quarta-feira, 28 de junho de 2017

Armadilhas ideológicas numa realidade em crise


Continuamos a reflexão sobre quatro princípios esboçados pelo Papa Francisco na Evangelii Gaudium, nos detendo no terceiro: “a realidade é mais importante do que a ideia” (EG 231-233). Quantas vezes não percebemos no debate público, em aulas e palestras ou nas decisões governamentais que a realidade simplesmente não foi considerada, que uma ideia preconcebida, uma ideologia, se sobrepôs a ela! Entre os mais graves problemas do Brasil, estão os causados pelas vitórias das ideologias, de direita ou de esquerda, que não permitiram que se visse a realidade objetivamente, e por isso não se tomassem as decisões necessárias ao bem comum.
As ideologias são armadilhas enganosas, como que um “pecado original” da inteligência. Ninguém está livre delas. Os que mais condenam a ideologia dos outros, frequentemente querem apenas esconder a própria. A “antiideologia” não é um outro discurso, por mais inteligente e crítico que pareça. A alternativa à ideologia é sempre o amor à realidade, como Francisco tem demonstrado com seu exemplo.
Combater a ideologia não é condenar as ideias dos outros, ainda que mostrar o erro, esteja ele onde estiver, seja sempre necessário. Combater a ideologia é, em primeiro lugar, olhar para nós mesmos e, diante das dificuldades e desafios da vida e da conjuntura, perguntarmo-nos se agimos a partir de um olhar carregado de amor pela realidade e pelos que mais sofrem ou se agimos a partir de ideias preconcebidas, por mais sensatas que pareçam.
Vivemos uma crise que também é intelectual. Nos faltam pensadores e pensamentos para enfrentar os desafios atuais. Paradoxalmente, nesse contexto as ideologias tendem a ganhar uma sobrevida. Conhecemos seus erros e fracassos, mas a falta de alternativas nos leva a incorrer nos mesmos enganos e até reforçá-los. Os grandes pensadores não são aqueles que têm mais ideias, mas sim aqueles que conseguem olhar a realidade com mais atenção e amor – e desse modo encontrar respostas e caminhos onde outros só veem confusão e becos sem saída.
O apego à ideologia, contudo, não é uma questão intelectual. No fundo, trata-se de um problema moral: a realidade sempre nos tira de nossa “zona de conforto”, nos convida a um gesto concreto, a uma conversão tanto da inteligência quanto do coração. Com a ideologia, permanecemos fechados em nós mesmos, denunciamos populismos, neoliberalismos, individualismos, demagogias de outros, mas pouco fazemos para melhorar a nós mesmos.
Por tudo isso, o Papa nos lembra que a encarnação da Palavra tem um vínculo indissociável com a realidade (EG 233) e não pode pactuar com a ideologia.
Francisco Borba Ribeiro Neto
Jornal "O São Paulo", edição 3156, 21 a 27 de junho de 2017.

segunda-feira, 26 de junho de 2017

Viralização na internet: como levar um bom conteúdo mais longe

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Alexandre Ribeiro é doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP e editor de Aleteia.org.

