segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Cinco observações sobre o artigo “Francisco é João Paulo 2º com sinais trocados”

Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

Neste dia 25 de dezembro, a Folha de São Paulo publicou uma entrevista que dei ao jornalista Reinaldo José Lopes (ver aqui). O trabalho que ele fez, transcrevendo nossa conversa, foi muito bom, mas uma entrevista em jornal sempre é sintética e pressupõe uma série de informações que nem sempre são conhecidas do leitor. Assim, recebi vários comentários e perguntas, que me levaram a escrever algumas observações complementares sobre o texto. Como o texto ficou muito longo, resolvi publicá-lo diretamente nesse blog.
1)      Em primeiro lugar, os “sinais trocados” que o jornalista colocou no título não significam que um é bom e outro é mal, como alguns parecem ter pensado. Apenas indicam que, por seus contextos de origem (Polônia e Argentina) e pelos desafios eclesiais que precisam enfrentar, são dois grandes papas que vivem realidades opostas.
2)      A concepção mais justa das polêmicas entre progressistas e conservadores na Igreja Católica é aquela que diz “todo cristão tem o dever de ser conservador com relação àqueles valores que tronam a vida mais humana e progressista com relação àquelas transformações que fazem a sociedade mais justa”. Contudo, o mundo acostumou-se com essa classificação que divide a Igreja (em grande parte por culpa de nós mesmos, os católicos). Tentar negar ou ocultar essa divisão não ajuda a ninguém. O problema é todos n´´os entendermos que ela não pode ser um obstáculo à comunhão ou à conversão. Por isso insisti em dizer que o problema são os “recalcitrantes”, isso é, aqueles que insistem teimosamente em não aceitar que o Espírito pode se manifestar também entre aqueles que pensam diversamente. Pessoas assim dificultaram uma correta compreensão e uma justa conversão eclesial à mensagem de São João Paulo II e agora um outro grupo, com posicionamentos opostos, mas com a mesma teimosia, farão o mesmo em relação ao Papa Francisco.
3)      Na concepção do parágrafo anterior, deve-se entender a afirmação que o Papa Francisco é um “conservador que acolhe os progressistas”. Seus valores são os da tradição (nesse sentido é um conservador), mas está sintonizado com as mudanças da sociedade naquilo que têm de justo (acolhe, nesse sentido, as tendências progressistas). Essa posição de Francisco fica explicita, por exemplo, num artigo publicado no site do Instituto Humanistas da Unisinos (ver aqui) ou numa análise do que seria o seu pontificado tendo por pano de fundo a ação de Bergoglio na Argentina (ver aqui). Pensar que um papa “pensa como eu” ou “pensa errado porque não pensa como eu”, sem parar para entender sua mensagem é sempre ruim. Francisco precisa ser estudado e as sutilezas e variações de seu pensamento devem ser entendidas tanto por uma questão de honestidade intelectual quanto de conversão espiritual (e o mesmo vale para São João Paulo II ou Bento XVI).
4)      Quem estudar os pensadores que embasaram a posição de Bergoglio e os pensadores da Teologia da Libertação do final do século XX verá que existem diferenças significativas. Por isso, alguns chamavam aquela corrente teológica característica do Cone Sul de “Teologia do Povo”. As duas correntes têm muito em comum, mas não são equivalentes. Provavelmente irão se aproximar cada vez mais com o aumento da influência de Francisco, com a crise do pensamento marxista (, que teve sem dúvida influência na TL ) e o próprio desenvolvimento das escolas teológicas do continente. AS duas correntes concordam na questão da importância do pobre, como paradigma da postura do cristão e como alvo prioritário da ação social da Igreja, mas a Teologia do Povo vê esse pobre numa perspectiva mais cultural que socioeconômica. O artigo melhor para entender a Teologia do Povo é o do jesuíta Juan Carlos Scannone, professor de Bergoglio (ver aqui em italiano). Um exemplo da importância da cultura no pensamento do Papa Francisco está no capítulo III da Laudato si’: após denunciar o uso do poder econômico e da ciência contra a humanidade e a natureza, o Papa faz uma análise tipicamente cultural sobre o problema do poder, baseado em Romano Guardini (discuti essa questão num artigo para a REB disponível aqui).
5)      Alguns estranharam também a valorização de São João Paulo II, que segundo eles não pode ser colocado em paralelo com o Papa Francisco. O problema não é de preferências, mas de reconhecimento da importância de cada um no processo histórico. Sem dúvida não é possível pensar a Igreja sem a “reforma” feita por São João Paulo II, provavelmente o mesmo acontecerá com o Papa Francisco. Mas aqui duas observações são fundamentais. Em primeiro lugar, o resgate do pensamento de João Paulo II é feito pelo próprio Papa Francisco. Os capítulos IV (O amor no matrimônio) e V (O amor que se torna fecundo) da Amoris laetitia se utilizam largamente das catequeses de João Paulo II, retomando e valorizando as bases de sua teoria moral. E aqui entra o segundo problema: o ensinamento moral de Sâo João Paulo II é quase desconhecido entre nós. No Brasil, citamos suas conclusões e ou suas indicações normativas, sem estudar seu amplo e complexo embasamento antropológico. Perde-se assim a chance de saber que a grande contribuição de João Paulo II à teologia moral foi seu esforço para mostrar a pertinência dos ensinamentos da Igreja em relação à experiência humana (uma postura que não tinha, portanto, nada de dogmática ou impositiva). Quem quiser saber mais, leia seu livro Teologia do corpo (Campinas: Ecclesiae, 2014).

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

É Natal se acontece em você

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Ana Lydia Sawaya é professora da UNIFESP, fez doutorado em Nutrição na Universidade de Cambridge. Foi pesquisadora visitante do MIT e é conselheira do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

