terça-feira, 29 de maio de 2018

Capítulo V: Luta, vigilância e discernimento


Introdução
A vida cristã é uma luta permanente. Requer-se força e coragem para resistir às tentações do demônio e anunciar o Evangelho (GE, §158).
Qual é, porém, a arma de que dispomos? A graça de Deus sem dúvida, o Espírito de Jesus, que ilumina a nossa inteligência e revigora a nossa vontade, tornando-nos capazes de discernir nas circunstâncias concretas e imprevisíveis de nossa vida o que é verdadeiramente bom, em continuidade com a Palavra e o Espírito do Senhor.
A santidade, em última análise, é uma questão de discernimento iluminado pela Palavra de Jesus e animado pelo Espírito de Amor.
Francisco Catão

Não se trata apenas de uma luta contra o mundo e a mentalidade mundana, nem contra a própria fragilidade e as próprias inclinações, mas é também contra o demónio, que é o príncipe do mal (§159). Enquanto nos obstinarmos a olhar a vida apenas com critérios empíricos, sem uma perspectiva de fé, não admitiremos a existência do demônio. Nos tempos de Jesus confundia-se a ação do demônio com algumas doenças mentais, reconhecidas hoje como tais, mas não simplifiquemos demasiado a realidade, afirmando que nos Evangelhos tudo era doença psíquica.
A presença do demônio consta das primeiras páginas da Sagrada Escritura e Jesus, que nos deixou a oração do Pai-Nosso, quis que a concluíssemos pedindo ao Pai que nos livrasse do Maligno (§160). Não pensemos que seja puro mito, uma figura ou ideia. O demónio não precisa nos possuir, envenena-nos com o ódio, a tristeza, a inveja e os vícios, «como um leão a rugir, anda a rondar nos, procurando a quem devorar» (§161).
A Palavra de Deus convida-nos, a resistir «contra as maquinações do diabo» e a «apagar todas as setas incendiadas do maligno». Não se trata de palavras poéticas; quem não quiser reconhecê-lo se expõe ao fracasso ou à mediocridade (§162). O progresso no bem, o amadurecimento espiritual e o crescimento do amor são o melhor contrapeso ao mal (§163).
O caminho da santidade é fonte de paz e alegria, mas exige que estejamos com «as lâmpadas acesas» e permaneçamos vigilantes, pois, quem não se dá conta de cometer faltas graves contra a Lei de Deus, pode cair numa espécie de sonolência e não advertir a tibieza que pouco a pouco se vai apoderando da sua vida espiritual. Acaba ficando espiritualmente “corrompido” (§164). A corrupção é pior que a queda: é uma cegueira cômoda e autossuficiente, em que tudo acaba por parecer lícito (§165).

Como saber se algo vem do Espírito Santo ou deriva do espírito maligno do mundo?
A única forma é o discernimento, um dom que se precisa pedir ao mesmo Espírito Santo e cultivar na oração e na reflexão (§166). Hoje em dia, tornou-se particularmente necessário, dadas as enormes possibilidades de ação e distração a que, especialmente os jovens, estão sujeitos, para não cair num zapping constante. Sem discernimento, nos transformaríamos em marionetes à mercê das tendências do momento (§167).
Quando aparece uma novidade na própria vida, é necessário discernir se vem ou não de Deus; pode até acontecer que, pelo contrário, as forças do mal nos induzam a não mudar, sufocando o sopro do Espírito Santo. Somos livres, com a liberdade de Jesus, mas Deus nos chama a examinar o que há dentro de nós e o que acontece fora de nós, para reconhecermos os caminhos da plena liberdade (§168).
O discernimento não é necessário apenas em momentos extraordinários: é um instrumento de luta, para melhor seguir o Senhor. Devemo-nos decidir nas coisas simples e diárias. Trata-se de não colocar limites rumo ao máximo, mas ao mesmo tempo concentrar-se no pequeno, nos compromissos de hoje. O discernimento nos leva a valorizar os meios concretos que o Senhor predispõe, no seu misterioso plano de amor, para não ficarmos apenas nas boas intenções (§169)
O discernimento espiritual não exclui as contribuições de sabedorias humanas. Não lhe bastam também as normas sábias da Igreja. É uma graça, inclui a razão e a prudência, mas as supera, pois se trata de entrever o mistério daquele projeto, único e irrepetível, que Deus tem para cada um de nós. Em suma, leva-nos à fonte da vida que não morre. Não requer capacidades especiais nem está reservado aos mais inteligentes e instruídos, pois o Pai Se manifesta aos humildes (§170).
Embora o Senhor nos fale de muitos e variados modos, não é possível prescindir do silêncio da oração prolongada para perceber melhor nossa vida à luz do Espírito (§171). O discernimento orante exige a predisposição de escutar: o Senhor, os outros e a própria realidade, que não cessa de nos interpelar. Exige estar disponível para acolher um chamado que contrarie nossas seguranças, mas nos leva a uma vida melhor, sem que nem reconheceríamos a voz de Deus, tão distraídos e acomodados que somos (§172).
Não se trata de aplicar receitas ou repetir o passado, somente o Espírito sabe penetrar nas dobras mais recônditas da realidade para iluminá-la com a luz do Evangelho (§173). Seguir o caminho da cruz e educar-se para a paciência de Deus e seus tempos, que nunca são os nossos, é a condição essencial para avançar no discernimento (§174).
Quando perscrutamos na presença de Deus os caminhos da vida, não há espaços que fiquem excluídos. Em todos os aspetos da existência podemos continuar a crescer e dar algo mais a Deus, mesmo naqueles em que experimentamos as dificuldades mais fortes. Mas é necessário pedir ao Espírito Santo que nos liberte e expulse aquele medo que nos leva a negar-Lhe a entrada nalguns recantos da nossa vida (§175).
Contemplemos a figura de Maria. Ela viveu como ninguém as bem-aventuranças de Jesus. A Mãe não necessita de muitas palavras, para lhe explicar o que se passa conosco (§176). Que estas páginas sejam úteis para que toda a Igreja se dedique a promover o desejo da santidade. Peçamo-lo ao Espírito Santo (§177).
Jornal "O São Paulo", edição 3200, 23 a 30 de maio de 2018.

A nossa roupa de domingo

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte

Isabella Fiorentino, modelo e apresentadora do Programa Esquadrão da Moda.

Sempre me comoveu participar de Missas e celebrações em paróquias de pequenas cidades e vilarejos. É muito bonito ver como as pessoas têm especial cuidado com sua arrumação pessoal e com seu modo de vestir para a Missa.  O decoro e a elegância com que se apresentam, aquela “roupa de domingo“, que não é luxuosa, mas que se vê que foi cuidadosamente escolhida, refletem a piedade e sensibilidade da sua alma. Essa atitude me faz pensar que a aparência exterior é uma maneira de expressar o amor que temos dentro do coração.
A preparação para a Santa Missa é, antes de tudo, uma atitude interior: a disposição de oferecer a Deus tudo o que somos e temos e também de perdoar nossos irmãos antes de apresentarmos nossa oferenda. No entanto, também a nossa atitude exterior é importante para um digno culto a Deus, e se manifesta, entre outros aspectos, por meio da nossa postura e do nosso modo de vestir.
A vestimenta é uma forma de nos comunicar. Quando vamos visitar uma pessoa muito importante ou por quem temos um grande apreço, gastamos tempo para nos preparar, pois estar bem arrumados é uma forma de prestigiá-la. A ninguém ocorre pensar em ir para um casamento ou para uma festa com trajes esportivos. Na Missa, nosso anfitrião é o próprio Deus, o que faz dela o acontecimento mais importante da nossa semana.
Por isso, muito me entristece ver as pessoas chegando para a Missa direto do parque, do churrasco ou da praia, vestidas como se a celebração eucarística fosse apenas uma parte a mais de sua rotina de domingo, um compromisso pouco importante. A Missa torna presente o mesmo Sacrifício da Cruz e cada um de nós está ali como a Virgem Maria, o Apóstolo João ou as Santas Mulheres, acompanhando a Jesus no Calvário.
No Evangelho de São Marcos (Mc 14,3-9), lemos que Jesus não censurou a mulher por derramar sobre seus pés um perfume de grande preço. Pelo contrário, demonstrou gratidão pelo gesto de amor que teve para com Ele. Imagino como alegra o coração de Deus quando damos generosamente a Ele o que temos de melhor, não o que nos sobra. Por isso, fazer da Missa o centro do nosso Domingo, preparando a nossa alma e o nosso corpo adequadamente para esse momento tão sublime, é a melhor forma de demonstrar nosso amor a Deus.
Mesmo sendo profissional da área, não pretendo dar exemplos concretos, pois não se trata de um editorial de Moda. Cada um, a seu modo e sem perder seu estilo pessoal, pode pensar como se apresentar de maneira mais especial para a Missa. Como cristã, gostaria apenas de propor uma reflexão: como podemos demonstrar externamente mais reverência a Jesus Eucarístico, retribuindo o Amor com que Ele se entrega a cada um de nós todos os domingos na Santa Missa?
Jornal "O São Paulo", edição 3200, 23 a 30 de maio de 2018.

