terça-feira, 26 de setembro de 2017

Impasses na rota mediterrânea

Padre Alfredo José Gonçalves, CS, é Superior Provincial da Pia Sociedade dos Missionários de São Carlos.

Nas últimas semanas/meses, vem mudando o cenário das migrações no mar Mediterrâneo. A rota que faz a travessia entre a Líbia e o sul da Itália vem sofrendo uma série de restrições. O governo italiano passa a controlar mais de perto a travessia dos imigrantes. Além disso, vem exigindo que as organizações não governamentais (ONGs) assinem um documento chamado “código de conduta”, submetendo-se a tais restrições. Pelo menos uma embarcação foi apreendida pelas forças legais italianas, enquanto um sacerdote foi acusado de incentivar a imigração. Além disso, algumas de tais ONGs foram inclusive acusadas de “favorecer o tráfico de imigrantes clandestinos”, segundo o noticiário de um telejornal local. Por isso, torna-se cada vez mais comum a presença de homens armados nos barcos que vão em socorro dos potenciais “imigrantes náufragos”.
Do lado da Líbia, a situação não é melhor para os que buscam um futuro mais promissor. Novos personagens entram em cena. Num país dividindo em três governos diversos e controversos, as forças policiais estão tentando bloquear a saída em massa dos imigrantes. Por uma parte, exigem que os barcos estrangeiros se mantenham cada vez mais à distância da costa daquele país; por outra, obrigou a retornar algumas embarcações apinhadas de gente que procura a Europa. Quanto ao velho continente europeu, suas autoridades parecem respirar mais aliviadas. Afinal de contas, na perspectiva europeia, a Itália “está fazendo o dever de casa”.
Os resultados não se fazem esperar. A entrada de imigrantes na Itália em julho caiu quase 50% em relação a junho, e diminui mais ainda no decorrer de agosto. Estima-se que ao final de 2017 o número de imigrantes seja menor que em 2016. Retida em território líbio, a população em fuga, vinda do Sudão do Sul, Afeganistão, Guiné, Nigéria, Etiópia  e Eritreia – entre ouros países – é mantida em lugares fechados e em condições extremamente precárias. Há notícias de que muitos passam dia e noite sobre as próprias fezes, outros são “oferecidos” como mão-de-obra escrava. Doenças, fome e sede se alastram, golpeando especialmente os menores e indefesos.
Convém não esquecer que a outra rota – a balcânica – também se encontra bloqueada. Um acordo feito em 2016 entre a Europa e a Turquia mantém os imigrantes neste último país. Isso para não falar dos muros que foram levantados na Sérvia, Macedônia, Áustria, e assim por diante. A lógica parece clara: primeiro, a legislação migratória, com passaporte, visto e tudo em dia, foi sendo endurecida. Fechada a via legal, os migrantes arriscam tudo através de caminhos alternativos, pressionando as fronteiras, pelo mar (norte da África), pelo deserto (México e Estados Unidos) ou pelas florestas (Venezuela, Colômbia e Brasil). Agora, busca-se todos os meios para impedir o uso massivo desta via alternativa.
Os países aprimoram a leis, erguem novos muros, criam barreiras e se fecham sobre si mesmos, deixando a população “descartável” do lado de fora. “Descartável” é o termo utilizado seguidamente pelo Papa Francisco para referir-se aos pobres e excluídos, os quais sequer conseguem a “fortuna” de serem exploradas pelo sistema capitalista neoliberal, e assim receber dele uma pequena migalha. Mas é também a expressão usada pelo Documento de Aparecida. Literalmente: “Uma globalização sem solidariedade afeta negativamente os setores mais pobres. Já não se trata simplesmente do fenômeno da exploração e opressão, e sim de algo novo: a exclusão social. Com ela, fica afetada em sua própria raiz a pertença à sociedade na qual se vive, pois nesta já não se está abaixo, na periferia ou sem poder, mas se está fora. Os excluídos não são somente explorados, mas pessoas que sobram e são descartáveis” (DP, n. 65).
Jornal "O São Paulo", edição 3167, 20 a 26 de setembro de 2017.

Por uma Geração Millennium Divergente

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Angela Vidal Gandra Martins é doutora em Filosofia do Direito (UFRGS) e sócia Advocacia Gandra Martins.