Toda festa litúrgica é um “memorial”, um evento a ser vivido e não apenas celebrado. Na tradição da Igreja, viver a memória do Natal significa muito mais do que se lembrar de um evento que aconteceu no passado e que nós recordamos porque é importante não esquecer. Quer dizer reviver um “evento divino” em nosso presente. Um acontecimento feito por Deus que entra na história da humanidade e, portanto, é um fato divino e eterno, que não se restringe a um tempo (dois mil anos atrás) ou um lugar (Belém). Um prefácio da liturgia de natal diz: “por ele, realiza-se hoje o maravilhoso encontro que nos dá a vida nova em plenitude. No momento em que vosso filho assume nossa fraqueza, a natureza humana recebe uma incomparável dignidade – ao tornar-se ele um de nós, nós nos tornamos eternos”. Ou como diz São Leão Magno: “despojemo-nos, portanto, do velho homem com seus atos; e tendo sido admitidos a participar do nascimento de Cristo, renunciemos às obras da carne”. Nos lembra ainda uma antífona da oitava de natal: “admirável intercambio! O criador da humanidade, assumindo corpo e alma, quis nascer de uma virgem. Feito homem, nos doou sua divindade”!
Assim, nós todos, cada um de nós, é chamado a nascer de novo neste tempo. E numa espiral ascendente aprofundar a consciência da nossa dignidade divina. Precisamos voltar a ser crianças com o menino Jesus.  O Natal, não é de fato, antes de tudo a festa das crianças? Quem é tão velho que não pode voltar a ser criança? Jesus diz, olha, convém-lhe voltar a ser criança, pois é assim que você entrará no céu.
A sociedade de consumo se aproveitou disso e foi aos poucos transformando o natal em uma festa de presentes a serem comprados, primeiro para as crianças e depois para todos os adultos. O consumismo e a obrigatoriedade de comprar presentes tornou a festa de natal, uma festa para poucos escolhidos... Mas convém-nos não ser passivos diante dessa cultura que definiu o ser humano como aquele que “é objeto de consumo”; pois ela nos reduz tremendamente e nos faz perder a consciência da nossa dignidade. O que podemos fazer então para viver o natal de modo cristão? Que tal fazermos os presentes para os outros em vez de comprar? Uma torta, brigadeiros ou bolo? Um crochê, tricô ou pintura? Um vaso? E para quem não tem tempo: gravar umas músicas, pegar uma bela apresentação na internet e presentear? Quando era pequena nós construíamos a arvore de natal com galhos e pintávamos as bolas que fazíamos com pedaços de jornal e cola. Por que também não perguntar no trabalho ou no prédio se tem alguém que vai passar o natal sozinho, sem família, ou que o marido ou a esposa o deixaram, ou quem perdeu alguém este ano e fazer uma festa alargada e comunitária? Para muitas pessoas o natal é o período mais triste do ano, e quando o número de suicídios mais aumenta.
Uma linda mensagem de Natal, que teve ampla divulgação nas redes sociais, nos lembra que essa festa deve acontecer em nós: “Natal é você quando se dispõe, todos os dias, a renascer e deixar que Deus penetre em sua alma. O pinheiro de Natal é você, quando com sua força, resiste aos ventos e dificuldades da vida. (...) Você é o sino de Natal, quando chama, congrega, reúne. A luz de Natal é você quando com uma vida de bondade, paciência, alegria, generosidade consegue ser luz a iluminar o caminho dos outros. Você é o anjo de Natal quando consegue entoar e cantar sua mensagem de paz, justiça e de amor. (...) O presente de Natal é você, quando consegue comportar-se como verdadeiro amigo e irmão de qualquer ser humano. (...) Você será os votos de Feliz Natal quando perdoar, restabelecendo de novo, a paz, mesmo a custo de seu próprio sacrifício. (...) Você é a noite de Natal quando consciente, humilde, longe dos ruídos e de grandes celebrações, em silêncio recebe o Salvador do mundo”.
Jornal "O São Paulo", edição 3132, 20 de dezembro de 2016 a 10 de janeiro de 2017.

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Pátio da Cruz - A judicialização da Política

Esse ano que está findando foi marcado pelos embates entre lideranças políticas nacionais e a justiça brasileira. Qual o significado dessa "judicialização da política"? Para debater esse tema, o Pátio da Cruz trouxe o jornalistas Marcelo Godoy, do jornal O Estado de São Paulo, e o Prof. Cláudio Langroiva Pereira, da Faculdade de Direito da PUC-SP. Ambos discutem a questão do ponto de vista das relações entre mídia, justiça e política no contexto atual e da capacidade da legislação brasileira em prever e punir os crimes políticos que vieram a tona nesse ano.

Neste Advento, leia também: Dezembro, entre Deus e o diabo

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Pátio da Cruz - O amor cristão e a solidariedade


O Natal é a festa da solidariedade de Deus que chega ao ser humano, num gesto de amor e ternura. Neste Advento, o programa Pátio da Cruz retoma o testemunho de vida e a visão sobre a sociedade do Prof. Antonio Carlos Malheiros, pró-reitor de Cultura e Relações Comunitárias da PUC-SP.

Neste Advento, leia também: Dezembro, entre Deus e o diabo

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Pátio da Cruz - Deus e a ciência


Qual é a postura certa na relação entre a ciência e a fé? Como as novas descobertas da ciência afetam a fé religiosa no mundo de hoje? Qual o impacto do sofrimento e da dor na experiência humana do cientista e na sua possibilidade de encontrar a Deus? Como a teoria da evolução dialoga com a doutrina católica? Afinal, como, um cientista pode acreditar em Deus nos tempos atuais? Para discutir essas questões, Padre Vandro Pisaneschi, coordenador do Vicariato Episcopal para a Educação e a Universidade, entrevista o Prof. Eduardo Cruz, da PUC-SP, especialista em Teologia da Ciência, e o Prof. Francisco Borba, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Dezembro, entre Deus e o diabo

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte

Francisco Borba Ribeiro Neto, 
coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

Nenhum outro mês é como dezembro. A iminência das festas de final de ano, a chegada das férias escolares, as comemorações “da firma”, os balanços anuais e os planos para um novo ano... Num frenesi de emoções contrastantes, corremos tanto para preparar nossos momentos felizes que nos arriscamos a esquecer de porque estes momentos deveriam ser felizes. Nos afanamos tanto em preparar nossas festas que não saboreamos sua razão de ser.
Esse é o mês de pinheiros alienígenas e vitrines com enfeites e neves de algodão, de Papais Noel se derretendo sob um calor abrasador – símbolos extravagantes, mas carregados de uma ternura infantil, de nosso anseio pelo totalmente Outro, desse anseio que o mundo aprendeu a comercializar, mas não entende nem consegue realmente satisfazer.
A Igreja, em sua sabedoria milenar, dedicou esse mês à interiorização do Advento, para a redescoberta das razões pelas quais fazemos as coisas, preparação para encontrar Deus como um singelo e desprotegido bebê. Esse deveria ser o tempo do retorno ao lar, quando os distantes voltam para suas famílias, os solitários redescobrem o amor, os pobres e os que sofrem são acolhidos com justiça e ternura, os filhos reencontram o Pai.
Mas um habilidoso demônio preencheu dezembro com atividades estafantes e tediosas. Usando amores falsos, vendidos e até cínicos, conspurcou a memória do Amor e dos amores verdadeiros. Desvirtuou as festas, que deixam de celebrar a alegria e se tornam uma duvidosa catarse do vazio e da falta de sentido.
A questão não é só de uma festa mal comemorada. As festas celebram a vida. Uma festa mal comemorada representa uma vida mal vivida. Assim, uma cruel desumanidade, como sombra sútil, nos acompanha nesse tempo de maravilhas, transformando a Beleza em fantasia inconsequente.
Nós, cristãos, nos acostumamos a criticar a mercantilização do Natal em nossa sociedade. É justo, mas com esse foco não percebemos que tudo que fazemos revela um pouco de nossos anseios mais profundos. O desejo de um amor sem limites; da paz que apaziguará não só as nações beligerantes, mas também os corações amargurados; da ternura que não só sanará nossas feridas, mas também trará a justiça para os excluídos e os pobres da terra – tudo isso está presente, ainda que desfigurado, nesse mês de dezembro.
O resgate desse tempo passa menos pela censura de seus desvios que pela percepção de toda a profundidade e riqueza humana que se esconde em seus símbolos, mesmo que oscilem da mais sublime espiritualidade ao mais reles mercantilismo.
Papai Noel não é só a degradação consumista do espírito natalino. Ele é a confirmação de que nossa cultura, por mais mercantilista e interesseira que seja, não consegue apagar em nosso coração o desejo de uma gratuidade e de uma bondade sem limites. A mentalidade do mundo diz que todos queremos ser sobrinhos (e herdeiros) do Tio Patinhas. Mas, no fundo, sabemos que só seremos felizes sendo filhos de um Papai Noel que sempre nos dê a alegria e a liberdade dos que vivem para amar.
A força do cristianismo não está em condenar o mundo, mas em mostrar sua verdade. Cristo não é aquele que condenou Mateus, Zaqueu, a samaritana, Madalena ou mesmo Pedro, mas sim aquele que lhes mostrou a existência de um Amor ansioso por responder ao drama humano.
O Advento e o Natal são o tempo de descobrir e testemunhar a verdade que se esconde por traz de nosso desejo de alegria, de paz e de festa. O mal não está em acreditar em Papai Noel, mas em pensar nele como a fantasia de uma noite de ilusão, e não como símbolo de uma realidade que nos acompanha todos os dias do ano.
Jornal "O São Paulo", edição 3131, 8 a 13 de dezembro de 2016.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

