sexta-feira, 8 de julho de 2016

Dois grandes missionários no Sertão Nordestino

Catedral Sagrado Coração de Jesus, Petrolina, PE

Maria Luiza Marcílio é professora titular de História da USP.

A santidade e o ardor missionário são muito mais comuns entre nós do que normalmente se pensa. Estamos acostumados a devotar admiração a figuras conhecidas, como Padre Cícero, no Nordeste. Mas existem muitas figuras santas e dignas de admiração que levaram e mantiveram a fé naquela região.  Dom Antônio Maria Malan, bispo de Petrolina de 1924 a 1931, e Padre Alfredo Hassler, monge austríaco que chegou em Jacobina no ano de 1938, são dois bons exemplos.
Dom Malan, homem sonhador, empreendedor, lutador e visionário foi logo dotando a capital de sua diocese, Petrolina, de infraestrutura mínima, naquele povoado então primitivo e pequeno. Inaugurou, dois anos depois de sua chegada, em 1926, o Colégio Dom Bosco, com grande e completa instalação e dos primeiros da região sertaneja.  Construiu imponente Catedral em estilo neogótico, ensinando os sertanejos a lapidar as pedras brancas da região, trazendo da Europa apenas os vitrais coloridos e instalando o grande relógio que ganhou do Padre Cícero, em 1927. Essas duas primeiras obras atraíram populações de longe, para realização de casamentos, para participação de Missas e de Festas religiosas, para a educação dos filhos. Muitos decidiram mudar de vez para Petrolina, cidade que conhecia seu primeiro grande surto de desenvolvimento, ao lado do Rio São Francisco e da cidade de Juazeiro. Mas Dom Malan queria mais. Fez construir Hospital de Nossa Senhora da Piedade, o primeiro da região, com modelo das Santas Casas de Misericórdia. Fez ainda o Palácio do Bispo. Petrolina se ergueu como Município e não parou de crescer. Dom Malan morreu de repente em sua viagem ao Sul para participar da inauguração do Cristo Redentor. Não pôde ver a inauguração do Hospital que leva seu nome.
Outro “santo” do sertão foi o Padre Alfredo Bernardo Maria Hassler. Enviado em 1938 para Jacobina, no sertão da Bahia, quando da implantação do projeto religioso missionário da Ordem Cisterciense no Brasil (1930), dentro dos mesmos princípios invocados por Pio XI. Antes de sua chegada, a Igreja da Bahia havia criado condições propícias para a implantação da Ordem monástica em terras do sertão, com a criação da Diocese do Senhor do Bonfim e a nomeação do seu primeiro bispo Dom Hugo Bressane. Dom Bressane entregou a paróquia de Santo Antônio da Jacobina para a Ordem Cisterciense, e designou o Padre Alfredo seu pároco. Para bem atuar nesse sertão distante, esteve no Mosteiro de São Paulo, na época em que nele havia muitos monges alemães de Beuron, para aprender o português.
Vindo de uma Áustria inteiramente alfabetizada e com suas escolas paroquiais, Padre Alfredo sentiu o primeiro choque ao deparar com uma vasta paróquia sem escolas primárias elementares, sem professores e, portanto, com forte taxa de analfabetismo. Pôs-se imediatamente a dotar essa região de escolas paroquiais. Conseguiu apoio da elite local e onze meses após sua chegada fundava a Associação das Escolas Paroquiais de Jacobina (1939) e no dia de Nossa Senhora de Assunção, em 15 de agosto desse mesmo ano, fundava sua primeira Escola Paroquial, no povoado de Tabuia, distante 84km da cidade de Jacobina, gratuita para todas as crianças. Mandou vir de Salvador professoras formadas na Escola Normal, pagando salário condizente, e oferecendo local digno para alojamento. Para muitas delas as Escolas Paroquiais foram uma via de ascensão social, de prestígio, trabalhando fora das cidades onde moravam suas famílias. Rigoroso, o Padre Alfredo orientava as professoras na arte difícil de alfabetizar e de ensinar o catecismo às crianças. Até sua morte, o monge criou 48 escolas paroquiais gratuitas em toda a vasta extensão de sua paróquia. A todas as crianças fornecia uniformes, sapatos, livros e material escolar e, se possível, assistência médica, dentária e outros benefícios, fato desconhecido por lá, até então. Supervisionava cada escola que criou, atravessando constantemente essa dura e quente caatinga, em seu hábito de monge e no lombo de jegue.
Apesar de fora do claustro, o Padre Alfredo nunca deixou suas obrigações monásticas, com rigor e disciplina, dentro do que dispõe a Santa Regra de São Bento.
São dois grandes exemplos de fé e de ação da Igreja Católica que não podem deixar de ser conhecidos e valorizados.
Jornal "O São Paulo", edição 3111, 20 a 26 de julho de 2016.