A geração Millenium, contextualizada na pós modernidade - definida como a era do pensamento débil (pensiero debole) e das relações líquidas, como bem afirmaram os filósofos Gianni Vattimo e Zygmunt Bauman - é, de certa forma, um produto do “esgotamento filosófico”, ainda que não tenha capacidade de identificar as influências que recebe, por falta de reflexão somada a um despreparo em termos de virtude para viver em um mundo tecnológico.
Entre outras correntes contemporâneas que agem sobre suas escolhas, na maioria inconsequentes, destacamos três: o existencialismo, o utilitarismo e o marxismo. Em linhas gerais, o primeiro centra a existência em si mesmo, onde os outros apresentam-se  como um obstáculo e o ser humano é concebido como uma paixão inútil, restando a opção de experimentar o momento com diversidade e intensidade, porém, sob a perspectiva da tragicidade que supõe aceitar a fugacidade da vida, a ser gasta sem uma meta ou sentido mais profundo, levando mais cedo ou mais tarde à depressão. O utilitarismo, por sua vez, também de cunho individualista, reduz o fim existencial à busca do prazer e à fuga da dor a qualquer custo, a partir de um critério moral relativo e neutro, definindo o ser humano como um maximizador autointeressado de suas preferências, onde o outro é apenas um meio para sua própria satisfação. Por fim, o marxismo, travestido de ideal, projeta falsamente o homem para o coletivo, afogando sua identidade no grupo através da manipulação ideológica de mentes, muitas vezes bem dispostas, mas sem senso crítico ou experiência suficiente para posicionar-se com liberdade.
Por outro lado, o déficit educacional tanto no plano científico quanto no que se refere à forja de um verdadeiro caráter torna a nova geração frágil e mais controlada do que beneficiada pela tecnologia, por falta de autodomínio, facilitando a superficialidade, a preguiça mental e a fragmentação, que também repercute na esfera relacional.  De fato, é um paradoxo pensar que na era da comunicação globalizada seja tão difícil cultivar uma boa e constante relação pessoal com os demais, ou, simplesmente, mantê-la.
Porém, não se pode subestimar a capacidade humana de desejar a verdade e sua rejeição à mediocridade. De fato, é só oferecer um panorama mais elevado e percebe-se o deslumbramento. No início deste ano, por exemplo, organizamos um curso de verão para alunos de diversificadas áreas denominado “Reflexões Críticas sobre o trabalho e a boa vida”, entendendo-se “good life” como vida plena. E concluímos que Aristóteles tem realmente muito a nos ensinar sobre o que são realmente os bens básicos para a felicidade humana: a excelência própria; a amizade e a verdade, até chegar à “source” ou fonte das respostas mais importantes sobre o sentido da vida e a própria missão.
  Apostamos que a geração Millennium, tão bem servida de meios, também pode ser atraída por estes fins e dispor-se a abrir-se ao outro e construir uma sociedade mais justa. Basta que os ajudemos a refletir com maior profundidade e superar-se, vencendo a vontade fraca e escrava de caprichos. Como dizia Santo Agostinho, “os tempos somos nós” e comprovou com sua vida: refletiu, mudou, transformou seu entorno e deixou um legado para toda humanidade.  Os Millenniums também podem ser divergentes, e contra qualquer conformismo, desafiar seu próprio tempo. Cabe aos pais, educadores e professores oferecerem a plataforma.  
Jornal "O São Paulo", edição 3167, 20 a 26 de setembro de 2017.

segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Crise Política: e eu com isso? Corrupção, cultura e responsabilidade

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Rafael Mahfoud Marcoccia é professor do Centro Universitário da FEI, fez Doutorado sobre Doutrina Social da Igreja e é colaborador do site católico Terre d'America. 

Estamos presenciando uma forte crise política no país. Mas ainda que estejamos indignados com a situação, estamos também, em geral, passivos. Passivos porque, se é verdade que emitimos as nossas opiniões (de forma inteligente), cobramos as responsabilidades (como temos mesmo de fazer) e exigimos a justiça, ao mesmo tempo assistimos aos acontecimentos da crise como se fossem uma realidade distante de nós, sem nos reconhecermos como parte dela.
Somos parte da crise não simplesmente porque somos afetados por ela, mas porque ela própria é fruto do nosso posicionamento. Podemos defender ou não o atual governo, gostar ou não do atual presidente, ser de direita ou de esquerda. Ou ainda, querer novas eleições logo ou aguardar o fim de 2018. Mas em geral o que mais se lê na imprensa e nas redes sociais, ou se ouve nas conversas nas ruas, nos bares com os amigos, parte da mesma premissa: depositamos a responsabilidade de mudar a sociedade, que é de todos os que a compõem, em um único membro, o presidente, ou, no máximo, em uma classe, a política.
Frustrados em nossas expectativas, nos encontramos indignados e desanimados, e o discurso gira em torno de frases como “político é tudo igual mesmo”, ou “temos que punir os culpados”, ou ainda “o Brasil não tem jeito”. Esse discurso do momento pode carregar dois problemas: a culpa é sempre do outro; e partir de um posicionamento que se satisfaça apenas com a punição.
Esses problemas parecem ter sua origem na nossa cultura, que privilegia uma postura individualista. Percebemos a gravidade dos fatos, mas nos interessamos mais pelas nossas obrigações pessoais do dia-a-dia. E a ideia que acaba prevalecendo é a de que “tenho minha vida para levar”. Assim, colocamos os nossos problemas individuais como sendo prioritários em relação aos sociais. Não entendemos que os problemas sociais são igualmente relevantes também para toda pessoa. E isso é também uma forma de corrupção. Santo Agostinho dizia que corrupção é o coração (cor) rompido (rupto).
Há, então, níveis de corrupção. Uma corrupção em nível político-social, como a que nós temos visto. Uma corrupção cotidiana, o “jeitinho brasileiro”, onde são cometidas infrações aceitas e acobertadas pela sociedade. E, por fim, uma corrupção individual, onde a pessoa abandona seus valores e aspirações mais íntimas em função das imposições da própria dinâmica social atual. A crença na solidariedade, ou a ideia de que ela nos levaria a construir um mundo melhor, é substituída pelo medo da violência, pela falta de confiança no outro, fazendo com que pensemos que apostar no ser humano é uma postura demasiada ingênua para os dias de hoje.
Contudo, ainda que constatemos uma marca forte do individualismo em nossa cultura e que a corrupção esteja presente tanto no nível social quanto no pessoal, encontramos diversos exemplos de atos verdadeiramente solidários, ou melhor, verdadeiramente sociais em nossa cultura.
Sendo assim, o que parece razoável é pensarmos nos problemas políticos que o país vem passando, passou e provavelmente irá passar, não de uma maneira passiva, onde apenas se emite uma opinião ou se exige um direito (como o da punição), mas valorizando espaços de produção de cultura real que nos sustentem, a todos (políticos e homens comuns), em uma posição construtiva, capaz de favorecer autocrítica e retomada contínua dos ideais.
Jornal "O São Paulo", edição 3166, 13 a 19 de setembro de 2017.