A drástica queda da pobreza no mundo nos últimos 20 anos

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Ana Lydia Sawaya é professora da UNIFESP, fez doutorado em Nutrição na Universidade de Cambridge. Foi pesquisadora visitante do MIT e é conselheira do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

É característica de quem tem fé lembrar-se sempre, ou ter sempre diante dos olhos, que o mundo não é um caos abandonado ao vento dos impulsos dos homens maus, pois Deus veio nos ajudar de forma definitiva; e o Espírito Santo age interminavelmente na história. Assim podemos afirmar com o apóstolo Paulo “onde abundou o pecado, superabundou a graça”. Goethe no Fausto diz que o diabo é aquele ser que quer sempre fazer o mal, mas acaba sempre fazendo o bem.
Ninguém, que tenha o olhar um pouco atento, pode negar que o mal tenha abundado no mundo nos últimos tempos; mas se fixarmos ainda o olhar com atenção para escrutinar toda a realidade na sua integralidade, descobriremos fatos surpreendentes. Um exemplo disso são os dados sobre pobreza tornados públicos na recente Assembleia Geral das Nações Unidas. Diz o relatório que estamos num momento histórico de inflexão, pois:
1.       O número de pessoas vivendo na pobreza extrema (US$ 1,90 por pessoa por dia) caiu pela metade em duas décadas, e o número de crianças pequenas morrendo teve queda semelhante – são seis milhões de vidas salvas todo ano pelas vacinas, incentivo ao aleitamento materno, remédios para pneumonia e tratamentos contra a diarreia! Assim argumenta que é preciso anunciar ao mundo que o processo mais importante que aconteceu no início do século 21 foi a impressionante redução do sofrimento humano. Em 1981, 44% da população mundial vivia na extrema pobreza (segundo dados do Banco Mundial), e calcula-se que este número se tenha reduzido para menos de 10% e continua em queda!
2.       Ele cita ainda outros fatos de deixar qualquer um de queixo caído de surpresa. Durante toda a história da humanidade até a década de 1960, a maioria dos adultos era analfabeta, sendo que atualmente 85% dos adultos presentes no mundo já foram alfabetizados e a proporção está aumentando.
3.       Além disso, a desigualdade no mundo está em queda por causa dos ganhos conquistados pelos pobres em países como a China e a Índia que contam com cerca de um terço da população mundial. Por isso, a ONU tem como objetivo factível erradicar a pobreza extrema até 2030.
4.       Por fim, é necessário considerar que esta transformação da condição humana ocorreu num período de 20 anos, ao passo que a pobreza e as péssimas condições de vida assolaram a maior parte da humanidade por milhares de anos.
Esses são fatos que as pessoas normais não sabem, porque ninguém ou quase os noticia. A tradição cristã nos ensina ao contrário, educar-se a olhar sempre para o fator positivo da realidade, para os dentes brancos da carniça de um cão morto como dizia um livro apócrifo, para não cair na armadilha de sermos instintivamente arrastados pelo mal com a ilusão de que estamos abandonados.
Não se trata absolutamente de uma visão otimista da realidade, mas de uma observação atenta e realista, que não pode deixar de constatar desde tempos imemoriais quando os homens começaram a filosofar que a maioria dos seres humanos age sobre a terra em busca do bem da beleza e da verdade, e com a ajuda de Deus, sempre encontrarão caminhos para alcançar essas realidades. E que o mal existe, mas não é o fator predominante. Enquanto há guerras, terrorismo, assassinatos, corrupção sistêmica, há também milhões de pessoas trabalhando e atuando para diminuir a pobreza no mundo que estão sendo bem-sucedidas!
Jornal "O São Paulo", edição 3130, 30 de novembro a 7 de dezembro de 2016.

terça-feira, 29 de novembro de 2016

Trump ganhou. Para onde olhamos?

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Rafael Mahfoud Marcoccia é professor do Centro Universitário da FEI, fez Doutorado sobre Doutrina Social da Igreja e é colaborador do site católico Terre d'America. 

