincidências” ou frutos do nosso trabalho e inteligência. Mas nós sabemos que não foi nada disso, que sugestões e coincidências não explicam aquela ocasião, que nossas capacidades não poderiam criar aqueles resultados.
Foi Ele que quis se manifestar em nossa vida, que “primereiou”, tomou a iniciativa e veio até nós. A cada Natal somos convidados a lembrar não só o nascimento de Belém, mas também este que aconteceu e continua acontecendo em nossa vida.
A esperança cristã não vem de nossas forças. Pelo contrário, é ela que nos dá forças. Uma esperança que nasce porque Deus vem até nós, realmente nos ajuda quando precisamos.
A celebração natalina será um gesto nostálgico ou escapista, uma simpática ilusão, se não nos lançarmos na realidade a partir desta esperança. Por isso, a crise não é um obstáculo para a festa, mas uma oportunidade de nos reencontrarmos com a razão de nossa esperança.
É um caminho de solidariedade, partilha e dedicação ao outro.  O encontro com Cristo não é um tesouro que pode ser acumulado. Guardado, se corrompe e perde seu valor. Distribuído, empenhado na construção do bem, se multiplica e mostra todo o seu valor.

O Natal da crise não é aquele de poucos presentes. É o Natal onde o verdadeiro Presente pode se tornar ainda mais presente. Basta nos entregarmos com confiança à esperança que nasce do encontro com Cristo, vivendo-a na solidariedade com os que estão nas “periferias da existência”.

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segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

A cultura da misericórdia

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Francisco Borba Ribeiro Neto, 
coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

O Jubileu Extraordinário da Misericórdia, proclamado pelo Papa Francisco, nos convida à conversão a uma mentalidade que é exatamente oposta à mentalidade individualista e calculista de nossos tempos. Na tradição cristã, o trabalho cultural para construir esta nova mentalidade começa pelo arrependimento e a prática das obras de misericórdia, que correspondem ao ir até as periferias da existência, como diz o Papa.
Talvez o termo arrependimento pareça muito duro para nossos interlocutores. Mas todos nós – e neste tempo talvez até mais do que antes – sentimos a necessidade de nos conhecermos, entender quem somos, olhar de frente e sem culpa nossas frustrações e nossos fracassos.
A primeira e mais evidente “libertação do pecado” é poder reconhecer nossos limites e nossos erros sabendo que eles não serão obstáculo para nos sentirmos amados. Na sociedade de hoje, para sermos aceitos e nos sentirmos estimados, temos a obrigação de aparentar uma perfeição e uma adequação que nos oprime. O chefe tem que aparentar poder e segurança, o subalterno tem que ser muito eficiente, os jovens têm que parecer legais e liberados. Até os enamorados, os pais e os filhos se sentem pressionados pelas expectativas uns dos outros.
Só o amor misericordioso, gratuito e ilimitado de Deus pode nos dar a liberdade de sermos nós mesmos, de nos descobrirmos acolhidos sendo o que somos. Da gratidão por esse amor nasce o verdadeiro arrependimento. Trata-se de um “conhece a ti mesmo” que não é socrático, mas cristão, pois nasce do amor.
Uma cultura da misericórdia implica nesta sabedoria que reconhece o próprio pecado porque conhece o amor de Deus. A sabedoria de quem é capaz de discernir seus erros e os dos outros, mas reconhece que é o amor e não o erro que dará a última palavra sobre nosso destino – e prefere a misericórdia à severidade, como lembrou o Papa Francisco na Misericordiae Vultus.
O exemplo de Francisco ilustra o quanto nós e o mundo ansiamos por isso. A resposta a este anseio implica num discernimento, que não pode ser desculpa para a condenação do outro, mas traz uma luz verdadeira à questão de gênero, ao tráfico de drogas, aos casais em crise, ao combate à pobreza e a tantas outras situações de nossa sociedade.
Esta sabedoria não será assimilada por discursos. Nosso gesto da acolhida, que é o verdadeiro início de qualquer obra de misericórdia, é fundamental não só para que o mundo reconheça a gratuidade do amor, mas também para que reconheçamos em nós mesmos a dinâmica de amor acontecendo.
Nas décadas de 1960 e 1970, a Igreja passou por uma “revolução cultural” em relação ás obras de misericórdia. Foi a época da crítica ao assistencialismo, da percepção que a missão “não era dar o peixe, mas ensinar a pescar”, que a dimensão política da caridade implica numa transformação das estruturas.
No contexto atual, em que se reconhece claramente as obrigações sociais do Estado, mas no qual são evidentes seus limites para realizá-las, a reflexão cultural sobre a misericórdia implica em repensar com que luz o amor cristão e a experiência das obras de misericórdia pode iluminar as políticas públicas, a ação do Terceiro Setor e a construção de uma sociedade mais justa.
A misericórdia implica numa mudança de mentalidade que atinge todas as dimensões da vida pessoal e social. Sem esta mudança, a mensagem cristã corre o risco de se perder no pietismo e no intimismo, deixando de ser força de construção de uma nova vida para todos nós.
Jornal "O São Paulo", edição 3081, 10 a 16 de dezembro de 2015.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Esquecer o amor é desfazer-se do homem

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Ricardo Gaiotti Silva é advogado, juiz eclesiástico no Tribunal Interdiocesano de Aparecida, mestrando em Filosofia do Direito pela PUC-SP e mestrando em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade de Salamanca - Espanha.

A sociedade internacional novamente se depara com inúmeros problemas que nos levam, inclusive, a desacreditar na possibilidade da construção de um mundo verdadeiramente humano, no qual as pessoas possam respeitar e lutar pelos direitos dos homens. Surge então o questionamento: o mundo tem solução? Qual é o remédio para o egoísmo e individualismo presente? A paz é possível?
Foram justamente essas inquietações que levaram o Papa Bento XVI a apresentar, no Natal de 2005, sua primeira encíclica Deus Caritas Est – Deus é amor. O pontífice, naquele momento, apontava que a palavra “amor” estava cada vez mais sendo utilizada de forma descontextualizada. Além disso, o próprio nome de Deus – “amor” estava sendo associado a vingança, ódio e violência. Portanto urgia no mundo, para o Papa, uma mensagem muito concreta sobre o significado e alcance do amor.
De fato, o Papa Bento XVI traz consigo e nos comunica a esperança própria do amor, ou seja, uma esperança que parte do acolhimento do dom gratuito de Deus para como os homens. Uma vez que “Deus tanto amou o mundo, que lhe deu seu Filho único” (Jo 3,16), todos podem responder a esse dom, colaborando uns com os outros na construção de um mundo melhor.
A resposta a este amor torna-se uma proposta concreta para a sociedade, gera concretamente a solidificação de valores almejados por todos como a fraternidade, a tolerância, a paz, a justiça, a honestidade, etc. Assim, fundado na esperança própria do amor, o Papa Bento XVI nos apresentou um caminho de colaboração humana, tendo como ponto de partida a caridade. Por meio dela, toda a sociedade possui um caminho seguro na busca da paz, da justiça, da verdade. 
O Papa Bento XVI nos ensinou ainda que o amor – caritas – é sempre necessário, mesmo na sociedade mais justa. Pois, não há qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supérfluo o serviço do amor. Quem quer desfazer-se do amor, prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem.
De fato o amor não é uma utopia, mas sim uma resposta a um dom gratuito que recebemos. Isso nos impele a leva-lo para a vida pública, é em meio à comunidade que somos destinados a viver o amor. Falar de uma atitude positiva das sociedades fundadas no amor se torna uma realidade concreta, um convite sábio e exequível na busca de um mundo melhor.
Enfim, se queremos uma sociedade mais justa, devemos primeiramente acreditar no dom do amor. Acolhendo esse mistério somos levados a corresponder ao amor, com um autêntico espírito de fraternidade, pois ela é o remédio que vence o egoísmo. Há uma proposta concreta à qual a sociedade pode se dirigir: a experiência do amor! A esperança é o amor!
Como bem nos ensinou o pontífice, só haverá paz na sociedade humana se o amor estiver presente em cada um dos membros, se em cada um se instaurar a ordem querida por Deus. A paz permanece palavra vazia de sentido, se não se funda na ordem fundada na verdade, se não é construída segundo a justiça, alimentada e consumada na caridade, realizada na liberdade, ou seja, enraizada no amor.
Quem quer desfazer-se do amor, prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem!
Jornal "O São Paulo", edição 3080, 2 a 8 de dezembro de 2015.