Reforma política e doutrina social da Igreja

Os debates sobre reforma política num momento em que os homens públicos brasileiros enfrentam uma grave crise de legitimidade lembra as palavras do poeta católico T.S. Eliot, quando diz que frequentemente tentamos escapar à treva, que nos corrói e se alastra a nosso redor, sonhando com sistemas tão perfeitos que tornem desnecessário sermos bons (cf. Coros de”A rocha”).
Não cabe à doutrina social da Igreja postular sobre sistema eleitoral (proporcional, distrital, etc.), financiamento de campanha, parlamentarismo e outros temas assim. São questões circunstanciais, que dependem da história e da conjuntura de cada nação, responsabilidade a ser exercida com autonomia por seu povo. Mas o realismo cristão nos leva a reconhecer que a solução dos problemas nunca pode ser confiada apenas às estruturas.
Instituições realmente boas são o fruto de pessoas boas e ajudam todos a se tornarem melhores. Como afirmou Bento XVI, na abertura da Conferência de Aparecida: “As estruturas justas são [...] condição indispensável para uma sociedade justa, mas não nascem nem funcionam sem um consenso moral da sociedade sobre os valores fundamentais e sobre a necessidade de viver estes valores com as necessárias renúncias, inclusive contra o interesse pessoal”.
Valorizar o papel da pessoa na vida política não significa buscar salvadores messiânicos, mas compreender que uma sociedade justa vai sendo construída aos poucos, com a contribuição de todos. Nesse momento, é dever de cada brasileiro, dentro do espaço de responsabilidade que lhe cabe, lutar para que estruturas e instituições sejam transformadas com vistas ao bem-comum, consciente que não existirão soluções mágicas, que qualquer caminho implica em um trabalho de construção e correção continuas.
Tanto a esperança desmedida nessa ou naquela solução quanto a desesperança que imobiliza e fecha no individualismo são manifestações de irrealismo, opostas à sabedoria cristã.
Para termos uma política comprometida com o bem-comum é necessário não só buscar a correção das deformações do sistema atual, mas também trabalhar para que todos tenham cada vez mais condições de escolher bem seus representantes, por meio da educação e da participação efetiva na vida pública, além de criar condições para que pessoas honestas se candidatem com chances aos cargos eletivos.
Afinal, como Eliot conclui a passagem citada, aquele que realmente é há de ofuscar o que apenas pretende ser.
Francisco Borba Ribeiro Neto
Jornal "O São Paulo", edição 3166, 13 a 19 de setembro de 2017.

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Como eliminar uma barreira muito comum à conquista da felicidade

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Alexandre Ribeiro é doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP e editor de Aleteia.org

Um lindo casal entra no metrô. A mulher se veste com elegância: salto alto, unhas e cabelos perfeitos. O marido usa um terno impecável. A pele bem cuidada e a expressão confiante de ambos chamam a atenção. A maioria dos passageiros analisa o casal com o canto dos olhos. Algumas mulheres pensam: “como seria bom se eu fosse tão bonita e elegante como ela”. Já outros homens imaginam: “como seria bom se eu fosse tão jovem e confiante como ele”.
Seja entre desconhecidos, entre vizinhos, no trabalho ou na escola, a comparação é sinal de uma característica lamentável da condição humana: a inveja.
O filósofo Bertrand Russell chegou a considerar a inveja uma das causas mais poderosas de infelicidade. O invejoso é infeliz porque, em vez de se satisfazer e sentir prazer com aquilo que tem, sofre por tudo aquilo que os outros têm.
A inveja, que inicia com uma comparação aparentemente inofensiva, acaba levando o invejoso a querer causar dano àqueles que, aos seus olhos, parecem mais bem-sucedidos.
Em suas formas mais graves, a inveja conduzirá o invejoso até mesmo a causar o dano, desde que ele veja a possibilidade de sair impune do mal que quer provocar.
Em seu extremo, “se puder, o invejoso privará todos os demais de suas vantagens, o que para ele é tão satisfatório quanto conseguir essas mesmas vantagens para si”, diz Russell.
Se o invejoso abrir caminho para o seu vício, acabará por “ser nocivo a tudo o que seja excelente, inclusive para as aplicações mais proveitosas das aptidões excepcionais”.
Segundo o filósofo, a inveja é um vício que consiste em nunca ver as coisas como elas são, mas em sempre compará-las umas às outras. Mas, as comparações do invejoso são absurdas e tolas, pois de que adianta descontentar-se diante do aparente sucesso e bem-estar do colega, parente ou vizinho? “Para o sábio, o que temos não deixa de ser agradável, porque outros têm outras coisas mais”.
O primeiro passo para lutar contra a inveja é parar com a mania de fazer comparações. “Quando nos acontece algo agradável, é preciso desfrutá-lo plenamente, sem perder tempo, pensando que isso não é tão agradável como alguma outra coisa que esteja ocorrendo com outra pessoa”, afirma Russell.
Basta pensar que a primavera na Sicília seria tão mais bonita do que a daqui para que o nosso sol e os nossos pássaros percam o encanto. E assim nasce um desgosto que, pouco a pouco, pode transformar-se em ódio velado por aqueles que desfrutam da maravilhosa primavera na Sicília.
Segundo Russell, a inveja nasceria do acúmulo de privações e contratempos sofridos desde a infância, como, por exemplo, a falta de afeto e confiança. “Há certos tipos de felicidade a que todos têm direito por nascimento, e aqueles que se veem privados disso tornam-se mais tarde ressentidos e amargurados”.
Ele indica dois remédios contra a inveja. O primeiro é a admiração. Quem busca aumentar a admiração acaba por reduzir a inveja. O segundo é a disciplina mental. Deve-se cultivar o hábito de não ficar remoendo pensamentos inúteis.
“Para encontrar o caminho que lhe permita sair desse desespero, o homem civilizado precisa desenvolver seu coração, assim como desenvolveu seu cérebro. Deve aprender a transcender a si próprio e, com isso, alcançar a liberdade do universo”, diz Russell.
  Jornal "O São Paulo", edição 3165, 6 a 12 de setembro de 2017