Passada a surpresa da eleição de Donald Trump para presidente dos Estados Unidos, várias análises começaram a circular. Entre os cristãos, há aqueles que comemoram a vitória do republicano, seja porque ele se coloca com uma agenda pró-vida, seja porque Hillary, que tem relações complicadas com a Igreja, perdeu. E há aqueles que lamentam e não entendem como um candidato com um discurso muitas vezes preconceituoso possa ter vencido. Para onde olhamos?
Há um consenso de que a vitória de Trump foi impulsionada pela classe operária que sente um mal-estar crescente com a globalização, que exportou empregos industriais para o México, em menor escala, e para a China, em maior volume. Os empregos somem e a renda também despenca – dados mostram queda de 14% somente nos últimos dez anos. Além disso, 80% dos apoiadores de Trump se disseram cansados de políticas que favoreciam grupos específicos da população, como negros e imigrantes. Ou seja, o mal-estar é também cultural e de identidade. Em suma, o fenômeno aponta para o cansaço daqueles “de fora” do sistema com aqueles que comandam o processo. Trump captou a insatisfação e usou um discurso certeiro.
Fenômeno semelhante ocorre na Europa. O Brexit é consequência disso, da mesma forma que a francesa Marine Le Pen, voz de direita contra a imigração e a União Europeia, tem 25% das intenções de voto na corrida presidencial, o que a levaria ao segundo turno. Partidos antiglobalização de direita também estão ganhando força na Alemanha, na Holanda, na Hungria e na Áustria.
Em comum com Trump, todos canalizam a seu favor as angústias dos cidadãos que se sentem marginalizados pela globalização e vitimados pela imigração, culpando minorias e forças externas pelos problemas sociais e pelo desemprego, e incentivando o sentimento nacionalista.
Estamos diante de um discurso que divide a sociedade, que joga uns contra outros, que tem propostas mais reativas que propositivas. Esse é o principal problema. Reportagens dos jornais mostram que desde a eleição de Trump foram contabilizados 310 ataques de quem se diz ser seu seguidor contra negros, homossexuais e imigrantes.
Frente a esse cenário, o Papa Francisco defende a “cultura do encontro”, com uma participação social efetiva e plural e disposta ao diálogo sincero em todos os níveis: desde a cooperação entre os países até às associações, obras de caridade, cooperativas etc. que já promovem, em suas comunidades, a dignidade da pessoa e o bem comum através do acolhimento e integração das pessoas à sociedade.  Ou seja, por meio de ações baseadas não nas ideologias – quaisquer que sejam -, mas no amor às pessoas concretas que estão diante de si.
Como S. João Paulo II escreveu, retomando Paulo VI, devemos construir a “Civilização do Amor, o fim para o qual devem tender todos os esforços tanto no campo social e cultural, como no campo económico e político” (“Dives in misericordia”). Tomar ações concretas para uma sociedade mais justa, fraterna e inclusiva. Afinal, diz S. João Paulo II, “a solidariedade é a responsabilidade de todos com todos os homens” (Centesimus annus).
Em qualquer situação, a Igreja reafirma a esperança. O sistema político pode estar ruindo pela corrupção ou por discursos e propostas vistas como irresponsáveis, e isso machuca a todos. Mas não eliminam a experiência de inúmeras pessoas e obras cristãs que, com sua criatividade e liberdade, respondem aos desejos de bem comum, de felicidade e de justiça.

Jornal "O São Paulo", edição 3129, 23 a 29 de novembro de 2016.

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

A fraternidade e os direitos humanos

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Ricardo Gaiotti Silva é advogado, juiz eclesiástico no Tribunal Interdiocesano de Aparecida, mestrando em Filosofia do Direito pela PUC-SP e mestrando em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade de Salamanca - Espanha.

A fraternidade é um tema que está presente em diversas constituições modernas. Com a Declaração Universal dos Direitos Humanos ela obteve seu reconhecimento, tornando-se um objetivo de fundamental importância para o desenvolvimento dos povos. Contudo, a humanidade vive um retrocesso na proteção dos direitos humanos, consequentemente da fraternidade, haja vista o aumento do egoísmo, das inúmeras situações de desigualdade, da pobreza e injustiça.
Tudo isso indica não só uma profunda carência de fraternidade, mas também a ausência de uma cultura de solidariedade, o que se ver é o aumento da “mentalidade do descartável, que induz ao desprezo e abandono dos mais fracos, daqueles que são considerados inúteis”, nos ensinou o Papa Francisco (Mensagem para o dia mundial da paz, 2014). Porém, o homem tem uma vocação à fraternidade, essa que deve ser recuperada.
Dentre os caminhos que podem levar a valorização da fraternidade, destaca-se o pensamento do filósofo Jacques Maritain. Ele considerava que a fraternidade é um instrumento para a busca do bem comum e da justiça social, uma vez que a finalidade da sociedade humana, não pode ser confundida com a proteção egoísta do bem individual, pois, o bem comum deve ser o resultado do equilíbrio garantido pela fraternidade (Os direitos do homem e a lei natural, Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1967).
Assim, a proposta da fraternidade consiste primariamente em que todos se sintam responsáveis por todos e, por conseguinte, esta responsabilidade não pode ser delegada só ao Estado (BENTO XVI, Carta Encíclica Caritas in Veritate, n. 38), todos têm uma parcela de contribuição na construção da fraternidade.
Com efeito, a fraternidade vence o egoísmo e cria um equilíbrio entre liberdade e justiça, entre responsabilidade pessoal e solidariedade, entre bem dos indivíduos e bem comum. Assim, uma comunidade política deve agir de forma transparente e responsável para favorecer tudo isto.
Enfim, a fraternidade deve ser praticada e fomentada pelo Estado, e por todos os cidadãos, pois ela é a chance de cada um ser tratado com dignidade pelo simples fato de ser pessoa humana, criando assim, uma verdadeira sociedade justa.
Neste contexto, deve se considera ainda que a justiça e a fraternidade caminham juntas, na perspectiva de conduzir a humanidade à igualdade de oportunidades como expressão do bem comum ao alcance de todos. Assim, para a garantia dos direitos dos homens, visando o bem comum e a justiça, é necessário à fraternidade, ou seja, os direitos das pessoas serão fielmente assegurados por meio do respeito à dignidade humana, que tem por exigência a realização da fraternidade.
Portanto, é necessário que se promova a fraternidade, para a garantia dos direitos fundamentais dos homens.
Jornal "O São Paulo", edição 3128, 16 a 22 de novembro de 2016.

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Para pôr o País nos trilhos…

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Klaus Brüschke, é membro do movimento dos Focolares, ex-publisher da Editora Cidade Nova, articulista da revista Cidade Nova.