Subsidiariedade: proposta de um novo paradigma social


Rafael Mahfoud Marcoccia é professor do Centro Universitário FEI.

Em artigo anterior (Antropologia positiva: berço da sociabilidade, O São Paulo, 17/01/2018) encerrei afirmando que a subsidiariedade parte de uma antropologia positiva e permite correções virtuosas ao liberalismo e ao estatismo. Esse princípio encontra sua formulação mais adequada na Doutrina Social da Igreja. Sua primeira formulação data da encíclica Quadragesimo anno (QA) de Pio XI: “Assim como é totalmente errado tirar dos indivíduos aquilo que eles podem realizar por sua própria iniciativa e trabalho e dar à comunidade, também é uma injustiça designar a uma associação maior e mais alta o que organizações menores e subordinadas podem fazer”, porque “toda atividade social deve, por sua própria natureza, fornecer ajuda aos membros do grupo social, e nunca destruí-los e absorvê-los” (QA 79).
Desde o início, o princípio é, portanto, caracterizado pelo apelo a uma obrigação dupla por parte do governo: a obrigação negativa de se abster de intervir quando os indivíduos e associações menores podem executar de forma mais adequada certa função; e a obrigação positiva de ajudar e apoiar a livre iniciativa dos indivíduos e de realidades sociais quando necessário.
A obrigação do governo de se limitar e de ajudar implica na afirmação decisiva de que a liberdade humana é a dimensão primária e construtiva no contexto social e institucional. A subsidiariedade sugere que é preciso ver, ouvir, para aumentar o valor do que originalmente existe e desenvolver livremente, de baixo para cima, em resposta às necessidades dos indivíduos e da coletividade.
O princípio da subsidiariedade, portanto, se baseia na hipótese de que a pessoa, individualmente ou em associação com outras pessoas, é potencialmente capaz de confrontar as necessidades coletivas e satisfazê-las. Essa perspectiva não é dominada pela suspeita em relação à presumível busca do desejo particular e individual ou às consequências (negativas) que isso talvez tenha para o bem comum. Pelo contrário, há confiança em que a tensão construtiva dentro da condição humana tenha um resultado positivo.
Sempre que o projeto de um sistema de bem-estar social reconhece a busca pelo bem e a capacidade de se relacionar como constituintes de cada indivíduo, uma função subsidiária para o Estado emerge naturalmente, baseada no respeito pela dignidade de cada pessoa e agindo para aumentar – em vez de restringir ou diminuir – a capacidade de autonomia do cidadão, seja enquanto indivíduo ou em associações livres. Por essa razão, ele deve agir em grande parte de maneira subsidiária, sempre que as iniciativas dos órgãos sociais não responderem adequadamente às diferentes necessidades individuais. Em casos assim, a intervenção do Estado atua como um incentivo para apoiar as iniciativas e o trabalho de indivíduos ou de formações sociais, sem necessariamente substituí-los.
Assim, as necessidades estruturais do ser humano – como os desejos de bem, justiça e verdade - são o ponto de partida para uma reestruturação da sociedade que supere tanto a suposta racionalidade do homo oeconomicus, e uma concepção de cidadania limitada ao desfrute passivo dos direitos (e impostos) garantidos pelo Estado-Providência.
Em suma, a subsidiariedade propõe um novo paradigma social e um “novo governo” baseado na colaboração, na interdependência, na negociação, na parceria e no reconhecimento da necessidade de interação entre as realidades públicas e privadas e, em especial, com as realidades não lucrativas do terceiro setor.
Jornal "O São Paulo", edição 3200, 23 a 30 de maio de 2018.

A Organização Mundial da Saúde aos 70 anos!


Leo Pessini

Neste ano, estamos celebrando o 70º aniversário da Organização Mundial da Saúde, OMS.  Fundada em 1946, a OMS sucedeu a Organização de Saúde da Liga das Nações no imediato pós-guerra. Sua constituição entre em vigor no dia 7 de abril de 1948, comemora-se e desde então, nesta data comemora-se mundialmente o Dia Mundial da Saúde. Neste ano de 2018 o tema que foi proposto é “Cobertura de Saúde Universal: para toda a gente em todos os lugares”.
Nestas últimas 7 décadas, a esperança média de vida em todo o mundo aumentou 23 anos, a varíola desapareceu, e a pólio vai acabar em breve, afirmam os especialistas em saúde.” A OMS é hoje a mais importante agencia da ONU em termos de vigilância sanitária global.  A OMS, desde o início de suas atividades há 70 anos, tem liderado esforços para livrar o mundo de doenças fatais, como a varíola, e para combater hábitos que podem levar à morte, como o consumo de tabaco.  Apesar destes avanços, pessoas em todo o mundo ainda morrem precocemente e não tem acesso aos cuidados indispensáveis e vitais de saúde. Todos os anos, cerca de 100 milhões de pessoas são empurradas para uma situação de pobreza extrema onde faltam todos os cuidados, não só os de saúde.
Neste ano, o Dia Mundial da Saúde deste ano é dedicado a um dos princípios éticos estruturais da OMS: “O gozo do mais alto padrão de saúde possível é um dos direitos fundamentais de qualquer ser humano, sem distinção de raça, religião, crença política, condição econômica ou social”. O Slogan deste dia, vai nesta direção ao propor "Saúde universal: para todos, em todos os lugares".
“Uma boa saúde é a coisa mais preciosa que a pessoa pode ter”, disse Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS. “Quando estão saudáveis, as pessoas podem aprender, trabalhar e sustentar a si mesmas e suas famílias. Quando estão doentes, nada mais importa. Famílias e comunidades ficam para trás. É por isso que a OMS está comprometida em garantir uma boa saúde para todas e todos.” Com 194 Estados Membros em seis regiões no Planeta, a OMS está unida em um esforço compartilhado para melhorar a saúde de todas as pessoas, em todos os lugares – e alcançar o Objetivo (n. 3), da Agenda do Desenvolvimento Sustentável (ODS) 2030 da ONU de garantir “vidas saudáveis e promover o bem-estar para pessoas de todas as idades”. 
Alguns dos maiores ganhos em saúde são observados entre crianças menores de cinco anos: em 2016, seis milhões de crianças a menos morreram antes de completarem cinco anos de idade em relação a 1990. A varíola foi derrotada e a pólio está à beira da erradicação. Muitos países eliminaram com sucesso o sarampo, a malária e as doenças tropicais debilitantes, como dracunculíase (verme-da-guiné), bem como a transmissão do HIV e da sífilis de mãe para filho. 
As novas e ousadas recomendações da OMS para um tratamento precoce e mais simples, combinadas com esforços para facilitar o acesso a medicamentos genéricos mais baratos, ajudaram 21 milhões de pessoas a receberem tratamento para o HIV. A situação de mais de 300 milhões de pessoas que sofrem de infecções crônicas por hepatite B e C está finalmente ganhando atenção global. E parcerias inovadoras produziram vacinas eficazes contra meningite e ebola, bem como a primeira vacina contra a malária do mundo. 
                Nas últimas décadas, vimos o aumento de doenças crônicas não transmissíveis, como câncer, diabetes e doenças cardiovasculares. Essas enfermidades atualmente representam 70% de todas as morte no mundo. Assim, a OMS mudou o foco, com a colaboração dos ministérios de saúde dos países membros, para promover uma alimentação saudável, exercícios físicos e exames de saúde regulares. A Organização realizou campanhas de saúde em todo mundo para a prevenção de diabetes, hipertensão e depressão. A OMS está atualmente respondendo a surtos e crises humanitárias (países em guerra) em mais de 40 países.   
Desde o início, a OMS reuniu especialistas em saúde do mundo todo para produzir recomendações e materiais científicos para todo o globo. Resultado desta ação temos hoje o CID - classificação Internacional de Doenças, utilizada hoje em 100 países como um padrão comum para relatar doenças e identificar tendências de saúde e a Lista de Medicamentos Essenciais da OMS – e um guia para países sobre os principais medicamentos que um sistema nacional de saúde precisa. Em breve teremos a primeira Lista de Diagnósticos Essenciais do mundo.
A partir de agora uma nova e exigente agenda da OMS focará em obter saúde universal para mais de um bilhão de pessoas; proteger mais um bilhão de pessoas das emergências de saúde e permitir que um bilhão de pessoas desfrutem de melhor saúde e bem-estar na trilha da Agenda 2030, do Desenvolvimento Sustentável da ONU.
Que isto não seja um mero sonho, ilusão ou utopia, mas que a humanidade acorde, se uma em torno deste objetivo maior de cuidar da saúde humana e superando interesses particulares, se encontre neste horizonte maior de investir em cuidados de saúde, cuidando da vida prioritariamente a partir dos mais deserdados da terra.