quinta-feira, 7 de julho de 2016

Brexit e a União Europeia

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte

Antonio Carlos Alves dos Santos é professor titular de Economia na Faculdade da PUC-SP e conselheiro do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

A escolha dos eleitores britânicos pela saída da União Europeia é, sem duvida alguma, um duro golpe no projeto de integração do velho continente. No entanto, não é o primeiro, e dificilmente será o último, no longo e tortuoso caminho de superação de um passado cuja melhor síntese, negativa, é a sangrenta batalha de Somme, na Primeira Guerra Mundial, iniciada em 1 de julho de 1916. A memória da carnificina (cerca de 1,2 milhões de mortos e feridos numa disputa por 300 km2) ajuda a compreender a importância do projeto na história da Europa.
O processo de integração não é um projeto exclusivamente econômico. Ele é, acima de tudo, um projeto político em busca de fundamentos econômicos. Ele nasce da iniciativa de uma geração de notáveis políticos cristãos, na qual se destacam os católicos Adenauer e De Gasperi e deve à liderança do católico Delors a superação de vários problemas que impediam o progresso da integração econômica.
A incorporação do conceito de subsidiariedade no Tratado de Maastricht atesta a influência da Doutrina Social Católica na proposta de integração europeia. Subsidiariedade é o princípio segundo o qual as instâncias políticas mais amplas devem estar a serviço das subalternas (a união continental a serviço dos países, a federação a serviço dos estados, o governo a serviço sociedade organizada).
A vitória do Brexit no referendo é o desfecho de uma relação nada amigável entre o Reino Unido e os demais parceiros da União Europeia que remonta ao início do projeto de integração europeu. O Reino Unido sempre foi favorável à integração econômica, mas era reticente a qualquer forma de integração política, o que o levou a participar da criação da Associação Europeia de Livre Comércio, uma alternativa ao projeto de Mercado Comum. Além disso, por ter uma relação especial com os Estados Unidos, sempre manteve, segundo De Gaulle, uma relação de hostilidade em relação o projeto de integração europeu. Motivo, aliás, alegado por ele, para vetar a candidatura do Reino Unido ao bloco em 1961: foi aceito somente em 1973 e foi aprovado por 67% dos votantes no referendo de 1975. A opção, em 1992, por ficar fora da Zona do Euro é a melhor expressão desta relação de tapas e beijos entre britânicos e demais parceiros da União Europeia.
Em que pese o fato de ser uma relação difícil, ela não necessariamente teria que terminar no divórcio do Brexit. Erros foram cometidos de ambos os lados: a burocracia europeia deveria ter levado mais a sério o princípio da subsidiariedade e os políticos britânicos deveriam ter sido menos beligerantes com a União Europeia. A insistência em imputar à tecnocracia europeia a responsabilidade por problemas econômicos e sociais britânicos ajudou a criar um caldo de cultura anti- União Europeia em segmentos da sociedade britânica fortemente atingida pela crise econômica. Para eles, a livre circulação dos trabalhadores da União Europeia – um dos pilares de todo projeto de integração econômica – era responsável pelo aumento da criminalidade, baixa oferta de empregos, pela longa espera por tratamentos no Sistema Nacional de Saúde.
O desafio, agora, é conter as danosas consequências econômicas do Brexit. Os maiores prejudicados serão justamente os que optaram pela saída, já que a recessão no Reino Unido dificilmente poderá ser evitada. O impacto no resto da Europa será menor, mas implicará em crescimento abaixo do esperado e poderá ser sentido com mais força nos países mediterrâneos.
Jornal "O São Paulo", edição 3110, 13 a 19 de julho de 2016.