O site UpWorthy foi um dos primeiros a discutir abertamente o conceito de viralização de conteúdos nas redes sociais. Já em 2012, o website publicou um documento que falava de uma suposta “ciência da viralização”.
O UpWorthy afirma que a viralização deve ser parte da dinâmica de valorização de conteúdos de qualidade na Internet. Não se trata, portanto, de conquistar audiência a qualquer custo. Mas sim de integrar a ideia de viralização ao processo de elaboração de conteúdos de mídia digital.
Viralizar um conteúdo não se resume à sorte de ver uma publicação ultrapassar os padrões médios de leitura e compartilhamento, alcançando milhões de leitores. A viralização seria, na verdade, uma propriedade intrínseca dos conteúdos formatados para as mídias digitais. Ela deve permear todo o processo comunicativo. Desde a otimização do site, que se volta para a sociabilidade virtual, à seleção do conteúdo, estilo e “packaging” (“embalagem”) de distribuição.
O UpWorthy afirma que uma viralização depende de três elementos essenciais: conteúdo, enquadramento e compartilhamento.
Conteúdo - O primeiro passo é selecionar ou criar um bom conteúdo. Um bom conteúdo significa que é épico e tem elementos como: herói, vilão, emoção, significado valoroso e inspirador, timing. É ainda um conteúdo bem produzido, que traz informação útil e às vezes surpreendente; um conteúdo de valor, que toque a audiência de forma humana.
Enquadramento - O conteúdo deve ser formatado e enquadrado perfeitamente para o Facebook ou uma outra grande rede social. O título deve despertar curiosidade. O UpWorthy diz que os seus redatores chegam a escrever 25 títulos antes de definir qual irá no artigo. O título deve seguir algumas diretrizes, como: não dizer tudo; não dizer nada; não ser incômodo (favorecer que o usuário forme sua própria opinião); ser inteligente, mas acessível; e, acima de tudo, despertar a curiosidade.
Compartilhamento - Os usuários clicam e compartilham conteúdos que despertam neles uma destas duas reações: indignação ou felicidade. Por outro lado, deve-se evitar provocar tristeza ou relaxamento.
O método do UpWorthy revela a ênfase em procedimentos circunscritos ao âmbito de predeterminação da viralização. Condições iniciais favoráveis, como as que o website exercita colocar em suas publicações, aumentariam a probabilidade de um post viralizar. O UpWorthy foi bem sucedido em propor um diagrama de certas condições iniciais que aumentam a probabilidade de seus conteúdos viralizarem.
Mas isso não implica necessariamente a efetivação da viralização. Afinal, esta depende de muitas outras variáveis, sendo algumas delas impossíveis de medir, como, por exemplo, as escalas reais de distribuição de conteúdo pelo algoritmo do Facebook e de outras redes sociais em determinado momento, ou ainda a possibilidade de um influencer (uma celebridade, por exemplo) compartilhar o conteúdo, fortalecendo sua repercussão.
Além disso, o caráter preditivo do elemento viral deve-se inserir numa concepção científica de sociabilidade virtual. A predição científica não é uma profecia, mas sim o trabalho de elaborar teorias que tenham fundamento em informações fidedignas relacionadas ao estado de coisas atual ou passado. Isso exige o esforço constante de se colocar à prova hipóteses e se extrair tendências gerais que possam levar um bom conteúdo a uma ampla audiência.
Jornal "O São Paulo", edição 3156, 21 a 27 de junho de 2017.

quarta-feira, 21 de junho de 2017

Cracolândias da vida, entre o tempo e o espaço


Na Evangelii Gaudium, apresentando quatro princípios da doutrina social da Igreja, o Papa Francisco adverte: “o tempo é superior ao espaço” (EG 222-225).  O princípio se refere, na Exortação, à necessidade de se pensar o tempo necessário para a maturação dos processos sociais em lugar de se fixar na luta por espaços de poder.
Numa sociedade em crise política, como a nossa atual, compreender que no tempo acontecem os processos de definirão um novo Brasil, ainda que os poderosos se degladiem por espaços de poder, é animador e até consolador. Não podemos pensar adequadamente o momento atual, os desafios da política e as reformas necessárias sem o folego desse horizonte mais amplo.
Mas o tema recupera toda a sua riqueza quando o aplicamos ao desafio representado pela Cracolândia, o espaço ocupado pelos moradores de rua viciados em drogas na cidade de São Paulo.
As operações policiais realizadas na região nos últimos anos nos mostraram duas coisas. Em primeiro lugar, que a Cracolândia não é um território urbano dentro da cidade, é um espaço intangível, que inclui uma área urbana degradada, uma população sem rumos na vida, uma atividade criminosa que se aproveitou de um contexto favorável e um Estado omisso que deixou um problema social crescer até chegar perto do incontrolável. Em segundo lugar, que esse espaço não poderá ser controlado pelo simples uso da força, pelo exercício do poder. Só o tempo poderá mudar o espaço e eliminar a Cracolândia criada pela pobreza, a falta de perspectiva e a crise de sentido que afeta aquela população – e é bom salientar a crise de sentido e a falta de perspectiva, pois esses não são problemas exclusivos da classe média e dos ricos, pois atingem ainda com mais força e mais razão as populações empobrecidas e excluídas em nossa sociedade.
O tempo remete a outra palavra cara a Francisco, que aparece tanto na Evangelii gaudium quanto na Laudato si’: cuidar. A Cracolância é o resultado de uma sociedade que não soube cuidar dos seus quando isso era possível e agora enfrenta as consequências de seu descaso. Por isso, só o cuidado – ao longo do tempo – poderá resolver o problema desse espaço social.
A intervenção dos órgãos públicos na Cracolândia nem sempre será adequada, independentemente da boa ou da má vontade dos gestores. Mas nunca será satisfatória se for pensada como espaço de poder e não como processo de cuidar que acontece no tempo.
Gerar processos que construam um povo (EG 224): esse é o caminho para superar realidades aparentemente tão diferentes quanto a Cracolândia ou a crise econômica brasileira.
Francisco Borba Ribeiro Neto
Jornal "O São Paulo", edição 3155, 14 a 20 de junho de 2017.