Gaudete et Exultate - Capítulo 4: A santidade no mundo atual


Introdução
Depois de indicar o Espírito das bem-aventuranças, em especial da misericórdia para com próximo, que deve ser acolhido como dom de Deus, animando a experiência cristã, Francisco, neste capítulo, propõe algumas caraterísticas indispensáveis, que são graças preciosas que devemos pedir a Deus, para viver a santidade nos dias de hoje e dar testemunho do Evangelho (cf. GE, 110).
São, na verdade, cinco grandes manifestações do amor a Deus e ao próximo particularmente importantes, dados os riscos e os limites da cultura em que viuvemos, marcada pela ansiedade e pela violência, que nos dispersa e enfraquece, pelo negativismo e pela tristeza, pelo comodismo consumista egoísta, pelo individualismo e pelas inúmeras formas de falsa espiritualidade sem Deus, que reinam no mercado religioso atual (§ 111).
Francisco Catão

A primeira destas grandes graças é permanecer centrado, firme em Deus que ama e sustenta. A partir desta firmeza interior, aguentar e suportar as contrariedades, as vicissitudes da vida e também as agressões, as suas infidelidades e defeitos dos outros. Nisto está a fonte da paz (§112).
Pode acontecer que cristãos cheguem a fazer parte de redes de violência verbal através da internet e vários fóruns ou espaços de intercâmbio digital. Mesmo nas midias católicas, a ultrapassar os limites, tolerando a difamação e a calúnia. A língua descontrolada «é um mundo de iniquidade» (§115). A firmeza interior, obra da graça, impede de nos deixarmos arrastar pela violência que invade a vida social, porque a graça aplaca a vaidade e torna possível a mansidão do coração (§116).
Não podemos assumir o papel de juízes e pretender continuamente dar lições (§117). A humildade só se pode enraizar no coração através das humilhações. A santidade que Deus dá à sua Igreja vem através da humilhação do seu Filho: este é o caminho (§118). Refiro-me às humilhações diárias daqueles que evitam falar bem de si mesmos e preferem louvar os outros em vez de se gloriar (§119). Pressupõe um coração pacificado por Cristo, para não cair na tentação de procurar a segurança interior no sucesso, nos prazeres vazios, na riqueza, no domínio sobre os outros ou na imagem social (§121).
A segunda característica é a alegria e sentido de humor. O santo é capaz de viver com alegria e sentido de humor. Sem perder o realismo, ilumina os outros com um espírito positivo e rico de esperança. (§122).
Não falo da alegria individualista presente no consumismo de hoje que só atravanca o coração. Ainda que proporcione prazeres ocasionais e passageiros, não e fonte da alegria que se vive em comunhão, que se partilha e comunica, pois «a felicidade está mais em dar do que em receber» (§128).
A terceira característica é a ousadia e o ardor do impulso evangelizador que deixa uma marca neste mundo. Ousadia, entusiasmo, liberdade interior e no falar, ardor apostólico: tudo isto está contido no termo grego parresia, palavra com que a Bíblia expressa a liberdade duma existência aberta, disponível para Deus e para os irmãos (§129).
Olhemos para Jesus! Sua entranhada compaixão O impelia a sair de Si mesmo a fim de anunciar, mandar em missão, curar e libertar. Somos frágeis, mas portadores dum tesouro que nos faz grandes, torna melhores e mais felizes aqueles que o recebem. (§131). Precisamos do impulso do Espírito para não ser paralisados pelo medo e pelo calculismo. Quando os apóstolos sentiram a tentação de se deixar paralisar pelos medos e perigos, juntaram-se a rezar pedindo parresia (§133)
A quarta característica é buscar viver em comunidade: a santificação é um caminho comunitário (§141). A comunidade, ao nos aproximar uns dos outros, cria aquele «espaço teologal em quer se experimenta a presença mística do Senhor ressuscitado» (§142). A vida comunitária, na família ou em qualquer outra comunidade, compõe-se de pequenos detalhes diários (§143.), em que se vive a atenção e o amor ao próximo.  Lembremo-nos como Jesus convidava os seus discípulos a prestar atenção a esses detalhes (§144. Na comunidade que valoriza os pequenos detalhes do amor sucede, às vezes, que o Senhor, por um dom de seu amor, nos presenteie com consoladoras experiências de Deus (§145).  Contra a tendência para o individualismo consumista, o nosso caminho de santificação nos identifica com o de Jesus. (§146)
A quinta característica é viver em oração constante. Parece óbvio, mas é sempre preciso lembrar que a santidade, em última análise é feita de abertura habitual à transcendência, que se expressa na oração e na adoração e envolve toda a vida. O santo é uma pessoa com espírito orante, que tem necessidade de estar em comunicação com Deus (§147).
A contemplação da face de Jesus morto e ressuscitado recompõe a nossa humanidade, fragmentada pelas canseiras da vida ou marcada pelo pecado. (§151). Que não se entenda, porém, o silêncio orante como uma evasão que nega os outros nem o mundo que nos rodeia (§152).
A oração, precisamente porque se alimenta do dom de Deus na nossa vida, deveria ser sempre rica das obras de Deus, cuja memória está na base da experiência da aliança entre Deus e o seu povo. Memória agradecida (§153), expressão do coração daquele que confia em Deus, pois sabe que sozinho nada consegue. A oração será mais agradável a Deus e mais santificadora, se nela incluirmos o compromisso fraterno com os outros, nela incorporando sua vida, suas angústias e seus melhores sonhos (§154).
Se verdadeiramente acreditarmos que Deus existe, não podemos deixar de viver p§§ara Ele (§155).
A leitura orante da Palavra de Deus permite-nos ficar à escuta do Mestre, fazendo da sua palavra o farol para os nossos passos e a luz para o nosso caminho (§156). O encontro com Jesus nas Escrituras conduz-nos à Eucaristia, onde essa mesma Palavra atinge a sua máxima eficácia, porque é presença real d’Aquele que é a Palavra viva (§157).
Jornal "O São Paulo", edição 3199, 16 a 22 de maio de 2018.

Quando o bem comum desaba

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte

Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

Na madrugada de 1º de maio, não desabou apenas um edifício no Largo Paiçandu, em São Paulo, tombado e ocupado irregularmente por famílias. Desabou – uma vez mais – a ilusão de uma sociedade orientada para o bem comum.
O drama da falta de moradias para famílias de baixa renda se arrasta há décadas tanto na cidade quanto no País. Não seria justo negar os avanços nos programas sociais de moradia para populações de baixa renda, mas não deixa de ser impressionante que, na cidade mais rica do Brasil, se estime que seriam necessários 120 anos para zerar o déficit habitacional do município, mantendo-se os investimentos atuais.
É justíssimo cobrar a responsabilidade do Estado diante de tais dramas – de todos que não têm moradia digna e das vítimas do desabamento, em particular. Porém, a ação do Estado não é mais que a somatória dos vários governos que se sucedem. Nos últimos 25 anos, a prefeitura de São Paulo foi ocupada por cinco partidos diferentes, dos mais diversos coloridos ideológicos. Nenhum deles consolidou um caminho de solução para o problema (ou conseguiu ficar tempo suficiente no poder para consolidar uma solução).
O problema não é só dos políticos, nem de um Estado abstrato que paira acima de todas as contradições sociais. É de todos nós: para ser solucionado, depende do quanto pensamos a solidariedade e o bem comum como critério objetivo nas eleições e na organização da nossa vida.
Individualmente, e mesmo como grupo social, nenhum de nós é culpado por essa situação. Porém, nada mudará para melhor sem uma vontade política solidária, que dê apoio, força e estabilidade para programas sociais que resolvam os problemas da cidade – fugindo das armadilhas ideológicas que podem ser encontradas nos dois lados do espectro ideológico.
Uma sociedade que não é solidária, na qual os cidadãos não deixam, pelo menos em alguns momentos, seus interesses particulares de lado em função da realização do bem comum, não consegue resolver seus problemas de forma adequada e todos acabam perdendo com isso.
Sem solidariedade e busca pelo bem comum, todos perdem – ainda que os pobres sejam os que mais sofrem. Essa era a mensagem do Papa Bento XVI, na Caritas in veritate, para não falar nos vários textos do Papa Francisco.
A degradação do centro de São Paulo é o reflexo de uma falta de solidariedade – ou pelo menos de uma solidariedade que não consegue ganhar consistência e estabilidade política. Prédios abandonados e/ou desocupados, moradores de rua espalhados pelo centro, cracolândias, retratam o desmoronamento do bem comum.
Entre nós, dois mitos se antepõem à construção do bem comum:
1) A crença de que o Estado é o responsável único pelo bem comum. Pagamos nossos impostos para que ele se ocupe dos problemas sociais por nós. Não percebemos que o Estado social só tem dado certo em países onde a sociedade civil está muito organizada e os cidadãos assumem seu papel cívico, tanto nas eleições quanto no dia a dia.
2) A ilusão de que basta acabar com a corrupção para que sobre dinheiro para resolver os problemas sociais do Brasil. Nossa renda per capita é baixa, a desigualdade material muito alta, o corporativismo e o fisiologismo dos políticos muito grande. A corrupção não acabará rapidamente e mesmo que acabasse o Estado ainda teria dificuldade para financiar todos os investimentos sociais necessários para o País.
Temos que cobrar ações efetivas do Estado, temos que combater a corrupção – mas também temos que dar nossa contribuição pessoal para que uma vontade política solidária determine os rumos da gestão da cidade de São Paulo.
 Jornal "O São Paulo", edição 3199, 16 a 22 de maio de 2018.