Comunidade de Leigos: uma urgência*

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Ana Lydia Sawaya é professora da UNIFESP, fez doutorado em Nutrição na Universidade de Cambridge. Foi pesquisadora visitante do MIT e é conselheira do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

Quando vemos, por exemplo, as vicissitudes políticas desse tempo e a falta impressionante de políticos que almejem o bem comum do povo, mas também a grande desigualdade e violência, o crescimento do crime organizado e do tráfico de drogas, percebemos que o Brasil precisa de uma evangelização profunda que chegue à conversão dos costumes. Por que a vida de tantos cristãos parece dividida entre o âmbito da religiosidade privada ou dominical e o âmbito do mundo? Há uma longa história e um ambiente cultural que levam a essa situação; mas o que nos interessa é saber como sair dessa cisão, pois nem Cristo, nem os apóstolos, nem tampouco as primeiras comunidades, ou os cristãos dos primeiros séculos, a viviam.
Uma das iniciativas que mais contribuem para vencer essa dicotomia é a formação de comunidades de leigos que se encontrem periodicamente para compartilhar uma educação permanente à fé. Essas reuniões já são realizadas em muitos lugares, não só nas paróquias, mas também nas casas das pessoas, em clubes, escolas e universidades, nos locais de trabalho, associações de bairro, etc. Nessas comunidades os leigos compartilham a vida, compreendem textos e obras que ajudam na educação à fé no cotidiano, no trabalho e na vida de família como: as cartas e encíclicas da Igreja, a vida dos santos, a história da Igreja, a Doutrina Social da Igreja, livros de espiritualidade. Nelas, muitos aprendem, por exemplo, a oração da liturgia das horas, a meditação das leituras da missa, a Lectio Divina ou a reza do terço. São comunidades de amigos que, num caminho crescente de maturidade de fé, podem chegar até a se aventurar na construção de obras sociais, de associações da sociedade civil, realizando juntos atividades de impacto social. E, porque não, a construção de empresas que vivam o trabalho de acordo com os costumes cristãos.
Mas nem sempre esses grupos se tornam verdadeiras comunidades de fé e vida, mas se perdem em aspectos que podem ter sua importância, mas são secundários. O que dá início a uma experiência comunitária, não é um discurso ou uma atividade comum, mas uma presença que se impõe e que provoca nossa vida, abrindo-a à promessa de um “a mais”. É preciso, portanto, o encontro na vida real com uma pessoa na qual a fé se expresse por um jeito de ser, antes que de fazer. Alguém que viva a serenidade, a paz que nasce da familiaridade com a oração. Que reconheça o Espírito presente e O siga. Essa pessoa será uma verdadeira autoridade na medida em que valorizar toda a riqueza que Deus desperta em qualquer pessoa que é verdadeira. Somente se as pessoas se reconhecerem interpeladas por esta humanidade provocadora, é que poderão viver a responsabilidade, ou seja, responder seriamente à vida. Mas se numa comunidade, ou numa sociedade, não se vive isto, a responsabilidade se reduz a obedecer passivamente às regras de uma organização, e se identifica a autoridade com quem tem um projeto de poder ou com quem se vive um apego sentimental.
A construção de comunidades de leigos que vivam uma verdadeira religiosidade no cotidiano, garantida por responsáveis que sejam autoridades reais e não idolátricas ou meramente burocráticas é urgente, para que a Igreja possa dar uma contribuição real para o incremento da liberdade e crescimento do povo brasileiro.
Jornal "O São Paulo", edição 3109, 6 a 12 de julho de 2016.