A PEC 241 está sendo proposta como uma medida imprescindível para pôr o País nos trilhos. O equilíbrio das contas públicas seria condição sine qua non para que o Brasil torne a crescer. A CNBB emitiu uma nota alertando que essa medida “elege, para pagar a conta do descontrole dos gastos, os trabalhadores e os pobres […]. Além disso, beneficia os detentores do capital financeiro, quando não coloca teto para o pagamento de juros, não taxa grandes fortunas e não propõe auditar a dívida pública”.
Nas últimas décadas, no mundo globalizado, a dimensão econômica tem desempenhado um papel hegemônico na vida em sociedade. Confunde-se sociedade com mercado, progresso de um país com crescimento do PIB, cidadãos com consumidores, trabalhadores com insumo, inclusão social com inclusão na sociedade de consumo, Estado com empresa…
As várias medidas na agenda do governo não estão permeadas desse modo de ver? O projeto de País que elas contemplam, em vez de ser o de uma sociedade mais justa, fraterna, inclusiva e plural, não é preparar um mercado competitivo na economia global? A necessária reforma trabalhista, em lugar de se pautar pela primazia do trabalho sobre o capital e pela garantia dos direitos dos trabalhadores nas atuais relações trabalho-capital, não visa ao aumento da competitividade dos empreendimentos? A reforma da Previdência, em vez de assegurar uma vida digna aos idosos, não mascara o dreno de recursos públicos para o capital financeiro?
O congelamento orçamentário provocará a diminuição proporcional do Estado num País em crescimento populacional, econômico e… de demandas. Mas isso significa dar mais espaço à sociedade civil, conforme o princípio da subsidiariedade e com mecanismos de uma democracia participativa? Ou se transferem importantes aspectos da vida da população, que não podem ser condicionados pelo lucro e pela eficiência, à iniciativa privada (ou seja, ao capital)?
Será que um olhar mais atento não mostrará que, para além da crise econômica – e política, e moral –, o País passa por uma crise bem mais crônica e profunda, uma crise social? A desigualdade de renda e oportunidades – de trabalho, instrução, cultura, lazer, cidadania –, a violência – a provocar mortes em níveis de uma guerra –, os preconceitos raciais, sexuais e religiosos – com episódios escandalosos e indicadores vergonhosos – e tantos outros aspectos… “Tratar” da crise econômica sem considerar a crise social não agrava esta ainda mais? Um adequado ajuste fiscal não deve ser formulado a partir de definição de políticas públicas que encarem esses desafios?
Para enfrentar isso, urge devolver a primazia à política. Não certamente à vergonhosa caricatura que se está fazendo dela, mas àquela que é “uma forma sublime do exercício da caridade” (Paulo VI). É nesse campo que se fazem necessárias reformas. Não meras adequações institucionais, mas uma mudança radical da cultura política. Necessitamos de uma prática democrática que contemple mais do que um processo eleitoral representativo da sociedade e imune ao poder econômico. Necessitamos de informação transparente e honesta, de participação social efetiva e de pluralismo dialógico. As soluções não estão dadas por princípios definidos por um grupo político, mas são dinamicamente construídas na interação dos diferentes atores sociais durante a travessia.
Um bom início é escapar à dicotomia ou-isso-ou-o-caos e voltarmos a debater criticamente o País que queremos.
Jornal "O São Paulo", edição 3127, 9 a 15 de novembro de 2016.

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

O humanismo cristão no século XXI

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte

Ivanaldo Santos é doutor em filosofia e professor do Departamento de Filosofia do Programa de Pós-Graduação em Letras da UERN.

No período de 06 a 08 de outubro aconteceu em São Paulo, nas dependências da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o III Congresso Latino-Americano Jacques Maritain. Um congresso promovido pelos Institutos Jacques Maritian da América do Sul. O evento foi um marco nas discussões sobre as interpretações da obra do pensador francês Jacques Maritain, mas também nos debates sobre os problemas contemporâneos, especialmente a defesa da vida e da dignidade da pessoa humana.
De um lado, Jacques Maritain, um dos maiores convertidos do século XX, dentro de um cenário marcado pelo terror, pela burocracia e pela cultura da morte, ou seja, as primeiras décadas do século XX, desenvolveu a teoria do humanismo integral. Um humanismo que, num primeiro momento, se abre para Deus, para a transcendência, para a vida mística e para as mais elevadas formas de cultura (arte, música, etc.), mas, logo em seguida, num segundo momento, conduz o ser humano para o respeito à vida e a dignidade da pessoa humana. O humanismo integral foi fundamental para, em 1948, ser aprovada pela ONU a Declaração Universal dos Direitos Humanos. O humanismo integral foi um dos movimentos mais importantes do século XX, tanto dentro da Igreja como nos diversos segmentos que lutaram pela ética e pelos direitos humanos no mundo.
De forma preocupante o século XXI vê o desenvolvimento de uma série de políticas e ideologias que desrespeitam a vida humana. Entre essas políticas citam-se: a idolatria pelo Estado, o terrorismo, o abandono dos refugiados, a cultura da morte que se materializa na violência cotidiana, no aborto, na eutanásia e na pena de morte.
Dentro desse contexto, muito parecido com o que Maritain viveu nas primeiras décadas do século XX, a Igreja e os cristãos são convocados a, num primeiro instante, ter uma atitude de conversão, de busca genuína da vida mística, mas, não ficar preso a essa busca. Pelo contrário, num segundo momento, é necessário buscar edificar o homem integral, um modelo de homem que não é apenas material, mas também espiritual, artístico, educacional, ético e que, por isso, valoriza e respeita a dignidade da pessoa humana. O século XX foi o século da construção da teoria do homem integral. Já o século XXI precisa ser o século que os cristãos vão colocar em prática esse homem integral e, com isso, derrotar a cultura de morte e estabelecer o respeito a todas as formas e manifestações da dignidade da pessoa humana. Uma dignidade que se inicia com a concepção e só termina com a morte natural.
Por fim, afirma-se que, de um lado, o século XXI vive os mesmos dramas e angústias de todos os outros séculos da história da humanidade. Nesse sentido, isso representa o grande caminho da Igreja para lentamente ir construindo o Reino de Deus. No entanto, do outro lado, desde o século XX o ser humano tem aperfeiçoado, de forma perversa, a arte de matar e de infligir dor ao seu semelhante. O século XXI é a continuidade desse processo. Nesse sentido, o cristão é convocado a combater a morte, como lembra o Papa Francisco, com as armas da misericórdia e da valorização da dignidade da pessoa humana. Neste processo, a Igreja e os cristãos irão construir o humanismo integral no século XXI. 
Jornal "O São Paulo", edição 3126, 2 a 8 de novembro de 2016.

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Eleições e política: de onde recomeçar?


Ilustração: Sergio Ricciuto Conte

Marco Montrasi é economista e responsável de
Comunhão e Libertação no Brasil.