A Psicologia e os Cuidados Paliativos

Stela Reginato Orozco Lopez. Psicóloga.

“O sofrimento somente é intolerável quando ninguém cuida”.
(Cicely Saunders)."

Ao longo da história, o conceito da morte foi se alterando. Há séculos ela ocorria no âmbito público, familiar e religioso e a expectativa de vida era baixa[1]. Os avanços tecnológicos e científicos tornaram a vida mais longeva, e os profissionais de saúde passaram a manipular recursos sofisticados para evitar padecimentos. A morte, por sua vez, tornou-se hospitalar. E não é raro senti-la como um fracasso, seja da equipe de profissionais envolvidos, seja pela ausência de investimentos suficientes. Há casos em que esse sentimento é exato, mas muitas vezes isso se deve à nossa resistência em aceitar a realidade da morte. Talvez essa resistência seja reforçada pela crença generalizada de que essa passagem é sempre acompanhada de dores e sofrimentos insuportáveis. Entretanto, a literatura e pesquisas apontam que o mais doloroso ao paciente é a experiência da solidão, tantas vezes inerentes ao ambiente hospitalar de terapias intensivas.
E aí entram em jogo os cada vez mais valorizados “cuidados paliativos”, nos quais o psicólogo assume um relevante papel. Se nem sempre é possível curar, sempre é possível cuidar dos pacientes em sua fase terminal.
Desde 2002 a Organização Mundial de Saúde (OMS)[2] define Cuidados Paliativos como uma possibilidade de cuidado integral e amplo das diferentes dimensões humanas[3], fornecido ao paciente e à sua família. Atuam com prevenção e alívio do sofrimento por meios de identificação precoce, avaliação correta e tratamento da dor e de outros problemas de ordem física, psicossocial e espiritual. A falta de prognóstico ou de possibilidade de cura para pacientes não inibe que estes não recebam terapêuticas adequadas para seu bem-estar e qualidade de vida até o seu último instante. Esse procedimento é visto como um direito do paciente/família e um dever dos profissionais de saúde, podendo ser oferecidos desde a revelação diagnóstica, em diferenciados públicos.
A possibilidade dessa atuação requer um ambiente apropriado para dar suporte contínuo. E, embora envolva poucos recursos tecnológicos, requer relativamente mais recursos humanos, com equipes de saúde qualificadas. Essas equipes são multiprofissionais, compostas por médico, enfermeiro, assistente social, nutricionista, fisioterapeuta, psicólogo, terapeuta ocupacional, conselheiro espiritual ou capelão[4]. E todos interagem entre si, valorizando-se os diversos conhecimentos e enfoques, que se apoiam mutuamente, reconhecendo-se as competências e as incompetências correlatas, as possibilidades e os limites da própria disciplina e de seus agentes.
Em 2007, a OMS atribuiu ao psicólogo o trabalho de minimizar o sofrimento em relação ao paciente, à família e à equipe de saúde, todos considerados cuidadores. A mesma organização entende e recomenda reafirmar a vida e considerar a morte como um processo normal, sem apressar ou adiar a morte, oferecer alívio à dor e a outros sintomas que causem sofrimento, integrar aspectos psicológicos e espirituais dos cuidados aos pacientes, oferecer apoio para que se viva tão ativamente quanto possível até a morte, oferecer apoio à família no enfrentamento da doença e do luto. Deixando claro que os cuidados paliativos não significam “nada mais será feito” já que sempre há uma terapêutica a ser preconizada para um doente[5] com ações paliativas:

Qualquer medida terapêutica, sem intenção curativa, que visa a diminuir, em ambiente hospitalar ou domiciliar, as repercussões negativas da doença sobre o bem-estar do paciente. É parte integrante da prática do profissional de saúde, independente da doença ou de seu estágio de evolução. (MACIEL, 2008, p.23)[6]
São procedimentos que diminuem os sintomas de desconforto, capazes de evitar o sofrimento e a dor que podem envolver essa situação até o final da vida, indispensáveis ao paciente. É esperado que o psicólogo neste contexto tenha habilidades relacionadas às questões do final da vida, a fim de responder aos desafios encontrados nesse contexto laboral instável, de alto risco de mortalidade, presença de diferentes saberes e intensas demandas familiares. Este profissional atua com o paciente e com os cuidadores, seja a família ou a equipe de saúde, com escuta ativa; boa comunicação; conhecimento técnico dos quadros clínicos e criatividade para aprimorar estratégias de enfrentamentos, condizentes com essa realidade de adaptação, de perdas e de lidar com o luto. Cabe a ele lidar com as diferenças de crenças, valores e conhecimentos que o permeiam tanto pela família, quanto os membros da equipe; atuando assim como ponte entre os diferentes membros envolvidos.
Tão difícil se faz, em tempos modernos, cuidar da sobrevivência da esperança ou lidar com a frustração da impotência frente a morte, que passou do meio público e familiar para o ambiente hospitalar. Diante desse quadro surge a necessidade de retomar a função do cuidar. Em meados do século XX, volta-se a questionar o cuidar, para os profissionais de saúde, para além do curar. É nesse contexto que a função do psicólogo se tornou fundamental para o acolhimento, a humanização, troca de saberes e oferecendo suporte necessário para este momento.



[1]  Braga (2013), Kovács (2006) e Kovásc (2008).
[2] Braga (2013).
[3]  Franco (2008).
[4] Melo e outros (2013).
[5] Braga ( 2013).
[6]  Maciel (p.23, 2008).

sexta-feira, 18 de maio de 2018

Conclusões de Medellín: a Igreja de Cristo Jesus presente na América.

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte

Pe. José Ulisses Leva, Doutor em História Eclesiástica pela Pontifícia Universidade Gregoriana e professor da Faculdade de Teologia da PUC-SP. 

Estamos motivados pelos 50 anos da Conferência Latino-americana ocorrida em Medellín, na Colômbia. A Igreja de Cristo Jesus presente neste Continente recorda com alegria e celebra com esperança o anúncio querigmático do Evangelho de nosso Salvador.
Percebendo as necessidades e preocupações do homem e mulher presentes na América Latina, a Igreja procurou responder como Mãe e Mestra. A II Conferência Geral do Episcopado Latino-americano, ocorrida em Medellín, em 1968, destacou: “A Igreja latino-americana, reunida na II Conferência Geral de seu Episcopado, situou no centro de sua atenção o homem deste continente, que vive um momento decisivo de seu processo histórico”. (Medellín, Introdução, p 5). Foi seguramente um marco eclesial e presencial às angústias e sofrimentos das pessoas que bradavam e aguardavam por esperança e confiança. O anúncio do Evangelho de Cristo Jesus e a atenção do episcopado selaram as bases para a Igreja presente no Continente da Esperança.
Nos anos 60 do século XX, a América Latina era sacudida por mortes nos campos e na cidade. As ditaduras se faziam presentes em várias nações. O desespero tomava conta das massas desorientadas pela violência e opressão. As vozes estudantis, os movimentos campesinos e a liberdade de consciência, até com levantes armados, imperavam nos variados ambientes da sociedade.
Num Continente maciçamente jovem e majoritariamente empobrecido, a Igreja de Cristo Jesus, representada por suas Conferências Episcopais Nacionais, procurou escutar e entender o clamor da população e promover as mudanças que a sociedade almejava.
Um fortíssimo aliado no Continente foi a mobilização do Episcopado Católico. Os Bispos apresentaram às orientações do Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965) e seguiram a antiquíssima tradição eclesial e reuniram-se em Assembleia. As Conferências Episcopais Nacionais uniram forças e juntos traçaram não só um Documento, mas metas prioritárias para a evangelização. “Toda revisão e renovação das estruturas eclesiais no que tem de reformável, deve evidentemente ser feita para atender as exigências de situações históricas concretas, mas não perdendo de vista a própria natureza da Igreja. A revisão que hoje se deve levar a cabo em nossa situação continental há de ser inspirada e orientada pelas ideias diretivas muito sublinhadas no Concílio: a da COMUNHÃO e a da CATOLICIDADE (LG 13)” (Medellín, pp 152-153).
Diante do contexto continental, os jovens e os pobres foram assegurados como prioridades, sem deixar de lado a universalidade dos problemas.  Assim as Resoluções do Concílio Ecumênico Vaticano II e as Conclusões de Medellín passaram a ser para a Igreja presente na América Latina o seu referencial. A Igreja lançava seu olhar sobre as dores secularmente impostas aos homens e mulheres desse Continente. Projetava a todos esperança e um devir assegurados à luz do Evangelho de Jesus Cristo e no testemunho e presença do episcopado.
Jornal "O São Paulo", edição 3198, 9 a 15 de maio de 2018.