O desenvolvimento do homem todo e de todos os povos

Wagner Balera é professor titular de Direitos Humanos na Faculdade de Direito da PUC-SP e conselheiro do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

Parece que a comunidade internacional se deu conta, no início do terceiro milênio, que o grande desafio a ser vencido por ela é o do desenvolvimento. Não é por outra razão que a Cúpula do Milênio, a mais importante reunião mundial já realizada em toda a história, reunindo mais de 190 países, houve por bem definir a necessidade de enfrentar e resolver os assim chamados Objetivos do Desenvolvimento do Milênio, conhecidos pela sigla ODM, que dentre outros temas deveria tomar providências para a erradicação da pobreza. Fora fixado um prazo, de 15 anos, que venceu em 2015, e foram dados passos concretos para o enfrentamento das grandes questões sociais do nosso tempo.
No entanto, novo desafio foi apresentado desta feita, não como continuidade da primeira proposta, mas como uma especificação cabal dessa. Então, foram configurados os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, designados ODS, que, para além da questão do desenvolvimento puro e simples, propõem a implementação de medidas para que fosse capaz de ser implementado sem ofensa aos recursos ambientais e com a preservação do ecossistema, além de, igualmente, com a segurança alimentar, a questão energética, a da água, a do saneamento e, em suma, a preservação do mundo habitável.  Essa agenda espantosa deve ser implementada até o ano de 2030.
Quem insere novo tópico na agenda da Doutrina Social da Igreja é o Beato Paulo VI, que há 50 anos lançava a Encíclica Populorum Progressio sobre o tema do desenvolvimento.
Dois pontos do documento revelam sua atualidade. O primeiro afirma que “o desenvolvimento é o novo nome da paz”. Ninguém dúvida desse imperativo ético universal. Importa irradiar a paz mediante equitativa distribuição dos bens deste mundo, porque é dever grave dos povos desenvolvidos cooperar com aqueles que estejam em vias de desenvolvimento. O segundo responde à elementar questão: qual desenvolvimento?
E o Pontífice afirma: o verdadeiro desenvolvimento só pode ser integral, vale dizer, o do homem todo e de todos os homens. Progresso meramente econômico sem repercussão na esfera social e, igualmente, na dimensão cultural não é conforme à ética.
Parece uma pauta simples, mas é de extrema complexidade e exige, decerto, a implantação de outra ordem econômica mundial capaz de quebrar as cadeias permanentes de degradação da maioria dos povos em favor de quem, desde o colonialismo, sempre amealha cada vez mais.
Jornal "O São Paulo", edição 3165, 6 a 12 de setembro de 2017

Dos fundamentalismos? Livrai-nos Senhor!

Léo Pessini, doutor em Teologia Moral-Bioética e pós-graduado em Clinical Pastoral Education and Bioethics, pelo St. Luke`s Medical Center, em Milwaukee, nos EUA. Atualmente exerce a função de Superior Geral dos Camilianos, em Roma.