Cada circunstância, cada acontecimento é sempre um novo desafio se estamos minimamente abertos e disponíveis a nos deixar provocar sem medo pela realidade. Por isso, também essas eleições podem ser uma grande ocasião. Por que uma ocasião? Porque nascem inevitavelmente perguntas que nos recolocam em movimento: qual é a minha contribuição neste momento de tão grande confusão? É possível recomeçar? Em que deposito a minha esperança? Tenho ainda esperança ou o meu alívio é um simples “amanhã vai melhorar”? Qual é a minha responsabilidade?
A primeira responsabilidade que temos é a de nos educarmos para descobrir o que é o nosso “eu”. A origem dos valores (da vida, da pessoa, do bem comum...) está na descoberta daquilo que eu sou, do desejo de infinito que constitui o meu coração. Esse processo, que não é óbvio, é como juntar os cacos de um homem despedaçado que assim pode começar a dar valor às coisas: a uma garrafa, a um livro, até chegar à forma de tratar o dinheiro e a coisa pública. Esta é a crise profunda da qual estamos vendo as consequências: perdemos o valor das coisas porque perdemos a consciência do nosso “eu”.
“Nada é tão fascinante quanto a descoberta das reais dimensões do próprio eu, nada é tão rico de surpresas quanto a descoberta do próprio rosto humano. É uma aventura apaixonante. Mas, para lançar-se nessa aventura e vencer aquela estranheza em relação a nós mesmos, é preciso alguém com quem olhar o humano que há em nós, alguém que não se assuste diante dele” (J. Carron, A beleza desarmada. São Paulo: Companhia Ilimitada, 2016, p. 136).
O Papa Francisco é testemunha viva desse olhar. Vê-se a sua esperança e como ela gera uma presença que não deixa ninguém indiferente. Um “eu” vivo que não se lamenta diante das dificuldades do mundo, mas se move servindo o homem. Por que ele é assim?
Estamos num momento crucial em que cada um de nós pode deixar-se levar pelo pessimismo e pela acusação a um mundo corrupto e sem esperança, ou pode começar a desejar aprender esse processo de construção lenta e árdua, mas real, possível, que desenvolve uma cultura nova. Com humildade precisamos aprender a aprender -  como dizia Zygmunt Bauman, o mais importante estudioso da sociedade pós-moderna: “Ensinar a aprender. O oposto das conversas comuns que dividem as pessoas: umas certas, outras erradas. Entrar em diálogo significa superar o limiar do espelho, ensinar a aprender a se enriquecer com a diversidade do outro. Ao contrário dos seminários acadêmicos, dos debates públicos ou das discussões partidárias, no diálogo não há perdedores, mas apenas vencedores. Trata-se de uma revolução cultural em relação ao mundo em que se envelhece e se morre antes de crescer. É a verdadeira revolução cultural em relação àquilo que estamos acostumados a fazer e é o que permite repensar a nossa época. A aquisição dessa cultura não permite receitas ou escapatórias fáceis, ela exige e passa pela educação que requer investimentos de longo prazo. Nós devemos nos concentrar nos objetivos de longo prazo. E esse é o pensamento do Papa Francisco. O diálogo não é um café instantâneo, não dá efeitos imediatos, porque é a paciência, a perseverança, a profundidade. Ao caminho que ele indica, eu acrescentaria uma única palavra: assim seja, amém” (Entrevista a Stefania Falasca, publicado no jornal italiano Avvenire, em 20/09/2016).
Jornal "O São Paulo", edição 3124, 19 a 25 de outubro de 2016.

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Um Michelangelo brasileiro

Capela da Casa Generalícia dos Padres Assuncionistas
Roma, Itália, 2008
Hilda Souto, curadora da Associação Cláudio Pastro - Ars Sacra, e Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

Pouquíssimos brasileiros atentaram para a recente morte do artista sacro Cláudio Pastro. Contudo, daqui a 200 anos, quando a maioria das personalidades públicas de hoje for apenas um parágrafo nos livros escolares ou personagens de teses acadêmicas de história, a obra e o nome de Pastro serão muito conhecidos, vistos como uma referência de nosso tempo.
Ele foi o maior artista religioso brasileiro depois do Aleijadinho. Pouco sabemos e lembramos das intrigas políticas e das crises econômicas brasileiras da passagem do século XVIII para o XIX, mas todos conhecemos as obras feitas nessa época por Aleijadinho. A arte e a beleza superam os limites do tempo e nos carregam para a eternidade do Mistério.
Sua obra mais grandiosa é o esplêndido e colorido interior da Basílica de Aparecida. Por ela, foi comparado a Michelangelo. A Basílica é um dos maiores templos religiosos do mundo. Reúne a tradição cristã dos primeiros séculos, valorizada pelo Concílio Vaticano II, à arte latino-americana contemporânea. É um fruto emblemático de nosso tempo. É um significado semelhante ao que a Basílica de São Pedro e Michelangelo têm para a relação entre Renascimento e arte cristã.
A síntese artística e a personalidade de Cláudio Pastro despertaram muitas polêmicas. Contudo, o estudioso bem informado constata que sua obra foi rigorosamente fiel aos preceitos do Concílio Vaticano II, que preconiza uma volta às fontes do cristianismo, conforme o Documento Perfectae Caritatis de 1965. A Beleza no Cristianismo é uma pessoa: Jesus Cristo e a única razão de ser do templo cristão é a celebração do Mistério Pascal.
Produziu uma arte de culto, como a produção artística dos primeiros cristãos e das Igrejas orientais. Uma arte que está a serviço da contemplação do Mistério e de sua presença objetiva no mundo, seguindo indicações litúrgicas e não a subjetividade do artista, como os grandes ícones bizantinos.
Por oposição, a arte de devoção, que vigorou na Europa do Concilio de Trento e formou a sensibilidade religiosa brasileira, está muito mais vinculada à subjetividade do artista, ressaltando sua sensibilidade e seus dotes artísticos. Retrata Cristo e os santos buscando demonstrar a capacidade individual do artista e despertar nossas emoções individuais diante da glória ou do sofrimento dos personagens bíblicos.
A sensibilidade religiosa brasileira é tipicamente devocional, daí a dificuldade de entender a arte de Cláudio Pastro, voltada ao culto mais que à devoção. Porém, quem acompanhou sua trajetória artística percebe o entrelaçamento entre sua arte e a alma brasileira.
Do encontro entre os ícones bizantinos vistos nos mosteiros e as formas simples do artesanato popular nasceram suas primeiras obras: imagens com olhos esbugalhados (porque o santo está sempre contemplado maravilhado o Mistério) e a pele morena dos primeiros cristãos e do povo brasileiro.

Emaus, 1978
Nascia assim uma produção artística que bebia nas fontes cristãs da Patrística, no rico e complexo simbolismo do mundo oriental, mas também refletia a alma popular latino-americana e as tendências primitivistas da arte moderno do século XX. Muitos consideram suas obras muito simbólicas e cerebrais, mas o povo simples sempre aderiu com facilidade a sua beleza e cores vibrantes.
Com o tempo, suas obras foram se tornando mais delicadas e os traços mais essenciais. Repetia sempre que toda forma, traço, cor, som, movimento ou gesto genuinamente cristão é essencialmente continuidade do Mistério da Encarnação.
Jornal "O São Paulo", edição 3125, 26 de outubro a 1º de novembro de 2016.

Leia também:
A arte sacra universal perde um talento brasileiro


terça-feira, 25 de outubro de 2016

A arte sacra universal perde um talento brasileiro

Cláudio Pastro

Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

O paulistano Cláudio Pastro morreu na madrugada do dia 19 de outubro. Era considerado internacionalmente como o mais importante artista sacro brasileiro e um dos maiores do mundo.
Nascido no Tatuapé, em 1948, recebeu na infância, das irmãzinhas da Assunção, uma formação religiosa marcada pela beleza da liturgia e pela objetividade da relação da pessoa com Deus. Posteriormente, se aproximou da Ordem Beneditina e tornou-se oblato do Mosteiro Nossa Senhora da Paz, em Itapecerica da Serra, sua casa espiritual em vida e onde foi sepultado.