Gaudete et Exultate - Capítulo 3, À luz do Mestre II: A grande regra de comportamento


Introdução
No capítulo 25 do Evangelho de Mateus Jesus volta a se deter numa das bem-aventuranças: a que declara felizes os misericordiosos. Se andamos à procura da santidade que agrada a Deus, encontramos neste texto a regra de comportamento sob  a qual seremos julgados: cuidando do próximo em suas necessidades, cuidamos de Jesus: «Tive fome e Me destes de comer, tive sede e Me destes de beber, era peregrino e Me recolhestes, estava nu e Me destes que vestir, adoeci e Me visitastes, estive na prisão e fostes ter comigo» (GE, § 95).
O Espírito que anima a experiência cristã se concretiza no gesto de amor e de bondade para com todas as pessoas com que nos relacionamos no dia a dia, porque é nelas e por elas, que Jesus vem ao nosso encontro.
Francisco Catão

O caráter místico desse encontro funda-se antes de tudo na Palavra de Jesus. Mais do que mero convite à caridade, as palavras de Jesus são aqui uma página de doutrina, que projetam um feixe de luz sobre o mistério de Cristo (§ 96). É meu dever pedir aos cristãos que as aceitem e recebam com sincera abertura, sine glossa, isto é, sem comentários, especulações e desculpas que lhes tirem a força. O Senhor deixou-nos bem claro que a santidade não se pode compreender nem viver prescindindo destas suas exigências, porque a misericórdia é o «coração pulsante do Evangelho (§ 97).
Quando encontro uma pessoa a dormir na rua posso sentir ou que se trate de um problema que não me compete resolver, ou reagir a partir da fé e da caridade e reconhecer nele um ser humano com a mesma dignidade que eu, um irmão redimido por Jesus Cristo. Isto é ser cristão! Poder-se-ia porventura entender a santidade prescindindo deste reconhecimento vivo da dignidade de todo o ser humano? (§ 98)
Para os cristãos, isto supõe uma saudável e permanente insatisfação. Embora dar alívio a uma única pessoa já justificasse todos os nossos esforços, isto, para nós, não é suficiente. Não basta praticar apenas algumas boas ações, é preciso se empenhar em procurar uma mudança social: o restabelecimento de sistemas sociais e econômicos justos, para acabar com a exclusão (§ 99).
 Primeiro, separam as exigências do Evangelho de nosso relacionamento pessoal com o Senhor, da união interior com Ele, transformando o cristianismo numa espécie de ONG, privada da espiritualidade irradiante que viveram os santos (§ 100).
 Depois levam as pessoas a viver suspeitando do compromisso social dos outros grupos, como se não houvesse nada mais importante do que a ética ou o arrazoado que abraçam. A defesa do inocente nascituro, por exemplo, deve ser clara, firme e apaixonada, porque neste caso está em jogo a dignidade da vida humana, sempre sagrada, e o exige o amor por toda a pessoa, independentemente do seu desenvolvimento.
Igualmente sagrada é a vida dos pobres que já nasceram e se debatem na miséria, no abandono, na exclusão, no tráfico de pessoas, na eutanásia encoberta de doentes e idosos privados de cuidados, nas novas formas de escravatura, e em todas as formas de descarte (§ 101).
 Não nos podemos propor um ideal de santidade que ignore a injustiça deste mundo, em que alguns festejam, gastam folgadamente e reduzem sua vida às novidades do consumo, enquanto outros se limitam a olhar de fora, numa vida que se passa e termina miseravelmente (§ 101)
Muitas vezes, em face do relativismo e dos limites do mundo atual, ouve-se dizer que a situação dos excluídos é um tema marginal. Longe disso, basta pensar, por exemplo, na situação dos migrantes. Não se pode desconhecer que acolher o migrante é precisamente o que hoje nos exige Jesus, quando diz que a Ele mesmo recebemos em cada forasteiro (§ 102).
Damos glória a Deus não só com o culto, a oração, ou a simples observância de algumas normas éticas. O primado, é verdade, pertence à relação com Deus, mas não nos esqueçamos de que, antes de mais nada, o critério de avaliação da nossa vida é o que fazemos pelos outros. A oração é preciosa, alimenta a doação diária de amor; o culto agrada a Deus, quando inclui o propósito de viver com generosidade e quando o dom recebido se manifesta na dedicação aos irmãos (§ 104).
O melhor modo de discernir se nosso caminho de oração é autêntico é de ver em que medida nossa vida se vai transformando à luz da misericórdia, arquitrave que suporta a vida da Igreja, manifesta mais luminosa a verdade de Deus e é a chave do Céu» (§105)
Tomás de Aquino ensina que nossas ações maiores não são as obras exteriores. Não praticamos o culto para proveito de Deus, mas para benefício nosso e do próximo, por isso a misericórdia é o sacrifício que mais Lhe agrada» (§ 106). Quem deseja dar glória a Deus com a sua vida, é chamado a se gastar e se cansar praticando a misericórdia. Deus depende de nós para amar o mundo e lhe demonstrar o muito que o ama (§ 107).
O consumismo hedonista nos pode enganar, porque, na obsessão de nos divertirmos, acabamos por estar excessivamente concentrados em nós mesmos. O próprio consumo de informação superficial e as formas de comunicação rápida e virtual podem ser um fator de estonteamento que ocupa todo o nosso tempo e nos afasta da carne sofredora dos irmãos. No meio deste turbilhão atual, volta a ressoar o Evangelho para nos oferecer uma vida diferente, mais saudável e mais feliz (§ 108)
A força do testemunho dos santos consiste em viver as bem-aventuranças e observar a regra de comportamento do juízo final. Recomendo vivamente que se leia, com frequência, estes grandes textos bíblicos, se reze com eles e se procure encarná-los. Far-nos-ão bem e nos tornarão genuinamente felizes (§ 109).
Jornal "O São Paulo", edição 3198, 9 a 15 de maio de 2018.

Vale a pena ser mãe?