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Barragens rompidas, vidas perdidas: o desastre ecológico e a Laudato si’

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Dalton Luiz de Paula Ramos é professor titular de Bioética da USP - Faculdade de Odontologia, membro da Comissão de Bioética da CNBB e da Pontifícia Academia para a Vida do Vaticano e conselheiro do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

Assistimos, estarrecidos, o noticiário dos recentes acontecimentos em Minas Gerais, quando o distrito de Bento Rodrigues, em Mariana, quase que inteiramente submerge num mar de lama e detritos, matando e sepultando   pessoas, destruindo o meio ambiente. Não foi um desastre que se possa atribuir apenas às forças da natureza, como um furacão ou terremoto. Houve um pequeno tremor de terra antes do rompimento das barragens, mas, teoricamente, uma barragem de tal envergadura deve ser segura em relação a acidentes até de grande magnitude.
Uma mineradora que processa minérios e produz resíduos e uma barragem que se constrói para armazena-los usam ciência e técnica, frutos do gênio humano. Mas não é a tecnologia em si que é ruim; é seu uso errado que gera a destruição. No caso, um uso imprudente, que não quis arcar com os custos trazidos pelas medidas de segurança. Como nos lembra Papa Francisco na Laudato si': "A tecnociência, bem orientada, pode produzir coisas realmente valiosas para melhorar a qualidade de vida do ser humano, desde os objetos de uso doméstico até aos grandes meios de transporte, pontes, edifícios, espaços públicos" (nº 103). A ciência e a tecnologia; tem valor, mas até que ponto isso pode favorecer o desenvolvimento e a protecão da vida e quando isso passa a ser ferramenta de destruicão?
A construção malfeita de uma barragem e/ou com sua má conservação, ou mesmo não se empregar todos os recursos tecnológicos conhecidos para se processar seus resíduos (o que evitaria que se acumulassem em grandes volumes e reduziria o risco ambiental) representam um mal-uso da tecnologia, por negligência ou omissão. Se isso acontece é porque o interesse que está em jogo, o objetivo primeiro e último da tecnologia, não são a proteção de cada pessoa humana, do bem comum e mesmo do meio ambiente, mas sim os interesses de determinados grupos econômicos e de poder que visam o lucro.
E quem mais sofre com as consequências desses atos? Frequentemente os mais pobres. Não necessariamente porque a enxurrada de lama e detritos vai destruir só suas casas, mas porque estes terão menos recursos para reconstruir o que foi destruído e menos chances de fazer valer seus direitos, como por exemplo pleiteando justas e rápidas indenizações.
Nesse sentido clama Papa Francisco, na Laudato si': “A falta de preocupação por medir os danos à natureza e o impacto ambiental das decisões é apenas o reflexo evidente do desinteresse em reconhecer a mensagem que a natureza traz inscrita nas suas próprias estruturas. Quando, na própria realidade, não se reconhece a importância de um pobre, de um embrião humano, de uma pessoa com deficiência - só para dar alguns exemplos -, dificilmente se saberá escutar os gritos da própria natureza. Tudo está interligado"(nº 117).
Como tudo na vida social, a extração dos bens que a natureza nos oferece, na mineração e outras atividades afins, deve partir do reconhecimento do valor e dignidade de cada vida humana que possa estar envolvida. Isso implica em procurar causar um mínimo de agressões ao ambiente, construir instalações seguras, elaborar e implementar planos emergenciais frente a eventuais acidentes, etc. Este deve ser o objetivo do uso de qualquer recurso tecnológico; precisamos nos reeducar nesse olhar voltado para a pessoa e para a vida humana. Do contrário veremos outros rios de lama.
Jornal "O São Paulo", edição 3079, 25 de novembro a 1º de dezembro de 2015.

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Pressuposto para superar a crise

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Klaus Brüschke, é membro do movimento dos Focolares, ex-publisher da Editora Cidade Nova, articulista da revista Cidade Nova.

O cientista político alemão Ernst-Wolfgang Böckenförde avança um dilema das democracias: o Estado livre e democrático requer pressupostos que ele mesmo não tem condições de garantir. Pressupõe cidadãos e uma sociedade que cultivem valores livres e democráticos, mas não pode forçá-los a isso. O mesmo vale para atitudes éticas, plurais, inclusivas…
O momento que o Brasil atravessa hoje retrata esse dilema. Em tese, nossas instituições são sólidas e funcionam. Mas a atual crise não é apenas a conjunção de fatores políticos, econômicos e éticos desfavoráveis; é também o esgotamento de um modelo que não mais dá conta da sociedade do século XXI em toda a sua globalidade.
As instituições por si só não garantem “um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias” – como reza o Preâmbulo da Constituição. Não garantem os direitos básicos dos cidadãos, nem as necessárias reformas – que se protraem há governos e legislaturas –, nem tampouco a inclusão das minorias e das diversidades na trama social, ou o desenvolvimento justo e sustentável…
Uma nação assim – pela qual gerações inteiras lutaram e muitos pagaram o preço da liberdade ou da vida – pressupõe o compromisso do conjunto dos atores políticos. Não é projeto a ser confiado a um único grupo político, ainda que legitimamente eleito. Contudo, há uma barreira – ao lado de outras – ao envolvimento de todos no desenho do “Brasil que queremos”. Nossa cultura ocidental moderna desenvolveu um modo de pensar dualista. Vemos o mundo em binômios antagônicos e excludentes (conservadorismo-progressismo, situação-oposição, direita-esquerda…; para alguns, até mesmo igualdade-liberdade). Isso impregna nosso presidencialismo de coalizão, a dinâmica do legislativo, os movimentos populares. E tudo é filtrado, talvez pela forte impregnação moralista que nos acomete, pelo binômio certo-errado. A visão divergente é considerada errada e, portanto, passível de rejeição e desprezo (não só a visão; também quem vê assim…). Há setores bem intencionados – cristãos inclusive – que assumiram como bandeira combater ideias que não compartilham, reconhecendo nelas uma conspiração de agentes do mal.
Chiara Lubich sugeria que na política se aplicasse um princípio que parafraseia o Mandamento Novo de Jesus: amar o partido do outro como o próprio. O que parece um aforismo ingênuo e inaplicável, na verdade, implica a atitude de levar a sério as várias linhas políticas (ou econômicas, ou filosóficas, ou sociais, ou religiosas), reconhecendo que todas se revestem de importância, são possuidoras de verdades e valores e têm algo a contribuir. Significa saber que o verdadeiro, o bom e o belo para uma sociedade se descobrem conjuntamente, mediante a humildade e a admissão das próprias insuficiências, a sincera capacidade de diálogo, a escuta desarmada, o reconhecimento de intentos comuns.
É o primeiro passo para a árdua e desafiadora operação de articular as forças plurais da sociedade na construção de um projeto de País segundo um princípio de fraternidade, com a perspectiva de dar formas concretas ao bem comum.
Jornal "O São Paulo", edição 3078, 18 a 24 de novembro de 2015.