Trajetória artística
No início da década de 1970, foi trabalhar como voluntário na periferia de São Paulo, dando aulas de artesanato nas favelas de São Mateus. Foi lá que conheceu Comunhão e Libertação, movimento católico responsável pelo início de sua trajetória artística.
Considerada a mais marcante influência na vida de Pastro, Madre Dorotéia Rondon Amarante, abadessa do Mosteiro da Paz, o formou e o incentivou a conhecer os grandes mestres do Concílio Vaticano II, como Odo Casel e Romano Guardini. 
Cláudio estudou arte na Abbaye Notre Dame de Tournay (França), no Museu de Arte Sacra da Catalunha (Espanha), na Academia de Belas Artes Lorenzo de Viterbo (Itália), na Abadia Beneditina de Tepeyac (México) e no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo. As origens de sua arte, contudo, sempre foram sua experiência de fé, marcada pela beleza da liturgia, e sua vivência junto aos mosteiros beneditinos.
No final da década de 1990, foi convidado para sua obra mais importante: concluir o interior da Basílica de Aparecida, que na época tinha as paredes nuas, sem nenhuma obra de arte. Ainda no início dos trabalhos, em função de uma crise hepática, entrou num coma que durou quarenta dias.
Praticamente renascido, seus últimos anos foram marcados pelos sofrimentos advindos de uma saúde muito comprometida e por uma produção artística que impressionava a ele mesmo. Nunca havia produzido tanto ou sido tão reconhecido.

A renovação dos espaços sagrados
Os especialistas de patrimônio cultural consideram os templos religiosos como obras físicas “mortas”, a serem preservadas para retratar um período histórico. Pastro os considerava como obras vivas, fruto da interação permanente da comunidade de fieis com as estruturas materiais. Por isso, afora casos específicos de alto valor histórico, considerava que o templo tinha que passar sempre por um processo de renovação que mantivesse suas raízes, mas também acompanhasse a evolução da comunidade.
Assim, seguindo o espírito do Concílio Vaticano II, concebeu, em 1988, o primeiro espaço celebrativo no Brasil que seguia as normas litúrgicas pós conciliares: a Capela da Hospedaria do Mosteiro Beneditino de Brasília.

 Capela da Hospedaria do Mosteiro Beneditino de Brasília


As comunidades, das pessoas simples do interior do Brasil aos membros de grandes associações europeias, sempre gostaram e se renovaram com suas obras. Por isso, hoje em dia, existem centenas de espaços religiosos de sua autoria no Brasil, na Itália, Alemanha, França e Espanha.
Caso exemplar é o Pátio do Colégio, marco da fundação de São Paulo. A igreja colonial que ali existia praticamente desabou no século XIX e o espaço passou à prefeitura, sendo retomado pelos jesuítas só em 1953.
Pastro não quis reconstruir a igreja colonial, pois essa não mais existia e refazê-la seria uma falsidade. Usando azulejos (material típico do Brasil colônia) refez a igreja internamente, de modo a recuperar a memória de seu significado histórico, mas incorporando as normas litúrgicas preconizadas pelo Concílio Vaticano II e a estética da atualidade.

Capela do Pátio do Colégio


Associação Cláudio Pastro
Após sua morte, a catalogação de sua imensa obra (cerca de 300 igrejas espalhadas pelo mundo e um número incontável de quadros, esculturas e objetos litúrgicos) está a cargo da Associação Cláudio Pastro – Ars Sacra. A ela cabe agora o encargo de tornar esse patrimônio acessível e conhecido por todos.
Jornal "O São Paulo", edição 3125, 26 de outubro a 1º de novembro de 2016.

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

A alternância de poder é a melhor coisa para a democracia

Ana Lydia Sawaya é professora da UNIFESP, fez doutorado em Nutrição na Universidade de Cambridge. Foi pesquisadora visitante do MIT e é conselheira do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

Eleições mais modestas e com um terço dos gastos aproximaram os candidatos da população e os afastaram dos marqueteiros cujo trabalho é, essencialmente, construir uma “personalidade” fictícia que corresponda ao imaginário da população. Uma eleição menos midiática, com menos gastos, com mais encontros pessoais e visitas locais, só pode beneficiar a democracia ao diminuir as distâncias entre políticos e eleitores. Esta foi uma conquista que a população não pode deixar voltar atrás. Gastos exorbitantes (enquanto há tantos desempregados) não devem mais ocorrer porque eles mais prejudicam a democracia do que favorecem. O marketing político cria também artificialmente “salvadores da pátria” e deifica uma pessoa em detrimento de uma equipe (que mal aparece).
Em democracias mais amadurecidas, o controle do povo sobre os políticos é favorecido quando acontece alternância de poder. Houve no Brasil grande ganhos com a queda da ditadura, a constituição de 1988 e os benefícios sociais que permitiram a diminuição da pobreza, da subnutrição, do analfabetismo, e a universalização do ensino (embora ainda sem qualidade). Mas é evidente que estamos num período de inflexão onde a democracia brasileira parece estar querendo dar mais um passo de maturidade, pois cresce o número de pessoas que está se dando conta que a resposta não está em salvadores da pátria, entre “bons” e “maus”, mas em um sistema de governança novo que inclui trabalho em rede com a constituição cada vez mais sólida de entidades que representem a sociedade civil organizada.
Nas últimas décadas foram criadas leis e normas que favoreceram enormemente os políticos e sua permanência no poder. Há muitos políticos “profissionais” que estão no governo há décadas. A carreira política é a que oferece os maiores benefícios em termos de salário com os muitos acréscimos, aposentadoria após pouco tempo de exercício no cargo, foro privilegiado, carros e apartamentos de graça além de auxílio moradia, muitos assessores a seu serviço, etc., que não existem em muitos países desenvolvidos. Muitos políticos conseguem não só permanecer na política por muito tempo, mas até garantir a permanência da família por várias gerações, passando o bastão de pai para filho e até neto. Tudo isso distancia o político do compromisso com a população e a obrigação de servir ao bem comum, pois torna a política uma carreira própria em benefício de si mesmo e de sua família. Por isso a alternância de poder é altamente benéfica para o exercício da democracia e de mais controle social. Outro fator ainda é a descentralização do poder e do dinheiro. Hoje poucas pessoas tem o poder de decidir para onde vão grandes quantidades de recursos. Em uma cidade como São Paulo, por exemplo, é o Secretário (e seus interesses políticos) quem determina aonde irá o dinheiro. As subprefeituras, que são uma estrutura que permite uma visão mais local e podem reconhecer melhor as diferentes necessidades de cada região, estão esvaziadas.
Se para nós cristãos é claro que a política deve ser o serviço ao bem comum é muito importante que não caiamos na ilusão do político salvador da pátria, daquele que “me dá coisas” ou do político “profissional” que me representa. E a resposta está como ensina a Doutrina Social da Igreja na formação de uma sociedade organizada que trabalha em rede. Um exemplo disso é que mais pessoas que amem verdadeiramente Jesus Cristo se candidatem aos Conselhos Tutelares, às Associações com interesse social e de bairro, etc..
Jornal "O São Paulo", edição 3123, 12 a 18 de outubro de 2016.