segunda-feira, 4 de julho de 2016

A pessoa entre o sentido comunitário e a autonomia individual

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Gustavo Adolfo P. D. Santos, PhD em Teoria Política (Catholic University of America), gerente de programas na Oficina Municipal.

Na democracia fundada no Estado de direito, a proteção da liberdade de consciência e a tolerância das diferenças são princípios centrais para o ordenamento das relações entre indivíduos e grupos. A luta contra os vários tipos de discriminação, que se traduzem numa negação do acesso de determinados indivíduos a certos direitos e condições que em princípio deveriam ser universalmente disponíveis, é uma expressão da defesa desses valores.
O desenvolvimento do indivíduo na liberdade e na autoafirmação, no entanto, não se dá num vácuo. Como ser essencialmente social, a pessoa existe e se realiza no contexto de relações, normas e tradições compartilhadas. O sociólogo americano Robert Nisbet (1913-1996) alertou sobre a progressiva ênfase posta sobre a relação entre o indivíduo portador de direitos e o Estado garantidor dos mesmos, que destitui os agrupamentos intermediários de suas funções e de sua autoridade social.
 A vida concreta não acontece, porém, num espaço abstrato de disputa por direitos individuais, mas em famílias, comunidades de crença, associações. A verdade que eu busco, encontro e vivo nunca é totalmente minha propriedade – eu a devo a uma cadeia de relações históricas e sociais. Nestas relações e comunidades, muitas vezes os participantes não ocupam todos a mesma posição, e se submetem a normas que, se limitam a gama de escolhas individuais possíveis, possibilitam a concretização de um sentido da vida que transcende a individualidade isolada. As relações familiares, ou as baseadas no compartilhamento da fé, são exemplos dessa realidade.
No Brasil, os jornais recentemente noticiaram polêmicas em torno da introdução de conteúdos relativos à chamada ideologia de gênero nos currículos escolares do ensino fundamental e médio. A visão tradicional da complementaridade entre homem e mulher e o direito da criança ao conhecimento e à criação por seus progenitores biológicos na família vai assumindo, nesse contexto, ares de limitação dos direitos individuais – não os das crianças, é claro, que não são consideradas nesses raciocínios tipicamente individualistas. Pode chegar o ponto em que afirmar o caráter privilegiado do casamento tradicional para a criação dos filhos será considerado um ato discriminatório e ilegal.
Por detrás dessas e outras incursões do Estado na vida social e comunitária das pessoas, pode-se encontrar uma concepção que vê cada pessoa como radicalmente livre para definir a própria realidade – e as práticas correspondentes – nas mais variadas dimensões. Essa autonomia radical não teria limites, a não ser a interferência na vida e no bem estar alheios (o famoso “princípio da injúria”, definido por John Stuart Mill).
No entanto, como lembrou S. João Paulo II, a democracia não pode abrir mão da referência a uma “reta concepção da pessoa humana”. Isso significa, entre outras coisas, respeitar o espaço e a autoridade das diversas comunidades éticas, sejam elas laicas ou religiosas, em que o ser humano se constrói.
Entre a defesa dos direitos e da liberdade individual e o respeito à autoridade e autonomia das comunidades éticas nas quais todo indivíduo se desenvolve, um caminho de equilíbrio e razoabilidade precisa ser encontrado, sob pena de ferir os próprios indivíduos cujos direitos o Estado moderno tem como função garantir.
Jornal "O São Paulo", edição 3108, 30 de junho a 5 de julho de 2016.