terça-feira, 17 de novembro de 2015

O clamor após os atentados em Paris: paz para o Oriente e o Ocidente


Editorial do jornal O São Paulo, ed. 3078, de 18 a  24 de novembro de 2015.

“Os responsáveis políticos de Bagdá têm o urgente dever de colaborar [...] para eliminar todos os motivos da intervenção armada [... Mas] perante as tremendas consequências que uma operação militar internacional teria para as populações do Iraque e para o equilíbrio de toda a região do Médio Oriente, já tão provada, mas também para os extremismos que daí poderiam derivar digo a todos: ainda há tempo para negociar; ainda há espaço para a paz; nunca é tarde demais para se compreender e para continuar a negociar.” (São João Paulo II, Ângelus de 16/03/2003)
Desde o início da crise no Iraque, os papas se pronunciaram contra a guerra. Não foram ouvidos e os conflitos aumentaram, ganhando os terríveis contornos vistos com a crise dos refugiados e os atentados em Paris.
Diante do terror, são necessárias ações enérgicas para coibir a violência, mas a guerra pode inibir uma injustiça ou uma violência maior, sem construir a paz. A força das tropas aliadas pode ter destruído a ameaça nazista, mas a paz nasceu da solidariedade entre aqueles que reconstruíram seus países, chegando – com dificuldades e imperfeições – à atual União Europeia.
As intervenções militares das grandes potências no Oriente Médio têm se orientado por interesses econômicos e geopolíticos e não por razões humanitárias ou pela solidariedade internacional. Agora que a crise humanitária dos refugiados e os atentados em Paris e no mundo todo sugerem que a ação militar é inevitável, para evitar males maiores, os princípios de construção da paz não podem ser esquecidos.
Uma guerra só é justa quando evita um mal certo e maior, esgotadas as alternativas pacíficas, tendo condições de êxito e não se usando a força além do necessário (cf. Catecismo da Igreja Católica, Nº 2309).
Além disso, boa parte dos terroristas atuais, ainda que venham de famílias árabes, nasceram e cresceram nos países que atacaram. Eles e suas vítimas (assim como os jovens que matam e morrem nas periferias brasileiras) mostram o “lado sombrio” de uma sociedade que apregoa o bem-estar material, a tolerância e a liberdade, mas condena grande parte de seus jovens às “periferias da existência” – onde a falta de sentido para a vida e a exclusão social alimentam a violência.
“Mais uma vez, nestes últimos dias, o terrorismo cumpriu a sua obra nefasta, [...] continuo a rezar pelas vítimas, renovo a afirmação da minha proximidade espiritual a tantas famílias que choram os seus mortos [...] Ninguém pode abandonar-se à tentação do desencorajamento ou da desforra: o respeito à vida, a solidariedade internacional, a observância à lei devem prevalecer sobre o ódio e sobre a violência [...] Confiamos ao Deus da misericórdia e da paz, pela intercessão de Maria Santíssima, os povos daquela parte do mundo.” (São João Paulo II, Ângelus de 16/11/2003).


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segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Medidas econômicas e construção do bem comum

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Antonio Carlos Alves dos Santos é professor titular de Economia na Faculdade da PUC-SP e conselheiro do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

Um ano após as eleições que a reconduziram ao cargo de Presidente da República, Dilma Rousseff ainda continua encontrando enormes dificuldades para aprovar no Congresso Nacional as medidas necessárias para corrigir o péssimo legado econômico do desenvolvimentismo populista do seu primeiro mandato.
A fragilidade política e a aparente falta de convicção em relação a urgência de um forte ajuste fiscal levou à decisão, infeliz, de apresentar uma proposta orçamentária para 2016 com déficit primário, que foi fundamental na decisão da agência de classificação de risco Standard & Poor's de retirar o grau de investimento do País. Assustado com a possibilidade das outras duas agências risco adotarem a mesma posição, que teria graves consequências para nossa já combalida economia, o Governo Dilma, reapresentou uma nova proposta de orçamento com medidas de ajuste fiscal focado em aumento da receita.
 Esta estratégia de ajuste fiscal, segundo a literatura especializada, não é, no entanto, a mais recomendável. O corte de despesas ainda que, politicamente difícil, seria a melhor opção. Os cortes de gastos implicam em menor impacto sobre a produção, ou seja, tem um efeito recessivo menor, em razão da retomada do investimento privado, que é o grande responsável pelo crescimento econômico em uma economia de mercado.
Infelizmente, em razão da enorme fragilidade política da atual administração, a opção politicamente mais viável acaba sendo mesmo o aumento de impostos, posto que o foco do ajuste fiscal, no curto prazo, deve ser a geração de um superávit primário, que dificilmente será suficiente para a estabilização e ou redução da dívida pública como proporção do PIB, mas que deverá ser o suficiente para demonstrar o compromisso da atual administração com o equilíbrio fiscal durante o seu mandato.
O retorno da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) é a melhor solução, se comparado à alternativa que seria o aumento do CIDE (Contribuição de Intervenção de Domínio Econômico) sobre o combustível, que teria forte impacto sobre a inflação. Outras medidas, como é o caso do retorno do Imposto de Renda para lucros e dividendos distribuídos e maior esforço na cobrança de devedores da dívida ativa da União, não eliminam a necessidade da aprovação da CPMF, mas sinalizariam um compromisso da atual administração em não colocar somente na conta da classe média e dos mais pobres o custo do ajuste fiscal.
As medidas propostas na peça orçamentária para 2016, no entanto, não atacam o problema do déficit estrutural que requer medidas de longo prazo, que passam, necessariamente, por uma discussão, mais ampla, sobre o modelo de sociedade que desejamos construir. Reconhecer a existência de um desequilíbrio estrutural entre receitas e despesas, causado pela expansão do gasto social, não implica (como sugerido por alguns analistas) em um novo pacto social com a exclusão de vários direitos, que atingiria fortemente a população mais pobre.
É fundamental frisar que não há saídas magicas para atual situação econômica que, apesar de grave, nem de longe se aproxima das terríveis crises dos anos 80. Para superá-la é preciso lembrar que a pior coisa é aquela que é pior para todos e que o objetivo do agir político deve ser sempre o bem comum. O país tem instituições sólidas e saberá superar a situação atual com a retomada, sustentada, sem populismo, do crescimento econômico com justiça social. Este é e sempre será um grande desafio, que deve ser assumido por todos os brasileiros.
Jornal "O São Paulo", edição 3077, 11 a 17 de novembro de 2015.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Vamos rezar pelo Brasil!