“Fundamentalismo: desafios à Ética Teológica” foi o tema do 41º. Congresso de Teologia Moral, realizado em São Paulo, no Centro Universitário Salesiano (UNISAL)/Campus Pio XI, de 28-31 de agosto de 2017.
Nestaedição do evento, debateu-se essa instigante e preocupante questão do crescimento dos fundamentalismos em amplos setores da vida humana, desembocando em fanatismos nocivos e promotores de violência.
Fazemos a seguir alguns destaques de aspectos que nos marcaram neste evento, e que merecem nossa atenção. Começa-se a falar de “fundamentalismo” no sentido teológico entre os presbiterianos conservadores dos EUA no final do século XIX e início do século XX, voltando-se para as questões dogmáticas.  Hoje o termo fundamentalismo ganhou um significado ampliado, apontando para movimentos e /ou atitudes, na teologia e em outros campos, para além do âmbito religioso inclusive, que se agarram de uma forma irremovível a determinadas posições, como dogmas inquestionáveis. Deparamo-nos assim com fundamentalismo de cunho sócio-econômico-político e ético-moral em geral.
Segundo o biblista Yohan Konings, “o problema do fundamentalismo não é seu conservadorismo ou tradicionalismo, mas sua recusa de diálogo e interpretação”.  Fundamentalismos e fanatismos são expressões de enfermidade e patologias de pensamentos e visões humanas, que necessitam de uma urgente intervenção terapêutica em vista de saúde.  Neste cenário, necessitamos de educação terapêutica das nossas consciências. Uma consciência e convicção religiosa que saiba respeitar o sadio pluralismo religioso e laicidade secular, como espaços preciosos de diálogo na sociedade de hoje.  Trata-se de um pensamento, visão e ação “hospitaleira” que acolhe o diferente, marcada pela inclusão, compaixão e solidariedade, e não uma postura de “hostilidade” que exclui o diferente com violência (fanáticos). Em vez de ser para e pelo outro, posiciona-se contra “o outro”, que é eleito como inimigo a ser combatido.
Lembramos ainda que sempre precisamos colocar “o texto, no contexto para que depois não sirva de pretexto”.  O que se diz da ética teológica, o mesmo pode ser dito em relação a bioética. Como afirma Bruce Jennings (editor-chefe da última edição da Encyclopedia of Bioethics, 2014), “Se a bioética não for crítica, pode se tornar apologética ou ideológica”.  Sem dúvida alguma a crítica hermenêutica será sempre um remédio necessário e eficaz para garantir a lucidez e sapiência do pensamento ético teológico e bioético para combater preventivamente toda e qualquer patologia ou enfermidade do pensamento, fundamentalista que alimenta ações de fanatismo e violência.
Ao falarmos de fanatismo, de cunho religioso ou não, é bom lembrar o que diz Amós Oz, escritor israelense e ativista político, na sua obra mais recente lançada no Brasil, “Como curar um fanático”.   Sua definição é emblemática: “O fanático nunca entre em um debate. Se ele considera que algo é ruim, seu dever é liquidar imediatamente aquela abominação. Todos os tipos de fanáticos tendem a viver num mundo em preto e branco. Num faroeste simplista de mocinhos contra bandidos”.  Concluindo seu ensaio, Oz, sendo judeu, argumenta que todos os mandamentos que regem a fé e a cultura de sua gente poderiam ser resumidos numa só frase: “Não causarás a dor”.
O Papa Francisco não cessa de nos alertar criticamente a respeito da necessidade de discernimento perante as situações “cinzas” da vida, quando  os fundamentalistas somente veem “preto e branco”. Num livro de entrevistas a ser lançado na França, comenta a respeito das posições fundamentalistas dizendo “Quando encontro alguém rígido, em especial se ele é jovem, eu digo para mim mesmo, que ele está doente. Na verdade, estão procurando segurança” (Folha de S. Paulo, 01/09/2017).
Que triste doença está de ver, encarar e viver a vida somente em “preto e branco”, quando a criação divina é tão rica e linda quando a respeitamos como sendo originalmente multicolorida.

Herança de Dom José Maria Pires

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, teólogo, é o atual Vigário Geral da Congregação dos Missionários de São Carlos (scalabrinianos). Realizou trabalhos pastorais em favelas, cortiços e no interior do Estado com os migrantes cortadores de cana. Foi diretor do CEM-Centro de Estudos Migratórios de São Paulo, assessor do Setor Pastorais Sociais da CNBB, Superior da Província São Paulo dos Padres Scalcabrinianos.

Que nos deixa Dom José Maria Pires? Pouco mais do que uma memória de gigante e, ao mesmo tempo, um estridente e respeitoso silêncio de eternidade. Não obstante o silêncio solene e reverente, atrevo-me a rabiscar algumas palavras sobre essa figura de raízes, tronco, ramos, folhas e frutos. Um homem que se assemelhava a uma árvore platantada à beira de um riacho, como diz o salmo número um.
Comecemos com as raízes. Desde logo convém dizer que Dom José era um homem de profundas raízes. Raízes que, vindas da mãe África, souberam nutrir-se dos ingredientes encontrados do outro lado do Atlântico. Tinham cor negra, som de música e uma versatilidade de dança. No “terreiro da diocese”, moviam-se ao som do tambor que vem do centro da terra, tal era a integridade com que assumiu sua negritude. Primeiro o chamaram de Dom Pelé, depois preferiu que o chamassem de Dom Zumbi, devido à luta deste último pela libertação do seu povo escravo. Amou o povo brasileiro, formado por três raças, sem jamis deixar de amar seus antepassados.
Possuía um tronco vigoroso de pastor, de profeta e de sábio. As raízes o alimentavam a partir do solo úmido e escuro, onde o povo sofre e luta, reza e espera. Nos tempos sombrios da ditadura militar, foi marcante sua “opção preferencial” pelos pobres e oprimidos, juntamente com a CNBB. Sua profecia, mansa e robusta a um só tempo, fazia tremer os latifundiários das dioceses de Araçuaí e da Paraíba. Suas palavras, sempre iluminadas por um sorriso, adquiriram uma eloquente veemência. A sabedoria vinha-lhe de um ouvido aberto ao clamor de todo rebanho, com grande respeito pela alteridade. Sabia ler no rosto das pessoas a lágrima e o riso, “as alegrias e esperanças, tristezas e angústias” (GS, n. 1).
Os ramos eram braços e mãos enérgicos, sem ser grosseiros ou brutais. Uma energia não impetuosa ou precipitada, mas oportuna e pontual. Tanto quanto estava pronto a abençoar as vítimas e os injustiçados da história, também era capaz de golpear os lobos com sua autoridade de pastor. Quando o conheci na Paraíba, estava justamente em meio a um conflito entre trabalhadores rurais sem terra, de um lado, e fazendeiros inescrupulosos, de outro. Sua figura se agigantava, seja na defesa dos primeiros, quanto na advertência aos segundos. Uma e outra fundamentadas na misericórdia evangélica. Todos os anos, por ocasião da Romaria da Terra, caminhava toda a noite ao lado dos peregrinos.
Quanto às folhas e frutos dessa árvore, basta relembrar sua sombra de pai/pastor, ou suas ações em prol dos famintos e sedentos de justiça. Tive a alegria de conhecer vários agentes de pastoral, e outros tantos trabalhadores e trabalhadoras, que se viram livres da perseguição ou da prisão devido à sua sombra. Acolhia-os e protegia-os com a peregrinos errantes que têm necessidade de uma tenda e de repouso, lembrando o espisódio de Abraão no Carvalho de Mambré (Gn 18,1-10). Inumeráveis, por outro lado, são seus projetos, gestos e ações em favor da justiça e da paz.