segunda-feira, 19 de junho de 2017

O protagonismo da pessoa: ensinamento da Doutrina Social da Igreja

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Ana Lydia Sawaya é professora titular de Fisiologia da UNIFESP - campus São Paulo e é conselheira do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

Há séculos a filosofia política estabeleceu uma confiança maior no Estado do que na pessoa. Nas vertentes autoritárias, isso justificou muitas das modernas ditaduras. Nas vertentes liberais, levou a uma confiança desmedida nas leis, como se a letra escrita fosse suficiente para criar a justiça na prática. É mais fácil pensar no ser humano como mau, egoísta ou incapaz de bem; e acreditar que toda vez que ele tiver oportunidade desfrutará, usurpará e tornar-se-á lobo do seu irmão. É muito difícil, hoje em dia, pensar que possa não ser assim. Essa visão negativa do ser humano está na origem da confiança no Estado (por vezes, absoluta!) como única garantia do bem e da justiça.
Mas esta não é uma visão cristã. A Doutrina Social da Igreja parte de outra visão antropológica e não abandona a confiança no ser humano como única origem real de mudança. Os cristãos sabem que a solução verdadeira para o bem comum é a religiosidade autentica e o amor ao próximo que brotam do coração do ser humano e não, antes de tudo, do controle do Estado. É verdade que o mal nasce no coração do ser humano, mas o bem também nasce nesse mesmo coração. Por isso, a Doutrina Social da Igreja tem como ponto de partida a centralidade, unidade e liberdade da pessoa. Diz que devemos partir da pessoa e de suas livres agregações antes que do Estado. É por isso que valoriza, antes de tudo, a família e os corpos sociais intermediários (as associações civis).
É absolutamente urgente e fundamental que nós católicos conheçamos e estudemos a Doutrina Social da Igreja. Esta é a nossa melhor contribuição para o país: que os católicos brasileiros ofereçam a todos a sabedoria de sua tradição. Se não o fizermos, quem o fará? Os brasileiros podem estar assim fadados a conhecer (e acreditar) somente em outras visões antropológicas, tão amplamente difundidas nas escolas brasileiras.
O Papa Francisco disse recentemente que o católico precisa se envolver com política e reafirmou que a política é a forma mais alta de caridade. O exercício da política vivida de forma cristã tem como ação o cuidar de todos e não só de si mesmo. Todos sabemos que nossos políticos atuais estão no espectro oposto ao que a tradição cristã entende como real ação política. Mas, e isso também é o fundamento da fé cristã, não podemos nem devemos nos resignar. Não há nada mais distante de Cristo do que a posição fatalista, negligente ou niilista.
Por fim, a Doutrina Social da Igreja diz que o caminho para o bem comum é reforçar a sociedade e não agigantar o Estado (como infelizmente ocorreu no Brasil).
“A comunidade política e a sociedade civil, embora reciprocamente coligadas e interdependentes, não são iguais na hierarquia dos fins. A comunidade política está essencialmente a serviço da sociedade civil e, em última análise, das pessoas e dos grupos que a compõem. Portanto, a sociedade civil não pode ser considerada um apêndice ou uma variável da comunidade política: pelo contrário, ela tem preeminência” ( Compêndio da Doutrina Social da Igreja, CDSI  418).
E ainda, “o Estado tem o dever de secundar a atividade das empresas, criando condições que garantam ocasiões de trabalho, estimulando-a onde for insuficiente e apoiando-a nos momentos de crise” (CDSI 351). (...) “uma intervenção direta (do Estado) excessivamente açambarcadora acaba por desresponsabilizar os cidadãos e produz um crescimento excessivo de aparatos públicos guiados mais por lógicas burocráticas do que pela preocupação de satisfazer as necessidades das pessoas” (CDSI 354).
Está é a mudança que o Brasil precisa urgentemente.
Jornal "O São Paulo", edição 3155, 14 a 20 de junho de 2017.