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Ana Lydia Sawaya é professora da UNIFESP, fez doutorado em Nutrição na Universidade de Cambridge. Foi pesquisadora visitante do MIT e é conselheira do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

Quando olhamos para os governantes ou políticos do Brasil é fácil pensar que Deus dorme... O cinismo é generalizado e baseia-se no seguinte raciocínio: todos roubam e tem que roubar, arrancar dinheiro a qualquer custo e qualquer preço de tudo e de todos que conseguirem, se não, não se ganha a eleição. Não sabemos, mas pode ser que haja exceções para chegar à classe dos políticos que não atravessaram esse modus operandi. Não é difícil de constatar, porém, que se houver políticos e partidos que chegaram ao poder sem fazer nada de ilegal ou moralmente errado são pouquíssimos. E, sobretudo, não aparecem para o povo brasileiro, não se distinguem claramente dos outros; ou não podem se distinguir, a preço de serem perseguidos, isolados e não conseguirem fazer nada quando eleitos.
E então? É verdade que Deus dorme? É verdade que Ele não pode fazer nada e repousa em berço esplêndido no Seu mundo celestial e longe dos brasileiros? Claro que não!
Mas será que podem acontecer milagres e esta situação mudar e todos os “cínicos” que estão no poder atualmente serem trocados e vir alguém que ame o povo brasileiro e, sobretudo, os pobres? Que sinta verdadeira dor em seu coração de ver os milhões de pobres que em 2015 e nos próximos anos irão cair de novo abaixo da linha de pobreza? Alguém que seja realmente corajoso e saiba confiar no Bem e não apenas em si mesmo e no poder de barganhar com os outros?
Calcula-se que o dinheiro roubado ultrapasse R$ 20 bilhões de reais e, para tal montante, é muito verossímil que o número de pessoas envolvidas ultrapasse a milhares, em todos os níveis, embora os chefes possam ser poucos, tamanho é o poder nas mãos deles.
Então o que podemos fazer nós, católicos? Este é um momento de “prova” como diz o homem bíblico. É um momento precioso para quem confia em Deus; de “vestir-se de saco” e “cobrir a cabeça com cinzas” conforme faziam os judeus no Antigo Testamento para suplicar a intervenção de Deus. É o momento de voltar-se para o Deus bom e misericordioso, nesse tempo especial que toda a Igreja reza pela misericórdia conforme nos pediu Papa Francisco. Esse Deus que nunca dorme, mas trabalha sempre e cheio de desejo de fazer o bem para o seu povo e pedir-lhe: Haja, Senhor Bom e clemente! Cuida de nós! Proteja-nos contra os homens que agem mal, poços de vaidade e iludidos de que sua prata e seu outro conseguirão garantir-lhes a felicidade. Cuida, sobretudo, dos pobres! Ajuda o povo brasileiro a amadurecer a situação de democracia ainda tão frágil e muito longe de ser adequada à estatura desse grande país.
Os primeiros corajosos devemos ser nós ao ter coragem de pedir a Deus isso! E não se resignar no desânimo, desencorajados ao ver o Brasil empobrecendo. Pesquisadores mostram que o Programa Bolsa Família ajudou, sobretudo no Nordeste, e que os governantes antes de Lula deveriam ter tido a coragem que ele teve de ampliar este programa (que já tinha sido desenhado), mas, em longo prazo, ele cria apenas dependência do governo e de quem está no governo, pois não é uma política emancipatória. Sabemos também que não se acaba com a pobreza por decreto e que a única via real, definitiva e em longo prazo para acabar com a miséria e que é boa para os pobres, é a via da educação; e que o gargalo para isso é a melhoria da qualidade da educação das crianças. Assim, peçamos a Deus também que nos mande governadores, políticos, promotores, juízes que tenham a coragem de aumentar o salário dos professores, diminuir o número de alunos por sala e melhorar as condições da escola. Este gasto é pouco visível e por isso, pouco valorizado pelos governantes. Seu efeito não dá votos e nem é de curto prazo.
O que nos impede de sermos ousados e pedir com todo o nosso coração pelo Brasil? Nada. E o Senhor Bom e clemente certamente nos ouvirá, ainda mais se formos insistentes...
Além disso, o que podemos ainda fazer? Ser sérios e corretos em nosso trabalho e cuidarmos da educação em casa dos nossos filhos, pois eles podem ser os novos governadores de amanhã.
Jornal "O São Paulo", edição 3076, 05 a 10 de novembro de 2015.

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

As famílias se encontram no coração da Igreja

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
José Ulisses Leva é padre secular e professor de História da Igreja da PUC-SP.