terça-feira, 5 de setembro de 2017

Aspectos do fundamentalismo ateu.

IVES GANDRA DA SILVA MARTINS, é Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIP, UNIFIEO, UNIFMU, do CIEE/O ESTADO DE SÃO PAULO, das Escolas de Comando e Estado-Maior do Exército - ECEME, Superior de Guerra - ESG e da Magistratura do Tribunal Regional Federal – 1ª Região; Professor Honorário das Universidades Austral (Argentina), San Martin de Porres (Peru) e Vasili Goldis (Romênia); Doutor Honoris Causa das Universidades de Craiova (Romênia) e da PUC-Paraná, e Catedrático da Universidade do Minho (Portugal); Presidente do Conselho Superior de Direito da FECOMERCIO - SP; Fundador e Presidente Honorário do Centro de Extensão Universitária - CEU/Instituto Internacional de Ciências Sociais - IICS.

A Constituição Brasileira assegurou (art. 5º inciso VI) liberdade religiosa; permitiu a objeção de consciência para aqueles que professam religiões impeditivas de determinadas ações (art. 5º, inc. VIII), como, por exemplo, pegar em armas, devendo prestar serviços militares alternativos (art. 143, § 1º); outorgou imunidade tributária aos templos de quaisquer culto (art. 150 inc. VI letra “b”); permitiu o ensino religioso bancado pelo Estado  (art. 210, § 1º) embora facultativo; deu tratamento especial às escolas confessionais (art. 213); assegurou assistência religiosa aos militares (art. 5º, inc. VII) e às instituições civis.
Há, portanto, inúmeros dispositivos na Lei Suprema de prestígio às convicções religiosas de um povo em que, segundo pesquisa de algum tempo atrás, da Folha, mais de 90% das pessoas acreditam em Deus, embora muitos não frequentem templos de qualquer religião.
Entretanto, uma minoria extremamente ruidosa, que penetrou nos poderes da República e na imprensa e que ao contrário da esmagadora maioria da população - que acredita em Deus, mas que é silenciosa - apregoa que acreditar em Deus é algo do passado, tem procurado, de todas as formas, eliminar essas garantias constitucionais. É o caso da Subprocuradora Geral da República, que entrou com ação direta de constitucionalidade, objetivando anular o artigo 210 § 1º, que permite o ensino religioso facultativo nas escolas.
O interessante é que parte dos que atacam todas as formas de manifestação religiosa – incomoda-lhes, por exemplo, a manutenção de crucifixos nos tribunais— tem vida pessoal complicada, muitas vezes dando a impressão de que, como não conseguem viver como gostariam de pensar, passam a pensar como vivem. Buscam justificar-se atacando as virtudes dos que lutam por viver princípios de dignidade pessoal, de respeito à vida humana desde a concepção e à família capaz de gerar proles por amor conjugal. Em outras palavras, atacam princípios próprios do direito natural, pois o politicamente correto para eles é defender o homicídio uterino, a dissolução conjugal tantas vezes quanto o desejo epidérmico exigir, ter liberdade na utilização de drogas, entender que o Estado educa os filhos melhor que as famílias, além de que os professores devem incutir nos alunos as suas ideias pessoais, afastando a educação paterna. Até a realidade biológica é contestada para justificar que há um “gênero” diferente dos sexos masculino e feminino - o que a ciência demonstrou ser inferior a 0,03% da humanidade!!!
À evidência, os valores religiosos que se contrapõem à falta de valores destes fundamentalistas não islâmicos, mas ateu, termina gerando uma profunda confusão por seu ativismo ruidoso, conseguindo chamar atenção dos jornais, que vivem, como dizia uma jornalista, das “exceções” e não das “boas ações”. Mark Twain ironizava dizendo que a imprensa separa o joio do trigo para publicar o joio, porque o trigo não vende jornais.
Este fundamentalismo ateu voltado contra valores, por pessoas que não conseguem vive-los, é um dos grandes problemas da humanidade, na atualidade, fazendo lembrar a “Idade do Terror”, em que Robespierre que quis substituir o Deus Criador do Universo pela Deusa Razão. Felizmente, tais cultores do fundamentalismo ateu não chegaram –espero que não cheguem—ao banho de sangue robespierriano, mas, indiscutivelmente, fazem um mal terrível à Nação.
Creio que chegou o momento de a maioria silenciosa, que é esmagadora em números, reagir a estes desfiguradores da Moral, fazendo valer suas crenças, democraticamente, sem discriminações, mas sem covardia, deixando claro que o fundamentalismo ateu nunca representou a maioria da Nação, que acredita em Deus. E que, nas democracias, é a maioria que governa, respeitando as minorias, e não o contrário.
Jornal "O São Paulo", edição 3164, 31 de agosto a 5 de setembro de 2017.