quarta-feira, 14 de junho de 2017

O todo, a parte e as reformas


O Papa Francisco oferece à doutrina social da Igreja, na Evangelii Gaudium (EG 221ss), quatro “princípios” inovadores (que alguns preferiram chamar de “postulados”): (1) “o tempo é superior ao espaço”; (2) “a unidade prevalece sobre o conflito”; (3) “a realidade é mais importante do que a ideia”; (4) “o todo é superior à parte”.
Esse quarto princípio (“o todo é superior à parte”, EG 234-237) nos remete à necessidade de “articular o todo com a parte”. Para quem está preocupado com as questões gerais que afligem a sociedade, significa retomar a visão do pequeno, do local, do caso específico. Para quem está preocupado com o seu problema particular, significa olhar para o conjunto, se desvencilhar de um olhar talvez excessivamente autocentrado para pensar no bem de todos. Será que o governo, os partidos de oposição, os grupos pró e contra as reformas que estão sendo propostas, como a trabalhista e a da Previdência, estão olhando realmente o todo da sociedade brasileira e todos os fatores em jogo nas reformas ou estão preocupados apenas com seus interesses partidários ou corporativos?
Esse princípio também nos remete à ideia do bem comum e, como tal, não pode ser corretamente entendido, à luz da doutrina social da Igreja, desvinculado da percepção de que são os mais pobres, os mais fragilizados na sociedade que nos mostram o quanto o bem comum está sendo contemplado (EG 197-208). Até que ponto aqueles que estão justamente preocupados com o futuro do País, com as bases econômicas necessárias para a sustentação do bem comum, têm considerado os casos específicos e a situação dos mais fragilizados na estrutura social? E até que ponto os que defendem os direitos dos mais pobres estão considerando que existem problemas globais, contextos mais amplos que devem ser enfrentados – ainda que com sacrifícios – para garantir os próprios direitos desses mais pobres?
Respostas esquemáticas com certeza não atenderão a esse princípio. O todo é mais amplo e precisa ser considerado para se garantir o bem comum. Na prática: reformas sempre são necessárias tendo em vista a garantia do bem comum. Mas elas têm que ser pensadas considerando tanto a situação dos mais pobres quanto a globalidade do contexto sociopolítico e econômico.
Esse quarto princípio nos convida a superar nossos partidarismos e corporativismos, a olhar para a situação atual e futura dos mais fragilizados e pensar os problemas numa perspectiva global, que não exclui nem os aspectos econômicos nem os sociais. Um grande desafio, mas também a possibilidade de pensar as reformas necessárias para a País de um modo muito mais sábio, humano e solidário.
Francisco Borba Ribeiro Neto
Jornal "O São Paulo", edição 3154, 7 a 13 de junho de 2017.

segunda-feira, 12 de junho de 2017

Um apelo

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Klaus Brüschke, é membro do movimento dos Focolares, ex-publisher da Editora Cidade Nova, articulista da revista Cidade Nova.