Num instante de amor Deus nos criou. “Deus disse: Façamos o ser humano à nossa imagem e segundo à nossa semelhança” (Gn 1, 26). A Misericórdia, o carinho e o afeto de Deus são imensos. “Quando Deus criou o ser humano, ele o criou à semelhança de Deus. Criou-os homem e mulher, e os abençoou” (Gn 5, 1). No Mistério da Encarnação (cf Lc 1,35), Jesus Cristo nasceu na Sagrada Família de Nazaré (cf Lc 1, 27), para nos salvar.
A Igreja sempre esteve atenta às tristezas e angústias do nosso tempo. O Concílio Ecumênico Vaticano II aponta para Deus, mas coloca o Homem como referência das preocupações e indica a todos as alegrias e as esperanças (GS, n 1).  Assim, nossa centralidade está em Deus Uno e Trino e nosso diálogo se dá com a humanidade.
Atualmente, o Papa Francisco  utiliza nos Documentos, Homilias e Pronunciamentos uma linguagem singela, mas carregada de profundidade. Francisco sugere, não impõe. Indica, não aponta. Propõe, não dificulta. Seguindo-o, precisamos ir ao coração e ao âmago das questões familiares. Como fazer uma parceria entre Igreja e família? O que esperar do Sínodo sobre a Família no mundo contemporâneo? Certamente, as atenções e preocupações sobre a família, estão presentes nos pensamentos e atitudes do Papa Francisco. Assim, como o Altíssimo Deus cerca-nos de Misericórdia, o Papa, como Pai de todos os fiéis batizados, também se preocupa com todos os cristãos, sobretudo, com as famílias.
Quais os temas mais cruciais que o Sínodo deve expor diante dos homens e mulheres do nosso tempo? Vários temas sobre a Família, o Papa Francisco, tem elucidado nas suas Homilias e Discursos, diante dos Prelados e dos demais ouvintes na Praça de São Pedro. Recentemente, o Sumo Pontífice brindou-nos com a Bula Misericordiae Vultus, tendo por motivação central o rosto misericordioso de Deus.  “O perdão de Deus não pode ser negado a quem quer que esteja arrependido, sobretudo quando um coração sincero se aproxima do Sacramento da Confissão para obter a reconciliação com o Pai” (Carta do Papa Francisco com a qual se concede indulgência por ocasião do Jubileu extraordinário da Misericórdia, endereçada a Dom Rino Fisichella, em 01 de setembro de 2015). De fato, quaisquer que forem as propostas apresentadas, todas devem ser guiadas e abalizadas pela Sagrada Escritura. Grande prova de Amor manifestou Deus quando nos criou, especialmente, Cristo Jesus, que por nós morreu e ressuscitou (Ef 1, 20). Assim, a Igreja presente e visível em todos os Continentes, quer o melhor para seus filhos e filhas, pois nela, Deus constituiu Jesus Cristo “como cabeça da Igreja, que é o seu Corpo, a plenitude daquele que se plenifica em todas as coisas” (Ef 1, 22).
Assim, diante das expectativas e especulações do Sínodo, como cristãos participantes da Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica, qual deve ser nossa atitude? Reticente? Ouvinte? Envolvido? Historicamente, no século do Conciliarismo (século XV), a Igreja gemia e se encontrava dividida. Santa Catarina de Sena e Santa Brígida da Suécia, entre tantos outros homens e mulheres, rezaram para a Unidade da Igreja. Voltemos, também, nossos olhos a Deus e nossos corações aos lares que sofrem e busquemos sincera e retamente, à Luz da Sagrada Escritura, o melhor para as famílias. Rezemos pelo Papa Francisco e por todos os Padres Sinodais. Esse é o momento privilegiado para buscarmos o melhor para as famílias, com o mesmo espírito fraterno das comunidades primitivas assíduas na oração e na partilha (cf Jo 14, 15-17).
Jornal "O São Paulo", edição 3075, 28 de outubro a 3 de novembro de 2015.

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

O acolhimento da pessoa refugiada

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Carlos A. O. Camargo é vice-diretor da Caritas Arquidiocesana de São Paulo e membro do Pontifício Conselho Cor Unum.

É notícia corrente nos veículos de comunicação que milhares de pessoas estão abandonando seu próprio país com propósitos legítimos de buscar proteção à sua vida. Qualquer pessoa que consegue chegar a uma fronteira pedindo proteção tem o direito de – e precisa – ser acolhida prontamente. A horrenda tragédia a que são submetidos esses refugiados é fruto de graves estruturas de injustiça social, que atiçam conflitos de diversas naturezas ao redor do mundo.
A Igreja Católica considera a ajuda aos refugiados uma obrigação sua essencial, lembrando a responsabilidade evangélica de oferecer asilo aos que o procuram: "todas as vezes que fizestes isto a um destes mais pequenos, que são meus irmãos, foi a mim que o fizestes!" (Mt 25,40). A ajuda deve se estender para além do estritamente material e não se limitar ao simples fazer algo, mas envolve a participação solícita nas necessidades e no sofrimento do outro. Nesse sentido, no âmago da ação caritativa há um dar-se a si mesmo, isto é, a própria pessoa está presente na oferta àquele que recebe sua atenção, dando testemunho fértil e coerente da fé manifestada num amor que percebe a presença de Cristo nessa relação.
A Caritas Arquidiocesana, através do seu Centro de Referência para Refugiados, é o órgão da Igreja Católica de São Paulo que cuida dos primeiros passos da assistência à maior parte das pessoas que chegam ao Brasil pedindo a proteção que lhe é legalmente garantida pela sua condição de solicitante de refúgio. É um trabalho desenvolvido junto com o Alto Comissariado das Nações Unidas para o Refugiado (ACNUR) e o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), além da indispensável colaboração de várias outras entidades. Esse serviço objetiva garantir a assistência, proteção e integração dos refugiados nas estruturas da sociedade, contribuindo para que resgatem sua autoestima e revelem suas próprias habilidades, para que se tornem independentes e respeitados onde estabelecerem sua nova vida.
Entretanto, o interesse em compreender e ajudar a aliviar o sofrimento dos que chegam solicitando o refúgio contrasta, às vezes, com o medo do excessivo aumento numérico deles, pois isso passa a provocar uma impressão de confronto com culturas estranhas, que poderiam perturbar os hábitos de vida já estabelecidos na sociedade que os recebe. Os que antes eram vistos com simpatia ou compaixão, mas moravam em lugares longínquos, passam a ser inoportunos e rejeitados, quando se tornam demasiadamente vizinhos. Além disso, parte do preconceito também ocorre por que os refugiados são indevidamente responsabilizados, às vezes inconscientemente, por algum dano que eles eventualmente teriam provocado na sua terra de origem, ou que poderiam vir a provocar em sua nova terra de acolhida.
Talvez esses estrangeiros recém-chegados e que pretendem construir uma nova vida por aqui, depois de penosa jornada, pudessem ser mais bem compreendidos se os meios de comunicação divulgassem os diversos exemplos reais de acolhimento fraterno surgidos da generosidade humana, de forma a repercutir na opinião pública como uma atenção positiva de maior tolerância. De fato, a capacidade do convívio entre as pessoas, independentemente de suas especificidades que podem distinguir umas das outras, está estritamente ligada ao desenvolvimento de uma mentalidade de acolhimento, fundado na caridade, que deve ser suscitada, quer na intimidade de cada uma, quer no senso comum da coletividade.
Jornal "O São Paulo", edição 3074, de 21 a 27 de outubro de 2015.

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Por que sofremos?

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Padre Reginaldo Manzotti é coordenador da Associação Evangelizar é Preciso e pároco reitor do Santuário Nossa Senhora de Guadalupe, em Curitiba (PR). Apresenta diariamente programas de rádio e TV.