Elizabeth Kipman Cerqueira

Em caminho de progressiva autodescoberta e valorização, a voz feminina vem se fazendo ouvir. O movimento de defesa da Mulher existe porque existe a Mulher, com sua identidade, seu potencial, sua importância insubstituível em qualquer sociedade ou cultura.
Mas, qual é essa identidade? Existiria uma raiz que identifica a Mulher?
Existem hormônios femininos no Homem e hormônios masculinos na Mulher, entretanto isso não os torna idênticos biologicamente. Existem qualidades predominantemente femininas e outras predominantemente masculinas a serem desenvolvidas tanto no Homem como na Mulher, o que, também, não os identifica psicologicamente. Razões biológicas e evolutivas atestam a necessidade para que se desenvolvesse a predominância de qualidades em ambos de forma diferente, pois não é indiferente que a função acolhedora da vida em gestação (útero) e o papel nutricional (mamas) se cumpram na Mulher.
O recém-nascido humano é o mais imaturo entre os mamíferos; só após muitos anos, poderá providenciar sua sobrevivência e essa vulnerabilidade constituiu um marco para o salto evolutivo da espécie. Desde a época das cavernas, a criança exigiu dedicação exclusiva por tempo prolongado e isso foi o pilar para o processo de desenvolvimento humano: divisão de funções, cooperação para manter a procriação, mola propulsora para a sociabilização e o desenvolvimento da comunicação.
As mães dedicadas à sobrevivência de seus filhos necessitaram de protetores e de provedores de alimento. Desde a pré-história, elas se especializaram na criança, uma das tarefas mais dignas e transcendentes da história de toda humanidade, o que nos permitiu estar aqui, hoje. Com a ajuda dos pais, foram tão eficientes nesta tarefa que nossa espécie alcançou o mais alto índice de recém-nascidos que conseguem chegar à idade adulta.
Agora, a organização social, política e econômica permite a emancipação da mulher, a ampliação de sua realização pessoal e a prática independente da afetividade e da sexualidade. Ainda vale a pena a maternidade? Não seria uma “volta às cavernas”?
Clamam aspirações de tantas lutas de mulheres conhecidas e anônimas: o desejo de liberdade para viver e deixar a impressão digital insubstituível de cada Mulher na história.
Nesta busca de realização pessoal é indispensável descobrir a si mesma. Ela, antes de tudo, necessita admirar a si própria, seu potencial existencial – ESSA É A CHAVE PARA A GRANDE VIRADA.
À Mulher coube anunciar o apelo à transcendência ao abrir-se ao cuidado como defensora da vida gerada. A condição gregária do ser humano teve origem principalmente nas mães. Esta maravilha, fonte do crescimento da humanização, não pode ser motivo de opressão, obstáculo ao seu desenvolvimento, em sociedades de qualquer cunho político.
Hoje, ante a pressão que conclama ao individualismo, ao descarte fácil dos relacionamentos e, sobretudo, diante da pressão que desvaloriza o próprio potencial de fecundidade, os desafios não se resumem apenas ao econômico ou à necessidade de realização profissional. Correntes radicais na luta pela igualdade de direitos para homens e mulheres entendem ser necessário que a Mulher se liberte da própria maternidade.
Entretanto, com filhos biológicos ou não, a Mulher tem o dom de gerar que o Homem não tem. Ela é sempre Mãe em sua constituição porque tem a sensibilidade primeira para reconhecer o dom da vida e, por isso, ensinar também ao Homem, como se respeita a Vida. Todas as tarefas sociais cabem a ambos, porém se as diferenças forem ignoradas, decretamos não existir a Mulher. A correção do erro histórico de sua submissão, consequente à pretensa superioridade masculina, não supõe inverter a supremacia opressora anterior ou em anular as diferenças, mas em reconhecer o específico valor de ambos. Se dela for retirado seu olhar de amor e de acolhimento, coloca-se em risco a sua identidade e o próprio valor gregário que leva a sociedade a proteger o mais vulnerável. Se politicamente o fizermos, desenvolveremos o caminho contrário à construção e ameaçamos a própria sobrevivência da humanidade.
Nossa História se faz vivendo e acolhendo a Vida: a Mulher é a maravilhosa líder desse caminho ao afirmar a grandeza de seu potencial à maternidade – da vida considerada em seus múltiplos aspectos, não apenas na geração de filhos em seu ventre - convocando o Homem a assumir sua responsabilidade à paternidade, igualmente da vida considerada em seus múltiplos aspectos. A primeira impressão digital insubstituível de cada Mulher é clamar que VALE A PENA GERAR!

quarta-feira, 9 de maio de 2018

Livro: Personalismo


Livro: Alienação e Intolerância



Armas a favor da paz?

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte

Wagner Balera

Há poucos dias assistíamos, estarrecidos, a uma incursão militar encetada por três superpotências com o escopo de garantirem, supostamente, a eliminação de depósitos de armas químicas existentes em território da tão sofrida síria.
O chorrilho de misseis – não se sabe bem quantos porque há uma guerra de informação dentro da guerra da Síria – teria função cirúrgica.  Portanto, de nenhum modo seriam atingidas pessoas humanas.
Como que num terrível ensaio de revival da guerra fria e, no limite, de conflito de maiores proporções (o que foi o estopim que desencadeou a primeira guerra?) atores que deveriam envidar todos os esforços para a solução pacífica dos conflitos, tal como preconiza a Carta das Nações Unidas, tomam à frente de conflitos graves, verdadeira guerra civil, como se lhes fosse dada pela comunidade internacional a função de entes tutelares deste ou daquele país. .
É tempo de voltarmos à sabia lição de João XXIII que se acha estampada na  Pacem in terris,  que busca entender e indicar que a justa e equilibrada relação entre Estados depende da adequada abordagem de quatro conceitos fundamentais: a verdade, a justiça, a liberdade e o amor.
A partir desse olhar cristão sobre quaisquer conflitos, convém recordar, bem poderíamos indagar o que se passa na Síria.
É verdade que houve a utilização de armas químicas? O precedente do Iraque, relativamente, recente, não permite resposta pronta e cabal.  
É justo sujeitar o povo sírio às aflições de um ataque de curso imprevisível e de consequências idem?
A liberdade, como eixo de discussão de todo o processo condutor à paz naquele pais exige, de todos, sem exclusão de ninguém, responsável compromisso com cada uma das ações que intenta. Não posso libertar o outro se me valho, para tanto, de mais guerra, de mais demonstração de poderio militar. Devo, antes, conter os excessos; evitar os erros e fazer todo o esforço para que a mesa de negociações esteja sempre posta.
Jamais será conquistada a paz, não apenas na Síria, mas em todo e qualquer lugar do mundo onde os conflitos se apresentam, se o coração humano não estiver aberto ao amor, qualidade inerente a Deus, como explicita João.
O amor rejeita todas as fórmulas de destruição, inclusive aquelas que são travestidas de funções corretivas e dissuasórias.
Ocorre que a paz é tão exigente quanto o amor, em certo sentido.
A paz depende, para além da perspectiva individual, aquela que situa o todo, a coletividade. Exige que a sociedade mundial seja mais justa; mais humana.
O estado de coisas atual fomenta as guerras internas (como a da Síria) e as ingerências dos todo-poderosos.
Bem percebeu essa situação São João XXIII quando perguntou: “Esquecida a justiça, a que se reduzem os reinos senão a grandes latrocínios? ”
As armas a favor da paz, para invocarmos a epígrafe da Mensagem lançada por Paulo VI, em 1976, estão sintetizadas na Declaração Universal dos Direitos Humanos - que bem pode ser considerado o guião para a paz, para a justiça, para o amor e para a liberdade.
Urge a convocação urgente de uma conferência de paz para a Síria. Mas essa conferência deve ter o amor como pauta; deve ser o caminho para a civilização do amor.
Jornal "O São Paulo", edição 3197, 3 a 8 de maio de 2018.

A inversão radical da Gaudete et Exsultate


Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP

Entre os muitos modismos de nosso tempo, está o fascínio pelas “inversões de valores”. Certas obras são propostas como leituras necessárias apenas porque fazem alguma dessas inversões.
Por traz desse encanto existe mais do que um deslumbramento inconsequente ou uma negação sistemática e irracional. Existe a percepção, dolorosa quando encarada seriamente, de que os ideais que moldaram a vida das gerações precedentes eram falsos, porque vividos de forma hipócrita ou porque impotentes para trazer felicidade aos corações humanos.
A rebeldia pode ser apenas uma tentativa infantil de não reconhecer a realidade e as responsabilidades que acarreta (mesmo quando o rebelde é um adulto). Porém, até com mais frequência, é o grito daquele que não quer se conformar a uma vida sem sentido, sem sabor e sem amor.
Por isso, a maioria das inversões de valores, se levadas a sério, são como pistas deixadas por um refém do vazio que busca encontrar e ser encontrado por um amor que dê o sentido verdadeiro a sua vida. Ou o esforço solidário daqueles que perceberam que nossa sociedade foi construída sobre valores desumanos e injustos (ainda que falsamente apresentados como cristãos) e que agora procuram encontrar novos valores para construir um mundo mais humano.
Contudo, a mais extremada inversão de valores da história encontra-se num texto de quase vinte séculos de idade. As bem-aventuranças evangélicas invertem todos os princípios de realização individual que nossa inteligência poderia conceber. Consciente desse fato, o Papa Francisco as coloca no centro de sua Exortação sobre a santidade, Gaudete et Exsultate. Quem quiser ser santo, deve buscá-las e praticá-las. Ainda mais radical, Francisco remete à tradição que traduz o grego do Evangelho não como “bem-aventurados” ou “abençoados”, mas como “felizes”.
Como poderá ser feliz uma pessoa pobre, mansa e não violenta, humilhada, que chora e sofre com as injustiças e as dores do mundo, destituída de poder e sofrendo perseguição? Num mundo que valoriza a força e a agressividade, a riqueza, o prazer, o sucesso e o “empoderamento” individual, uma pessoa que vive conforme a descrição das bem-aventuranças não poderia ser feliz. Mas, é esse mesmo mundo que busca as inversões de valores, porque se reconhece sem responda para o desejo de felicidade que habita os corações humanos.
Curiosamente, as indicações concretas das bem-aventuranças, em versões atenuadas e edulcoradas, povoam o imaginário de nossos tempos. Livros de autoajuda, conselhos de psicólogos e coachings, organizações que pregam a não-violência, e até filmes e histórias de heróis referem-se à humildade, à empatia, à paz como condições para uma vida mais feliz, enquanto denunciam as armadilhas da busca do poder e do sucesso a qualquer custo, do individualismo e da ambição.
A radicalidade evangélica, contudo, brota de algo mais: a experiência de ter recebido um amor impensável, capaz de superar a todas as adversidades e de se comprometer com o bem de todos. Sem isso, as bem-aventuranças se perdem no voluntarismo pelagiano denunciado pelo próprio Papa Francisco em seu texto, ou tem que ser recortadas e edulcoradas para serem seguidas apenas em parte –ajudando a melhorar a vida e o mundo, mas incapazes de dar sentido à existência e força para superar todas as contradições do mundo.
Sem a consciência dessa radicalidade, a leitura do Terceiro Capítulo da Gaudete et Exsultate, “À luz do Mestre”, poderá ser interessante e até reconfortante, mas a força de sua mensagem será perdida.
Jornal "O São Paulo", edição 3197, 3 a 8 de maio de 2018.