Reli recentemente Memorie d’un cristiano ingênuo (“Memórias de um cristão ingênuo”), autobiografia do jornalista, escritor e político italiano Igino Giordani (1894-1980), cujo processo de beatificação está em andamento na Santa Sé. Nascido numa família profundamente religiosa, Giordani logo percebeu a distância entre as práticas políticas e sociais de seu entorno e o ensinamento do Evangelho. Obrigado a combater na Primeira Guerra Mundial, “não entendia como fosse possível gerar para a vida um jovem, obrigado a se desgastar no estudo e nos sacrifícios, a fim de maturá-lo para uma ação em que deveria matar pessoas desconhecidas e inocentes e, por sua vez, ser morto por gente a quem não havia feito nenhum mal”. Ferido, saiu do campo de batalha para entrar na batalha da educação, do jornalismo e da política. Tornou-se um apaixonado estudioso dos Padres da Igreja. Inspirado por seu ensinamento, enfrentou uma corrente muito forte de setores católicos de então contrários à república e à democracia, defendendo até uma aliança com o fascismo. Crítico do regime, teve de ser “abrigado” por mons. Montini, futuro Paulo VI, na Biblioteca Vaticana, onde atuou como bibliotecário. Com o fim da Segunda Guerra, voltou à atividade política. Estava convencido de que “era obrigação dos leigos sobretudo traduzir em leis, instituições e costumes, no campo político, cultural e econômico, os princípios do Evangelho”. Embora tivesse restrições à criação de um partido católico, pelo risco de o catolicismo (“universalismo”) ser reduzido a uma parte, um partido. Todavia, convencido por Montini, ingressou no Partido Democrata Cristão, pelo qual se candidatou a deputado constituinte da Itália pós-guerra, sendo reeleito para a legislatura seguinte. Foi um dos autores da lei de objeção de consciência ao serviço militar. Suas posições pacifistas – em tempos de escalada armamentista da Guerra Fria – e a capacidade de diálogo com todas as correntes políticas, inclusive os comunistas, nem sempre encontrou compreensão na sociedade. De fato, não foi mais reeleito.
Giordani sofria pela situação do leigo de então, o “proletariado da Igreja”, a quem só cabia “ficar em pé, sentado ou de joelhos…” Anos depois, o Concílio Vaticano II afirmaria a importância do laicato e de seu protagonismo. De modo especial, não encontrava um caminho adequado de santidade, a qual lhe parecia reservada somente aos que viviam nos mosteiros e conventos. Em 1948, conheceu Chiara Lubich, a fundadora do Movimento dos Focolares. Em sua espiritualidade, encontrou o “ingresso à santidade” que tanto procurava, tornando-se um estreito colaborador de Chiara, que o considerava um cofundador do Movimento. Foi um artífice da abertura dos Focolares às questões da humanidade, com desdobramentos nos campos da política, da economia, da educação etc.
Giordani também deu uma notável contribuição ao do ecumenismo. De “martelo dos hereges” tornou-se o “mantello (manto) de irmãos”, admitia.
Nos difíceis momentos pelos quais o Brasil hoje passa, pessoas como Igino Giordani são de inspiração para a qualidade da presença e da atuação dos cristãos leigos no campo sociopolítico. Em última análise, a profunda crise pela qual passamos, multidimensional, é um apelo a que assumamos com maior responsabilidade o compromisso de traduzir em novas práticas, leis e instituições o tesouro de ensinamento do Evangelho, aprofundado pelos Padres da Igreja e pelo Ensino Social Cristão. Talvez seja essa a maior dádiva que possamos oferecer à nossa sociedade hoje, que, mesmo sem o saber, por ela espera ansiosamente.
Jornal "O São Paulo", edição 3154, 7 a 13 de junho de 2017.

segunda-feira, 5 de junho de 2017

Convicções, encontros e tortinhas de morango

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Dalton Luiz de Paula Ramos é professor titular de Bioética da Faculdade de Odontologia da USP. 