Tenho percebido através das partilhas de vida, seja no rádio, na TV ou mesmo pessoalmente, que muitos não sabem lidar com o sofrimento e, por isso, hoje reflito sobre esse assunto.
O Senhor permite em sua sabedoria e pedagogia da Cruz a provação e a tribulação para nos tocar. Talvez pela atrição para o grande anseio de Deus, que cheguemos à contrição. Ele tem um propósito para todos nós e não permitiria algo ruim em nossas vidas somente para nos prejudicar.
Deus só permite aquilo que pode se transformar em algo bom. Ele não brinca conosco, Ele cuida de nós como algo muito valioso. Nós somos muitos preciosos para Ele. Tudo que falamos de Deus é pouco no que se refere ao que verdadeiramente Ele é. Se nós conseguimos imaginar que Deus é capaz de nos ferir para nos curar é porque ele nos reserva algo de bom, como nos diz Oséias: “Ele nos feriu e há de tratar-nos, Ele nos machucou e há de curar-nos” (Os 6, 1).
Às vezes, Deus pode nos ferir para nos purificar. Não por crueldade ou não nos amar, mas porque nos criou à sua imagem e semelhança. Porque nós somos preciosos para Ele. Ele sabe o quanto vivemos presos em vícios, em coisas fúteis e situações que dão alegrias muito passageiras, mas Ele quer o melhor de nós.
Deus permite passarmos por uma noite escura da fé, como viveu Madre Tereza de Calcutá, para crescermos espiritualmente. O próprio Jesus, na Sexta-feira Santa, se sentiu abandonado pelo Pai a ponto de dizer: “Eloi Eloi lama sabactani?” – Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste? Mas ele não desistiu. Ferido, Ele provou o silêncio profundo de Deus, mas não recuou.
Nossa Senhora também estava ferida, aos pés da cruz de Jesus, porque não deve ter sido fácil contemplar o Filho, inocente, morrendo daquela forma. Mas ela foi capaz de sepultá-lo, se encontrar e rezar com aqueles que o abandonaram. Ela o fez na esperança da madrugada da Ressurreição.
Muitas vezes, somos insensíveis aos apelos de Deus. Formamos um escudo em nós mesmos e a flecha divina tem dificuldade de penetrar, pois quanto mais sedimentados aos apegos das paixões, ao mundanismo, à satisfação pela satisfação, menos sensibilidade temos para Deus. E por isso sofremos!
Deus não tenta ninguém, mas Ele permite que sejamos tentados. Ele é forte e poderoso, mas o inimigo existe e quer semear em nosso coração a dúvida e a confusão. Nossa alma tem fome de Deus e precisa ser alimentada através do Sacramento da Eucaristia, ela é o alimento eterno.
Temos necessidade de comungar. Ao receber Jesus, Ele que nos envolve com seu amor. Devemos dar mais valor a Eucaristia, é preciso, após cada comunhão, adorar Cristo Vivo dentro de nós, isso irá nos curar.
Quem dera deixássemos nos encontrar com Deus. A cada momento Ele tenta nos encontrar. Caso deixemos de experimentar o amor de Deus e se em algum momento da vida nos cansarmos e nos dermos conta de nossa imperfeição, nos coloquemos diante Dele e  recomecemos. Ele estenderá as mãos para que cheguemos mais perto de Seu amor, pois a Sua misericórdia é infinita.
Deus abençoe!
Jornal "O São Paulo", edição 3073, de 14 a 20 de outubro de 2015.

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

As etapas de preparação ao sínodo

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Pe. Denilson Geraldo, SAC, é professor da Faculdade de Teologia da PUC-SP e membro da Cátedra André Franco Montoro de Direito da Família da PUC-SP. 

O Sínodo é um evento eclesial e envolve a todos os católicos, principalmente pelo tema que será tratado: a família. Paralelamente ao Sacramento do Matrimônio, vemos que o Sínodo exige uma preparação em três etapas. A primeira é a preparação remota que significa a aceitação das determinações do Vaticano II, pois o Sínodo dos Bispos tem desempenhado uma notável aplicação dos ensinamentos e orientações do Concílio, seja doutrinal, seja pastoral na vida da Igreja universal. A chave sinodal para leitura do Concílio tornou-se um lugar de interpretação, aplicação e desenvolvimento do próprio Vaticano II.
Do ponto de vista organizacional, a concretização de um Sínodo supõe longa preparação. Os trabalhos iniciam-se com uma comissão constituída no Sínodo anterior e com a elaboração de um questionário sobre o tema tratado. A comissão, com base nas respostas provenientes da ampla consulta, elabora uma síntese chamada Lineamenta (linhas gerais), sendo enviada novamente aos bispos, e com as respostas se elabora o Instrumentum laboris (instrumento de trabalho). Ambos os documentos são amplamente divulgados e colocados à disposição, como de fato aconteceu neste Sínodo sobre a família. Embora seja público, este Instrumento de trabalho tem apenas caráter provisório do documento que será objeto de discussão durante o Sínodo, não é, pois, uma versão preliminar das conclusões finais, mas apenas um texto de apoio para centralizar a discussão sobre o tema do Sínodo. Esta segunda etapa pode ser chamada de preparação próxima ao Sínodo que exigiu participação e interesse pelas questões colocadas pelo Papa.
Sínodo significa um caminho feito juntos, é uma experiência da unidade e da catolicidade da Igreja, é um organismo representativo do episcopado solicitado pelo Vaticano II no Decreto sobre o múnus pastoral dos bispos na Igreja e que, por sua natureza, e pelo número de pessoas envolvidas se trata do maior evento da Igreja, depois de um Concílio Ecumênico. Sua celebração significa a busca de sintonia com os problemas atuais, sobretudo de natureza pastoral, examinando os sinais dos tempos, procurando adaptar os meios e métodos do apostolado às necessidades atuais e as condições de mudança da sociedade, levando ao fortalecimento dos laços entre os bispos como um verdadeiro sínodo episcopal. Esta é terceira etapa, a preparação imediata, isto é, o desejo de não caminhar sozinho, mas com a Igreja. O significado prático desta disposição interior é a comunhão eclesial manifesta na obediência sincera e dócil ao Papa e aos bispos, bem como, na oração pelo Sínodo e nas obras de caridade que são capazes de abrir o coração e a mente para entender os desígnios de Deus para o momento que vivemos.
O intercâmbio de informações e sugestões à luz do Evangelho e dos ensinamentos da Igreja que acontece no Sínodo está em benefício a toda Igreja para conservar a comunhão na pluralidade das culturas e situações. Para que isto aconteça, tudo dependerá da aplicação real que é dada às suas conclusões, sob a liderança das Conferências Episcopais e das Igrejas locais. Assim, este pós-sinodal requer, como na preparação, confiança na Providência Divina e dedicação para que todo este trabalho não caia no esquecimento, mas que os frutos permaneçam na Igreja e na sociedade.
Jornal "O São Paulo", edição 3072, de 07 a 13 de outubro de 2015.

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Misericórdia e unidade: Papa Francisco convoca Ano da Misericórdia

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Ivanaldo Santos é doutor em filosofia e professor do Departamento de Filosofia do Programa de Pós-Graduação em Letras da UERN.