Por que joio e trigo devem conviver até a colheita?

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, teólogo, é o atual Vigário Geral da Congregação dos Missionários de São Carlos (scalabrinianos). Realizou trabalhos pastorais em favelas, cortiços e no interior do Estado com os migrantes cortadores de cana. Foi diretor do CEM-Centro de Estudos Migratórios de São Paulo, assessor do Setor Pastorais Sociais da CNBB, Superior da Província São Paulo dos Padres Scalcabrinianos.

De início, cada pessoa, grupo ou cultura são terreno fértil para ambos. Basta um olhar ao próprio coração, à família ou a qualquer organização para dar-se conta que trigo e joio integram a condição humana. Misturam-se a ponto de ser impossível destruir um sem afetar o outro. Em geral sofremos de uma dicotomia crônica que opõe os bons e os maus como adversários. Uns estão do lado de dentro do muro imaginário, os outros estão do lado de fora. Como se o mundo fosse dividido nitidamente entre “nós” e “eles”: conhecidos e estranhos em campos diversos e adversos. O certo é que a linha divisória entre o bem e o mal passa pelo interior da própria pessoa.
Esse dualismo tende a ser cego para a ambiguidade intrínseca ao ser humano, associação ou comunidade. Supõe que as incongruências e contradições encontram-se sempre do lado contrário. Daí o corte taxativo entre puros e impuros, santos e pecadores, fiéis e infiéis, salvos e perdidos... Estamos aqui a um passo do fanatismo, do extremismo e do fundamentalismo, sejam tais “ismos” de ordem política, ideológica ou religiosa. Daí a discriminação, a intolerância e a perseguição – para não falar da violência e da guerra.
Depois, joio e trigo devem conviver juntos. Pois no jogo complexo das relações humanas e socioculturais, a erva daninha pode superar o próprio veneno e transfigurar-se em planta benéfica. E esta, por sua vez, pode regredir à condição de erva daninha. Toda travessia comporta a probabilidade de um processo de conversão. No percurso da existência, ninguém está definitivamente condenado e ninguém definitivamente salvo. Daí a importância de deixar aberta a porta a possíveis mudanças de rota e de meta. Cortar o joio precocemente significa tolher de uma vez por todas uma eventual regeneração. De um ponto de vista da fé, significa fechar o campo à ação do Espírito Santo na trajetória histórica da pessoa ou cultura.
O terceiro aspecto põe em cena a solução evangélica do Mestre: deixem que joio e trigo cresçam até o tempo da colheita. Então torna-se maduro um julgamento integral, pois todas as cartas já foram jogadas: experimentadas todas as tentativas de resgate. O velho sábio dizia que “a vida é a arte de escrever sem borracha”. E o dito popular acrescenta: “fruto que se colhe cedo demais amarga na boca, fruto que se colhe tarde demais amarga no estômago”. O julgamento e a punição, porém, não pertencem aos homens, mas aos anjos, aos mensageiros de Deus. Como lembrou o Papa Francisco, “quem sou eu para julgar”? Qualquer juízo antecipado pode induzir ao erro, tanto na condenação quanto na salvação. Somente o Senhor da história tem o poder de emitir a sentença definitiva. Os julgamentos humanos serão sempre provisórios.
Conclui-se que os fios invisíveis na trama das relações humanas – fazendo, desfazendo e refazendo o tecido social – se mesclam, se confundem e se alternam. O bem e o mal, tal como o choro e o riso, coexistem lado a lado. Além disso, quem pode decidir o que é bom e o que é mau? Que critérios, leis e costumes usar? Na sociedade cada vez mais “líquida” (Bauman), onde encontrar referenciais pétreos? Só no fim do percurso histórico será possível saber o que permaneceu joio e deve ser queimado, e o que permaneceu trigo e deve ser preservado. Nas etapas intermediárias, o bom senso, a busca do bem comum e as instituições reguladoras recomendam o respeito à dignidade, aos distintos valores e à solidariedade entre pessoas, povos, culturas e nações.
Jornal "O São Paulo", edição 3164, 31 de agosto a 5 de setembro de 2017.

Enfrentando as desigualdades da saúde global (I)

Léo Pessini, doutor em Teologia Moral-Bioética e pós-graduado em Clinical Pastoral Education and Bioethics, pelo St. Luke`s Medical Center, em Milwaukee, nos EUA. Atualmente exerce a função de Superior Geral dos Camilianos, em Roma.