Uma das minhas paixões é saborear a tortinha de morango de certa doceira da cidade. Meus alunos sabem dessa paixão porque em minhas aulas, onde trato de grandes temas éticos, nunca deixo de proclamar minhas convicções pessoais; as gastronômicas, mas, também, as religiosas. Muitas vezes sou questionado sobre essas tomadas de posições em sala de aula, se eu não deveria ser “imparcial”. Aí, contra argumentando, relembro da tal tortinha de morango porque é algo que encontrei na vida e, tendo-a experimentado e provado seu sabor, não posso deixar de anunciar a todos os meus amigos o acontecimento de ter conhecido esse doce.
 E quanto maior a amizade – portanto, quanto mais eu gosto da pessoa e estou interessado em seu bem – tanto mais me sinto propelido a lhe anunciar a existência dessa tortinha maravilhosa: "Você tem que ir lá experimentar! "..."É muito bom!“... Não é assim que a gente faz frente ao amigo querido?
Mas pode ser que ele, mesmo desejoso, tenha um impedimento. Se for financeiro, eu pago... Se for, por exemplo, porque é diabético e não pode comer doce, vou lamentar e sofrer por e com ele. Mas se ele rejeitar a minha proposta sem sequer manifestar a curiosidade de experimentar, ficarei muito triste e preocupado querendo saber o que acontece com esse amigo.
Entre os que provam a tortinha, alguns gostam e com estes terei algo mais em comum para compartilhar. Mas pode ser que alguns provem e não gostem da tortinha ou mesmo digam "existe algo melhor", como aconteceu com uma aluna que, quando eu falava dessa história, disse: "O senhor fala bem dessa tortinha porque não provou o doce de maçã". Fiquei provocado, isto é “pró + vocado”, instigado a reverificar minha vocação, e fui provar o tal doce. Bonzinho... mas continuo preferindo a tortinha de morango. Esta divergência não é ruim. Agora, com essa aluna posso manter um delicioso diálogo sobre doces. Oxalá este debate nos ajude a amadurecer as nossas próprias convicções ou descobrirmos juntos algo ainda melhor! Agindo assim compartilhamos o que se chama de "ímpeto de felicidade" que corresponde a uma das exigências fundamentais do coração humano. 
Compartilho essa experiência para mostrar como vivo as minhas convicções religiosas, também quando trato da Ética e da Bioética. Sem isso, seria como um professor de gastronomia que, falando sobre doces e salgados, não contasse suas preferências. Seria trair os amigos, privá-los do melhor.
Nada mais significativo na minha vida do que o encontro com Cristo que se apresenta como o ponto de referência para tudo, que me provoca a retomar a cada novo dia o que significa para minha vida o Seu Nascimento, Vida, Morte e Ressurreição. Claro que esse Anúncio, o compartilhar desse “conhecimento”, deve respeitar minhas responsabilidades frente à necessária objetividade do meu trabalho, que é ensinar o conteúdo próprio da disciplina, e respeitar a pessoa do outro, aluno ou amigo, o que implica em não lhe impor goela abaixo, contra a sua vontade, mesmo uma porçãozinha da “tortinha de morango”; isso seria "proselitismo” do tipo fundamentalista. Mas, ao mesmo tempo em que não posso impor, sou impelido a comunicar àqueles que o Senhor me confiou o significado para minha vida de um Acontecimento, uma evidência fundamental. 
Quanto mais gosto de uma pessoa e reconheço seu valor e sua dignidade, isto é, reconheço que é filho ou filha de Deus e que sua dignidade independe das escolhas que faz –certas ou erradas – mais desejo comunicar aquilo que de melhor encontrei. Se não é assim é como aceitar que um irmão se contente com a "tortinha de morango" mequetrefe vendida num lugar qualquer.
Jornal "O São Paulo", edição 3153, 31 de maio a 6 de junho de 2017.