O Papa Francisco convocou um Ano Santo da Misericórdia para ser vivido nas comunidades da Igreja, por religiosos, padres e leigos, e pelas comunidades e pessoas que, por motivos diversos, estão fora da Igreja. O Ano Santo será oficialmente aberto no dia 8 de Dezembro de 2015, na solenidade da Imaculada Conceição, com a abertura simbólica da Porta da Misericórdia na Catedral de Roma, a Basílica de São João de Latrão, e terminará na solenidade litúrgica de Jesus Cristo, Rei do Universo, 20 de Novembro de 2016.
De acordo com o Papa, na Bula de proclamação do jubileu extraordinário da misericórdia, Misericordiae Vultus, o ano de 2015 foi escolhido para ser o Ano da Misericórdia por se tratar, dentre outros, do ano onde se comemoram os 50 anos do enceramento do Concílio Vaticano II. Um concílio que abria as portas da Igreja para anunciar o Evangelho de maneira nova, uma nova etapa na evangelização. Um novo compromisso para os cristãos de testemunharem, com mais entusiasmo e convicção, a sua fé.
O Papa Francisco coloca que o Ano da Misericórdia tem duas funções principais. A primeira é promover a unidade interna na Igreja, uma unidade necessária diante de tantos radicalismo e incompreensões que abalam internamente a Igreja no mundo contemporâneo. Atualmente a Igreja encontra-se profundamente dividida em polos ideológicos e antagônicos e, por isso, o Papa clama por unidade. A segunda é o cristão ir ao encontro das mais variadas periferias existenciais, que, muitas vezes, o mundo contemporâneo cria. Um das finalidades do encontro com as periferias existenciais é promover a conversão e a misericórdia com os diversos grupos sociais que vivem, de diversas formas, como prisioneiros das novas escravidões da sociedade contemporânea (as drogas, o terrorismo, a corrupção, o desamor, a abuso do poder, as ideologias, etc). Para o Papa Francisco uma das causas, dentre outras, da existência da pobreza, da corrupção e dos demais males que afligem o mundo contemporâneo é o egoísmo e o distanciamento do homem do amor de Deus. Por causa disso, o Papa coloca que é preciso levar a misericórdia de Deus para a periferia existencial e, com isso, procurar abrir o caminho da ação de Deus e da Doutrina Social da Igreja (DSI) no mundo atual. O mundo atual precisa da misericórdia de Deus e da ação da Doutrina Social da Igreja.
O Papa espera que nas comunidades cristãs (paróquias, conventos, etc), durante o Ano da Misericórdia, as pessoas que estejam com algum problema ou angústia possam encontrar um oásis de misericórdia. Por isso, o Papa deseja que sejam praticadas as obras de misericórdia corporal e espiritual. Por obras de misericórdia corporal espera-se, por exemplo, dar de comer aos famintos, dar de beber aos sedentos, vestir os nus, acolher os peregrinos, dar assistência aos enfermos, visitar os presos, enterrar os mortos. Por obras de misericórdia espiritual espera-se, por exemplo, aconselhar os indecisos, ensinar os ignorantes, admoestar os pecadores, consolar os aflitos, perdoar as ofensas, suportar com paciência as pessoas molestas, rezar a Deus pelos vivos e defuntos. Por fim, afirma-se que a iniciativa do Papa Francisco, ao convocar o ano da Misericórdia, é necessária para o mundo atual, marcado pela corrupção, pela violência, pela indiferença e pela desumanização do ser humano.
Jornal "O São Paulo", edição 3071, de 30 de setembro a 6 de outubro de 2015.

Bem mais complexa…


Ilustração: Sergio Ricciuto Conte

Klaus Brüschke, é membro do movimento dos Focolares, ex-publisher da Editora Cidade Nova, articulista da revista Cidade Nova.

Recentemente a comunidade católica foi provocada a se manifestar sobre as propostas de inclusão do tema do gênero nos Planos Federal, Estaduais e Municipais de Educação. Há que esclarecer que, quando se fala em gênero, amiúde não se está referindo apenas à definição sociológica do ser homem e ser mulher, mas se inclui aí a teoria genderqueer, envolvendo todas as formas de orientação sexual.
Essa ideologia (para uns) ou teoria (para outros) seria a expressão da “terceira onda” feminista, de matriz marxista, representando uma ameaça à instituição familiar. Creio, no entanto, que a questão seja bem mais complexa e que as “ameaças” – ou melhor, desafios – à família estejam bem mais perto do que gostaríamos de admitir. Pensadoras como Simone de Beauvoir e Shulamith Firestone, ao criticarem o modelo de família burguesa e patriarcal que tinham diante de si, jogaram fora a criança com a água suja do banho. Contudo, elas apontam para questões que ainda esperam respostas ou pistas de respostas, inclusive de nós, cristãos.
Considera-se que uma das conquistas da Modernidade foi a “descoberta” do indivíduo, com a compreensão da sua dignidade, de seus direitos, de sua igualdade… Faltou-lhe, contudo, “descobrir” a pessoa, ou seja, o indivíduo que se relaciona – com um Ser transcendente e com os outros.
Convivemos hoje com a exacerbação do individualismo pela “cultura do consumo”, que leva não só ao “usa e joga fora” dos objetos, mas também das relações humanas, na busca do “prazer a todo custo”. Essa sociedade produz seres narcisistas, que não conseguem encontrar nos outros senão a projeção de si mesmos. Os grandes sentidos da vida são transformados em projetos de carreira, sucesso, autoestima, num vertiginoso egotrip. Até mesmo as relações conjugais, até mesmo os filhos, estão subalternos a essa hierarquia de valores.
Aqui reside a ameaça à família e à própria identidade feminina, bem como à masculina.
O ser humano “não pode se encontrar plenamente senão por um dom sincero de si mesmo” (Gaudium et spes, 24), ou seja, na relação gratuita com o outro. “Num certo sentido, a feminilidade se encontra a si mesma diante da masculinidade, ao passo que a masculinidade se confirma por meio da feminilidade”, pensava João Paulo II. “Para conhecer-se bem e crescer harmonicamente, o ser humano precisa da reciprocidade entre homem e mulher. Quando isso não acontece, veem-se as consequências. Somos feitos para nos escutarmos e nos ajudarmos. Podemos dizer que sem o enriquecimento recíproco nesta relação – no pensamento e na ação, nos afetos e no trabalho, também na fé – os dois não podem nem ao menos entender profundamente o que significa ser homem e mulher. A cultura moderna e contemporânea abriu novos espaços, novas liberdades e novas profundidades para o enriquecimento da compreensão desta diferença”, explica o papa Francisco.
É legítimo que as ciências humanas se debrucem na compreensão das igualdades e diferenças entre homem e mulher, compreendendo o que vem da evolução biológica humana, o que vem de registros ancestrais, o que consta nos registros inconscientes, o que são construtos culturais, bem como esses fatores interagem dinamicamente entre si.

Mas é urgente que cristãs e cristãos, abraçando com coragem os mal-estares dessas novas situações, iluminados pelo Evangelho e pelo Magistério da Igreja, busquem caminhos que vão ao encontro do que há de autêntico nas demandas de hoje e deem testemunho convincente disso.
Jornal "O São Paulo", edição 3070, de 23 a 29 de setembro de 2015.

Tráfico de pessoas: coisificação da pessoa humana

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Carolina Alves de Souza Lima, advogada, mestre, doutora e livre-docente em Direito pela PUC/SP, é professora da graduação e da pós-graduação em Direitos Humanos.