Gaudete et Exsultate - Capítulo 3: à luz do mestre


Contracorrente: As bem-aventuranças
Introdução
Para vivermos a santidade aqui e agora, numa experiência cristã autêntica, é preciso ouvir as palavras de Jesus e assimilar seu modo de transmitir o mistério da intimidade com Deus. Jesus explicou, com toda a simplicidade, o que é ser santo, ao proclamar as bem-aventuranças, que são como que o bilhete de identidade do cristão (GE, Nº 63).
Usa a palavra «bem-aventurado» ou «feliz», que aqui é sinônimo de «santo», porque expressa a experiência de quem é fiel a Deus acolhe sua Palavra e se doa a Ele e ao próximo, alcançando a verdadeira felicidade (Nº 64).              
Francisco Catão
Percorrendo o texto
As bem-aventuranças não são, absolutamente, um compromisso leve ou superficial; pelo contrário, só as podemos viver se o Espírito Santo, que animou a vida de Jesus, animar também a nossa. Nas bem-aventuranças Jesus manifesta a fonte de sua alegria, o Amor, e nos convida a compartilhá-la (Nº 65). Escutemos Jesus com todo o amor que merece (Nº 66).
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«Felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino do Céu»
O Evangelho de Mateus convida-nos a reconhecer a verdade do nosso coração, para ver onde colocamos a segurança da nossa vida (Nº 67). A pobreza de espírito está intimamente ligada à «santa indiferença» (Santo Inácio de Loyola): “indiferentes face a todas as coisas criadas, de tal modo que, por nós mesmos, não queiramos mais a saúde do que a doença, mais a riqueza do que a pobreza” (Nº 69).
Lucas não fala duma pobreza «em espírito», mas simplesmente de ser «pobre», convidando-nos assim a uma vida também austera e essencial (Nº 70).
Ser pobre no coração: isto é santidade
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«Felizes os mansos, porque possuirão a terra»
É uma frase forte, neste mundo, um lugar onde se litiga por todo o lado, onde há ódio em toda a parte, onde constantemente classificamos os outros pelas suas ideias, seus costumes, sua cor e até sua forma de falar ou de vestir-se. Reino do orgulho e da vaidade, onde cada um se julga no direito de se impor aos outros (Nº 71). A mansidão é outra expressão da pobreza interior, de quem deposita a sua confiança apenas em Deus (Nº 74).
Reagir com humilde mansidão: isto é santidade.
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«Felizes os que choram, porque serão consolados»
Só a pessoa que vê as coisas como realmente estão, se deixa trespassar pela aflição e chora no seu coração, é capaz de alcançar as profundezas da vida e ser autenticamente feliz (Nº 76).
Saber chorar com os outros: isto é santidade.
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«Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados»
«Fome e sede» são experiências intensas, correspondem a necessidades primárias e têm a ver com o instinto de sobrevivência. Jesus diz que serão saciadas as pessoas que aspiram pela justiça e a buscam com um forte desejo, porque a justiça, mais cedo ou mais tarde, chega e nós podemos colaborar para o tornar possível (Nº 77). Esta justiça começa por se tornar realidade na vida de cada um, sendo justo nas próprias decisões. Depois manifesta-se na busca da justiça para os pobres e vulneráveis (Nº 79).
Buscar a justiça com fome e sede: isto é santidade.
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«Felizes os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia»
Dar e perdoar é tentar reproduzir na nossa vida um pequeno reflexo da perfeição de Deus, que dá e perdoa sem limites (Nº 81). Jesus não diz «felizes os que planejam vingança», mas aqueles que perdoam e o fazem «setenta vezes sete» (Nº 82).
Olhar e agir com misericórdia: isto é santidade.
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«Felizes os puros de coração, porque verão a Deus»
Puro de coração é quem tem um coração simples, sabe amar e não deixa entrar na sua vida algo que atente contra esse amor, o enfraqueça ou coloque em risco (Nº 83). “Com cuidado guarda teu coração , pois dele procede a vida. O Pai, que «vê no oculto», reconhece o que não é sincero e de igual modo também o Filho sabe o que há em cada ser humano (Nº 84)
É verdade que não há amor sem obras, mas esta bem-aventurança lembra-nos que o Senhor espera uma dedicação ao irmão que brote do coração, pois se não tiver amor, as obras de nada valem (Nº 85).
Manter o coração limpo de tudo o que mancha o amor: isto é santidade.
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«Felizes os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus»
Os pacíficos são fonte de paz, constroem paz e amizade social. Àqueles que cuidam de semear a paz por todo o lado, Jesus faz-lhes uma promessa maravilhosa: «serão chamados filhos de Deus». (Nº 88). Paz evangélica não exclui, antes, integra mesmo as pessoas diferentes, fustigados pela vida ou que cultivam outros interesses (Nº 89).
Semear a paz ao nosso redor: isto é santidade.
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«Felizes os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o Reino do Céu»
O próprio Jesus sublinha que este caminho vai contracorrente, transformando-nos em pessoas que questionam a sociedade com a sua vida, e incomodam (Nº 90). Nem tudo é favorável a quem vive o Evangelho As ambições de poder e os interesses mundanos jogam contra nós (Nº 91). A cruz, as fadigas e os sofrimentos que suportamos para viver o mandamento do amor e o caminho da justiça, são fontes de e santificação (Nº 92).
Refiro-me, porém, às perseguições inevitáveis, não às provocadas pelo nosso modo errado de tratar os outros. Também hoje as sofremos quer de forma cruenta, como tantos mártires contemporâneos, quer de maneira mais subtil, através de calúnias e falsidades (Nº 94).
Abraçar diariamente o caminho do Evangelho mesmo que nos acarrete problemas: isto é santidade.

Jornal "O São Paulo", edição 3197, 3 a 8 de maio de 2018.

O que é o “Eu Humano”?


Caio de Souza Cazarotto – Advogado. Mestre em Filosofia do Direito.