O novo Dicastério da Santa Sé, que visa a Promoção do Desenvolvimento Humano Integral, em cooperação com a Confederação internacional de Instituições de saúde Católicas, estará realizando de 16-18 de novembro próximo, na cidade do Vaticano, a 32ª. Conferência Internacional abordando a temática das “Desigualdades na Saúde Global”.
                Este novo Dicastério Pontifício, prossegue com a realização de Conferencias que eram realizadas já há mais de 30 anos, anteriormente organizado pelo ex-Pontificio Conselho para a Pastoral da Saúde”.  Na 31ª. Conferência, realizadas em 2016, abordou-se o tema “Para uma cultura de acolhida e apoio para com as pessoas acometidas por doenças raras e negligenciadas”. Enfatizou-se também que tais condições de doença, infligem graves ônus econômicos e de cuidados de saúde, para a população, particularmente nos países mais pobres do mundo.  
                Uma das conclusões da 31ª Conferência Internacional (2016) assinalou a necessidade “de examinar de uma forma adequada, e enfrentar concretamente a questão das desigualdades no campo da saúde, bem como os fatores sociais, econômicos, ambientais e culturais que estão atrás delas”.  Dados do evento de 2016 colhidos a partir de estudos internacionais chamam a atenção para os fatores determinantes das desigualdades na saúde global. A expectativa de vida aumentou em 5 anos entre 2000 e 2015. Este aumento o maior na região Africana (mais 9,4 anos), como consequência da aumento de sobrevivência infantil, progresso no controle da malária e a expansão ao acesso aos antirretrovirais para o tratamento dos vírus HIV/AIDS.  A expetativa de vida para crianças nascidas em 2015 era de 71.4 anos (73.8 anos para mulheres e 69.1 anos para homens). Contudo estes estudos mostram que o fosso entre países de baixa e alta renda, continua aumentando. De fato, crianças recém nascidas em 29 países – todos de alta renda – tem uma esperança média de vida de 80 anos ou mais (a mais alta é 86,8 anos para as mulheres japonesas), enquanto que recém nascidos em 22 países da África subsaariana tem uma expectativa de vida de menos de 60 anos, com a menor percentagem em Serra Leoa, com 50.8 anos para as mulheres e 49,3 anos para os homens.
Jornal "O São Paulo", edição 3164, 31 de agosto a 5 de setembro de 2017.

segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Uma chaga a ser amada

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Klaus Brüschke, é membro do movimento dos Focolares, ex-publisher da Editora Cidade Nova, articulista da revista Cidade Nova.

Uma das chagas de nossa sociedade e nossa cidade que, de tanto em tanto, aparece nos noticiário são as “cracolândias”. Os prefeitos e suas equipes tomam medidas, motivados e orientados por próprios sistemas de crenças e valores, num exercício quixotesco. Os recentes episódios envolvendo a “cracolândia” da região da Luz suscitam algumas reflexões a respeito.
Como encaramos as “cracolândias"? Um problema que requer urgente solução? Questão de saúde pública, de segurança, de urbanismo… (com soluções segundo a própria perspectiva: internação, polícia, remoção)? Vem-me à mente a experiência, narrada no livro Presença no inferno (São Paulo: Cidade Nova, 2014), do amigo e sacerdote Renato Chiera, de ir ao encontro dos “cracudos” no Rio de Janeiro. Experiência que não diferirá daquela de tantos da Pastoral da Rua, da Comunidade Belém, da Fazenda da Esperança e muitas outras…
Aprendo com ele que os drogadictos não são um problema: são seres humanos! E que há entre eles um denominador comum: uma ferida profunda pela falta de amor, traduzida em violências física, psicológica e simbólica perpetradas até no seio familiar. Também aprendo que é justamente nas “cracolândias” que eles encontram uma “família”. Ali, entre pessoas de todas as camadas sociais e níveis de instrução – o crack é uma droga “democrática” –, já tendo perdido tudo, amiúde até a dignidade, aceitam-se mutuamente como são, sem críticas nem cobranças – infelizmente encontradiças nos ambientes “de bem”.
Do que essa gente precisa, me ensina padre Renato, é que sejam amadas, escutadas, abraçadas, que sintam que estamos com elas. Assim amadas, também poderão vir a pedir ajuda para recomeçar a vida – que é bem mais do que desintoxicar-se; trata-se de voltar a ser sujeito da própria existência, trabalhar, ser cidadão, amar…
Será que o Estado dá conta dessa tarefa? Experiências como a de Chiera mostram que lidar com situações de vulnerabilidade extrema requer uma “alma”, uma “motivação intrínseca” – religiosa ou não. Entendo que o Estado, instituição burocrática em sentido weberiano, não a possui (ainda que muitos servidores públicos trabalhem motivados por uma “alma”). Por isso, creio que organismos inspirados por valores tenham aqui um papel insubstituível.
Para os cristãos, esta alma está em reconhecer no povo da “cracolândia” o rosto de Jesus que, na cruz, clama: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” Amam este Jesus amando os drogadictos e, amando os drogadictos, amam Jesus.
Chiara Lubich é uma das mestras no amor a Jesus crucificado e abandonado. Inspira-me uma sua prece: “Senhor, dá-me todos os que estão sós… Senti no meu coração a paixão que invade o teu, por todo o abandono em que o mundo inteiro nada. Amo todo o ser doente e só… Quem consola o seu pranto? Quem tem pena de sua morte lenta? E quem estreita ao próprio coração o coração desesperado? Meu Deus, faze que eu seja no mundo o sacramento tangível do teu Amor, do teu ser Amor: que eu seja os braços teus que estreitam a si e consomem no amor toda a solidão do mundo”.
Jornal "O São Paulo", edição 3163, 23 a 30 de agosto 2017.