O tráfico de pessoas é um crime que se tem intensificado na atualidade, tanto no âmbito nacional quanto no internacional. Consiste em conduta cujo objetivo maior é a exploração da pessoa humana, por meio do trabalho escravo, da exploração sexual, da comercialização de crianças, da venda de órgãos do corpo humano e de condutas similares e que visam a tratar o ser humano como mero objeto.  A prática desse crime revela a instrumentalização do ser humano, postura avessa à compreensão kantiana a respeito da dignidade da pessoa humana, definida como a condição que faz do ser humano um fim em si mesmo. Por isso, representa grave violação aos direitos humanos.
Trata-se de atuação criminosa organizada de forma sofisticada e extremamente lucrativa. As vítimas são geralmente pessoas vulneráveis no campo econômico, social ou psíquico. Em sua maioria, mulheres, crianças e adolescentes.
Dentre os documentos internacionais, o Protocolo de Palermo, adotado pelo Brasil em 2004, define as condutas que configuram o tráfico humano e estabelece quais providências devem ser tomadas pelos Estados na prevenção e repressão ao referido crime. No âmbito nacional, o Código Penal preceitua, em seus artigos 231 e 231-A, respectivamente, o crime de tráfico internacional de pessoas para fim de exploração sexual e o tráfico interno de pessoas para fim de exploração sexual. Não obstante a referida previsão legal, a prática do referido crime vem-se intensificando globalmente. Várias razões podem ser destacadas, dentre elas a pouca eficiência na apuração, processo e responsabilização pela prática do tráfico de pessoas, assim como a falta de implementação das medidas de prevenção a esse delito, que devem ser coordenadas em parceria pelas autoridades nacionais e internacionais.
Diante desse cenário, indaga-se se referido crime deveria ser considerado crime contra a humanidade e julgado pelo Tribunal Penal Internacional. O artigo 7º do Estatuto de Roma, tratado que criou o referido tribunal, define os crimes contra a humanidade. Não especificamente o crime de tráfico de pessoas, mas faz referência a crimes diretamente ligados a ele, como a escravidão, a prisão ou outra forma de privação da liberdade física grave, em violação das normas fundamentais de direito internacional, a escravatura sexual, a prostituição forçada, e ainda atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento ou afetem gravemente a integridade física e mental do indivíduo. No meu entender, a previsão do crime de tráfico de pessoas como crime contra a humanidade pode ser uma importante medida para fortalecer o sistema internacional de proteção dos direitos humanos. No entanto, são necessárias inúmeras medidas de prevenção e repressão ao tráfico de pessoas, que devem ser coordenadas tanto pelas autoridades nacionais quanto internacionais, além da denúncia das vítimas, a sua proteção e o esclarecimento da população a respeito da incidência desse delito. Sabemos que o enfrentamento do tráfico de pessoas é tarefa complexa, não há soluções imediatas e o Direito Penal não tem sido o instrumento mais eficaz na proteção dos direitos humanos. Ele continua sendo a ultima ratio.  
Jornal "O São Paulo", edição 3069, de 16 a 22 de setembro de 2015.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Meu Deus, basta!

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Ana Lydia Sawaya é professora da UNIFESP, fez doutorado em Nutrição na Universidade de Cambridge. Foi pesquisadora visitante do MIT e é conselheira do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

Basta, meu Deus, basta de tanto sofrimento! Este artigo tem a finalidade de pedir a você leitor para rezarmos juntos pelos refugiados. Calcula-se que sejam 60 milhões de refugiados. Um número ímpar, mesmo em relação à Segunda Guerra Mundial. Peçamos a Deus, todos juntos, para que Ele acabe com o sofrimento de tantas famílias de refugiados! Desfilam-se diariamente diante dos nossos olhos, nos jornais, fotos de crianças, mulheres, homens jovens, idosos que pagam o preço de uma casa, um carro, para serem transportados por traficantes para a Europa. Perderam tudo, deixaram trabalho, deixaram muitas vezes parentes mortos brutalmente.
Em número já incontável de vezes, lemos que os traficantes de pessoas os abandonam em barcos à deriva, ou eles mesmo afundam os barcos no meio da travessia. Outras vezes, os barcos soçobram durante o resgate por serem muito frágeis e estarem superlotados. Li sobre uma náufraga que não conseguiu sobreviver que, ao ser retirada do mar, foi encontrada com o terço na mão. Pensei que só pode ter havido festa no céu quando ela chegou lá, pois nós cristãos sabemos o fim dos injustiçados deste mundo, que Cristo quis, misteriosamente, abraçar carregando-os consigo na cruz.
Os jornais relatam ainda que o número de mortes tem aumentado porque se tem elevado as medidas de repressão por parte dos países europeus. A Hungria está construindo um muro na divisa da Sérvia para impedir sua chegada. Mais de um milhão dos que conseguiram chegar à Europa foram expulsos. Alguns países europeus têm colocado soldados armados que agem violentamente contra famílias com crianças de colo que chegam ao seu território. Mesmo no Brasil, a vinda dos haitianos, após o terremoto que devastou o seu país, tem encontrado muitas hostilidades. Recentemente alguém atirou em vários deles.
A Europa envelhece, falta mão obra, o número de nascimentos só diminui com o maciço controle de natalidade. O número de europeus encolhe a cada ano. A Europa precisa de imigrantes para financiar aposentadorias e permitir boa condição de vida para seu número crescente de idosos. Análises econômicas mostram as vantagens de ter mão de obra baseada na imigração. Por que então não organizar um fluxo migratório de famílias cujos países estão enfrentando guerras loucas, cruentas, e sem sentido? Assim fez o governo de São Paulo no início do século 20, quando chegaram aqui, de forma relativamente organizada, cerca de 6 milhões de imigrantes europeus. Esse quadro revela o quão grande é o egoísmo e a visão mesquinha do velho continente. A ONU tem pedido insistentemente para os países da União Europeia receberem os imigrantes, feito propostas e exortado esses países a se organizarem. As políticas de aumento de repressão aos imigrantes só tem aumentado o número de traficantes de pessoas, o seu ganho e a crueldade do processo.
O que nós, brasileiros, que vivemos tão longe geograficamente dessa tragédia humana, podemos fazer? O Brasil, por meio da Cáritas e outras organizações, tem procurado dar sua contribuição na acolhida a estes refugiados e nós, caro irmão, podemos fazer uma fundamental: rezar. Podemos pedir ao Senhor que, na Sua infinita misericórdia, mude a sorte de tantos refugiados, abra espaço para eles. Podemos pedir que este mal do nosso tempo termine. Podemos pedir que Nossa Senhora interceda pelos europeus e "co-mova" o coração de pedra dos cristãos da primeira hora. Que o povo europeu pressione os seus governos para abrir as portas, colocar mais água no feijão, e não para aumentar as barreiras como tem acontecido. O Senhor responderá a quem pede com insistência e comunitariamente.
Jornal "O São Paulo", edição 3067, de 09 a 16 de setembro de 2015.