A defesa da vida humana, pressuposto necessário da bioética, parte do princípio de que essa vida é dotada de dignidade. Mas de onde provém essa dignidade? Seria ela meramente formalística, engendrada pela vontade ou pelo raciocínio humano, ou teria algum substrato ontológico, real? Para isso, é necessário investigar o que é propriamente o ser humano.
Nessa investigação, a proposta inicial é proceder à análise dos sentidos que normalmente se atribuem à palavra “eu”, em vista de encontrar seu substrato permanente e contínuo por baixo deles. Por fim, a observação das experiências de morte clínica irá fornecer uma das principais chaves científicas para a confirmação dessa forma substancial da identidade humana.
Há diversos modos de se utilizar o termo “eu”, tais como o “eu” presencial (o indivíduo aqui e agora); ou o “eu social” (o indivíduo em suas diversas relações). Neste artigo iremos considerar o “eu” em sentido biográfico ou autobiográfico”. Esse sentido transparece nas situações em que a pessoa conta sua história para si mesma ou para os outros. Baseia-se, portanto, na recordação ou memória de fatos e se constitui de formas narrativas construídas a partir do material de que o indivíduo dispõe. Esse significado do termo “eu” revela algo bem mais estável e contínuo; porém, o elemento de esquecimento e o fator de seleção que a mente faz em relação a dados que, naquele momento de sua vida, parecem mais relevantes, faz com que haja descontinuidades também no “eu biográfico”. Por exemplo: o fato de que as pessoas não se recordem do período em que estavam no ventre materno e dos seus primeiros anos de vida ou de fatos a que não atribuem importância não significa que elas não passaram por esses estágios ou acontecimentos.
Percebe-se, desse modo, que tudo aquilo a que se atribui a palavra “eu” tem referência a algo descontínuo, escandido, fragmentário e passível de modificação no decurso do tempo. Porém, todos sabem algo que é completamente evidente e que pode ser expresso nos seguintes termos: “Eu sempre fui eu mesmo e nunca deixei de ser por um único momento. ” A cada dia que acordamos, sabemos que somos nós mesmos e que essa identidade permanece por baixo de todas as mudanças do “eu presencial”, “social” ou “biográfico”.
A pergunta que cabe a partir dessa constatação é a seguinte: De onde surge esse senso de continuidade no que se refere à identidade do “eu”?
David Hume, filósofo empirista, afirmava que as únicas coisas que podemos conhecer com certeza são dadas pelas experiências fragmentárias. Notamos sentimentos, pensamentos, percepções, mas nunca um “eu” que esteja por baixo dessas experiências; logo, o que chamamos “eu” seria mero feixe de percepções transitórias, não uma substância real. Porém, as indagações que surgem naturalmente são: Quem pode dizer que tem essas percepções, sentimentos e pensamentos? Como um “feixe” pode adquirir um senso de continuidade de sua própria identidade? Não há resposta satisfatória para elas seguindo essa linha de raciocínio.
Há os que afirmam que ele nasce de uma imposição ou influência social ou cultural. Porém, uma imposição desse tipo pressuporia que os que compõem a sociedade e causam essa influência tivessem um “eu” real, enquanto os que a sofrem não o tivessem. Além disso, essa imposição teria que ser contínua, não podendo se interromper em momento algum, pois se isso ocorresse, a identidade se perderia automaticamente.
Em parcela da tradição psicanalítica, o “eu” é interpretado como uma construção realizada sobre o inconsciente. No entanto, a existência ontológica de um “eu” é a condição necessária para que qualquer pessoa construa algo. Essa construção, portanto, será sempre uma imagem do “eu”.
Pode-se perguntar se o corpo seria esse fator de continuidade e permanência unificada do “eu”. Sob determinado aspecto, a resposta é negativa, pois em um período de menos de dez anos, todas as células do corpo de um indivíduo se modificam – as antigas morrem para que nasçam novas.
A estrutura da corporalidade, no entanto, permanece a mesma. As mutações, dessa forma, ocorreriam a partir de um mesmo corpo material, o qual não se modifica em si mesmo.
Essa matéria da qual o indivíduo se constitui, no entanto, é dotado de uma forma, a forma que o torna humano, com os fatores distintivos dos outros entes, dentre os quais, a capacidade de se reconhecer enquanto individualidade permanente e contínua, mesmo no decurso de intensas mutações.
A visão materialista se assenta na hipótese de que a matéria da qual o homem é constituído encontra fundamento em si mesma e que é a evolução do cérebro humano que permite essa especificidade da identificação consigo mesmo.
O prisma metafísico, no entanto, não reconhece a matéria como fundamento de si, tendo em vista que nada do que existe de puramente material é causa sui e de que a forma dessa matéria, presente em cada individualidade, denota a presença de um Intelecto – ou Logos – que confere existência real ao ser constituído de matéria e forma. Esse Logos, por ser o fundamento dos seres existentes, contém, abrange e transcende a matéria, sendo portanto supramaterial – é o sentido de “metafísico”.
O filósofo Duns Scott, em aperfeiçoamento à filosofia aristotélico-tomista – que, nesse ponto, atribui à espécie humana a forma de “animal racional” – traz o termo latino Hecceidade (“qualidade de ser isso”) para expressar a forma substancial específica do indivíduo, que, aliada à matéria, confere existência atualizada àquela individualidade humana a qual, antes de sua geração, existia como mera possibilidade.
O acesso a essa Hecceidade ocorre por meio da experiência do senso de identidade do eu consigo mesmo, que só o ser humano é capaz de ter justamente em razão de sua participação no Intelecto, no Logos, que é o fundamento de sua existência. Isso é o que permite traduzir a forma substancial irredutível a partir da qual o indivíduo se constitui como ser existente. O ser humano, segundo essa perspectiva, ao mesmo tempo em que permanece sendo material também participa do fundamento que transcende a matéria e que permite ao homem reconhecer o “ser” das coisas e a sua própria existência como individualidade unitária e permanente. Isso é o que poderíamos chamar de “eu substancial”.
A cultura moderna, entretanto, formada em grande medida com base numa desconsideração prévia pela Metafísica e permeada pela ideia de que só é possível conhecer realmente aquilo que se possa provar pelo método experimental da ciência moderna, não pode aceitar a princípio essa concepção de “eu”, a menos que alguma evidência cientificamente concreta se imponha e conduza a esse entendimento. É o que ocorre por meio da investigação das chamadas experiências de morte clínica. Essas experiências são largamente relatadas na literatura científica por autores, dentre os quais renomados neurocientistas, que se interessam pelo assunto, tais como o professor Bruce Greyson.[1]
O caso Pam Reynolds, relatado no livro Ciência da Vida após a Morte, é um dos mais emblemáticos e esclarecedores a esse respeito. Ao aceitar uma operação cirúrgica de altíssimo risco para a retirada de um tumor no cérebro, Pam passou por um estágio de paralização das atividades cerebrais e de parada cardíaca durante a cirurgia, ou seja, nesse intervalo de tempo ela estava literalmente morta para todos os efeitos da ciência. O mais impressionante é que nesse período, conforme relatado pela própria paciente após a ressuscitação, Pam percebeu-se fora do seu corpo físico, observou o formato exato das ferramentas que foram usadas na cirurgia – algo que não poderia ter percebido antes, pois quando adentrou a sala de operações, já estava anestesiada – e ouviu o que as pessoas que compunham a equipe médica diziam durante a operação, o que depois verificou-se que correspondiam à realidade. Foi relatado que durante esse período, o horizonte de consciência fica mais alargado e o retorno ao corpo físico é experienciada como uma compressão ou limitação.
Outros casos semelhantes foram relatados na literatura médica, como o de Sarah Polgan, uma cega de nascença que, tendo passado por uma experiência de morte clínica, afirmou ter enxergado acontecimentos, como os rabiscos que um médico realizou num pequeno quadro negro e até mesmo o corte de cabelo que a enfermeira estava usando, os quais depois verificou-se que eram reais.
Em todas essas experiências, a individualidade, ou seja, a identificação do “eu” consigo mesmo, permanece e chega a ser até mesmo intensificada.
A visão materialista seguirá na direção de explicar tais fenômenos ainda pelo funcionamento do cérebro, alegando que não houve cessação completa da atividade encefálica e que as imagens foram produzidas por meio do funcionamento cerebral. No entanto, diante dessas evidências em que a pessoa enxerga acontecimentos reais mesmo sendo cega de nascença, além de casos relatados de acontecimentos presenciados fora da sala de cirurgia e descritos com detalhes, torna-se extremamente remota a hipótese da suficiência do cérebro como fonte explicativa. Além disso, há que se reconhecer que a ciência até hoje não provou o locus do sistema encefálico em que a consciência seria “produzida”.
Verifica-se a partir desses dados empíricos – que merecem uma atenção científica e acadêmica mais apurada – que a consciência do indivíduo e sua identidade se mantêm contínuas inclusive nas situações em que é reconhecida clinicamente sua morte. Não é possível dizer que essa seja uma prova científica cabal da hipótese metafísica da continuidade do ser humano para além da morte física, mas deve-se reconhecer que é uma excelente pista nesse sentido.
A hipótese que podemos extrair da fusão entre a análise filosófica empreendida e os relatos das experiências de morte clínica é que o “eu” humano não é algo transitório, fugaz e perecível como nos últimos séculos a filosofia ocidental se acostumou a nos fazer pensar, mas trata-se de uma individualidade constituída de modo perene, ou seja, de agora para sempre, e essa perenidade é ontológica. A verdadeira dignidade da vida humana reside nesse fato, ou seja, nossa existência real, aquilo que somos realmente, é algo que transcende a esfera do que podemos conceber por meio de nossa mente.
Cada pessoa sabe que não pode ter dado a si mesma essa existência, cuja perenidade é sua própria forma substancial em razão da participação em seu verdadeiro fundamento, o Logos que transcende a matéria, que lhe é desconhecido por experiência direta.
A consciência simultânea tanto dessa grandeza da qual somos constituídos quanto da ausência de fundamento em nós mesmos é o único substrato que pode embasar o efetivo reconhecimento da dignidade da vida humana.


[1] Vide artigo: GREYSON, Bruce. Near-death experiences: clinical implications: São Paulo, Revista Psiquiátrica Clínica, vol. 34, suppl. 1, 2007.