terça-feira, 11 de outubro de 2016

As verdadeiras armas da paz

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Wagner Balera é professor titular de Direitos Humanos na Faculdade de Direito da PUC-SP e conselheiro do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

A agenda da Doutrina Social da Igreja girou inicialmente em torno do mundo do trabalho. Tratava-se de enfrentar a questão social que, no final do século dezenove, intentava colocar em claro confronto o capital e o trabalho.
Ocorre que os primeiros cinquenta anos do século XX foram palco de nada menos que dois conflitos mundiais. Essa grave patologia fez com que o Magistério da Igreja inscrevesse outro tópico na pauta da Doutrina Social.
Coube a São João XXIII qualificar esse tópico quando lançou a luminosa Encíclica Pacem in terris e, por intermédio dela, busca compreender que a paz depende do adequado relacionamento entre os Estados que tenha como base quatro conceitos fundamentais: a verdade, a justiça, a liberdade e o amor.
A partir dessa peculiar perspectiva podem ser analisadas todas as guerras que percorreram a história.
A guerra tanto pode ser a fórmula de degradação que um Estado quer impor ao outro, como ocorreu com o fenômeno do colonialismo como, ainda, pela dominação ideológica, como se viu com a temática da guerra fria.
Os critérios da Pacem in terris exigem que, em primeiro lugar, os povos se relacionem – notemos bem, os povos, antes que os Estados – com verdade. Este bem – que o próprio Cristo atribuiu como característica de sua personalidade – impõe aos participes da comunidade humana que vejam os demais como sujeitos de direitos e de deveres, enfim, como pessoas.
A liberdade, como fio condutor do agir das pessoas e dos Estados, associa cada qual a um cabal compromisso com a responsabilidade. Sou livre porque sou responsável pelas ações que posso e devo praticar. E, enquanto tal, respondo pelos acertos, pelos erros e pelos excessos.
Não será alcançada a paz, no entanto, se o coração humano não se dispuser ao amor. Eis a boa notícia do Evangelho que João XXIII resume e compendia como atributo da vida social que deve “estar animado por um amor tal que sintam as necessidades dos outros como próprias, induzindo-as a compartir seus bens com os outros, e a esforçar-se no mundo para conseguir que todos os homens sejam iguais herdeiros dos mais nobres valores intelectuais e temporais”.
Quão distinto seria o liame entre povos desenvolvidos e os que estão em vias de desenvolvimento se o amor fosse a regra do jogo nos relacionamentos!
Mas, a paz depende, mais propriamente, da construção de uma sociedade mundial mais justa e humana.  A fisionomia atual, onde a brutal distinção entre os povos da fome e os povos da opulência (como assinalava a Gaudium et Spes), fomenta as guerras dentro de inúmeros países e, igualmente, entre dois ou mais países, como também notou o grande Pontífice, faz com que a questão social assuma uma dimensão mundial.
Perguntava São João XXIII e, até agora, ninguém lhe ofereceu resposta: “Esquecida a justiça, a que se reduzem os reinos senão a grandes latrocínios? ”
O Programa de Direitos Humanos da PUC-SP lançou, neste ano, pela Editora Lumen Juris, dois livros sobre este tema:  “Na verdade a paz” e “A paz é possível”. Dentro de um projeto abrangente, essas obras esmiúçam algumas das guerras que a história humana catalogou, intentando compreende-las à luz dos critérios estabelecidos pela Pacem in terris, e apresentam as Mensagens de Paz que, desde Paulo VI, tem sido incorporada à Doutrina Social da Igreja, como referenciais de interpretação dos conflitos que afligiram e afligem a humanidade em todos os tempos.
Jornal "O São Paulo", edição 3122, 5 a 11 de outubro de 2016.

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

As eleições municipais e a Doutrina Social da Igreja

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Rafael Mahfoud Marcoccia é professor do Centro Universitário da FEI, fez Doutorado sobre Doutrina Social da Igreja e é colaborador do site católico Terre d'America. 

Em outubro estaremos diante de mais uma eleição para prefeito e vereador. Desejamos compreender os critérios oferecidos pela Igreja Católica para escolher os candidatos e viver o momento das eleições de modo positivo e construtivo.
Em uma sociedade, as pessoas se organizam em grupos e movimentos para responder às suas exigências e necessidades mais profundas. São inúmeros exemplos, tais como: centros de acolhida para pessoas em situações críticas, creches, centros de formação profissional, escolas, hospitais filantrópicos, cooperativas de microcrédito, cooperativas de trabalho, atividades de assistência a idosos, entre outros. São presenças capilares no tecido da nossa sociedade. 
Essa riqueza não depende exclusivamente da ação de quem “faz política”, mas das realidades sociais que vivem uma estima sincera para com o outro, em qualquer situação que este se encontre, que o torna mais livre e responsável diante das próprias circunstâncias da vida. São experiências de solidariedade e gratuidade. Isso é construção política!
Partindo da experiência humana, a Doutrina Social da Igreja nos convida a participar da vida política de nosso município em torno de alguns princípios:
1) Princípio da Dignidade Humana: significa aceitar que no centro do sistema político está a pessoa com os seus direitos e seus deveres. O governo deve garantir a liberdade de pensamento e consciência, de educação e de associação, e reconhecer o valor da pessoa da concepção até o último instante da vida.
2) Princípio de Solidariedade: defende que não se dê como caridade o que já é devido a título de justiça; que se eliminem as causas estruturais dos males, não só os efeitos; e que a ajuda seja encaminhada de tal modo que, os que a recebem, aos poucos, se libertem da dependência e se tornem autossuficientes (cf. Concílio Vaticano II, n. 8).
3) Princípio de Subsidiariedade: sugere que tudo aquilo que pode ser realizado pela sociedade deve ser incentivado e incrementado pelo poder público, deixando para o governo somente aquilo que a sociedade não é capaz de resolver, e sua fiscalização.
Concretamente podemos exemplificar a aplicação desses princípios:
- na educação: o poder público deve incentivar e apoiar integralmente, inclusive no campo financeiro, todas as propostas educativas, como creches, escolas, centros de formação e universidades criadas pelas próprias comunidades ou por organizações religiosas e leigas, que sejam eficientes e verdadeiramente públicas.
- na saúde: cabe à administração pública valorizar obras nascidas da sociedade, como a Santa Casa de Misericórdia, aumentar as verbas repassadas a essas instituições, além de valorizar o serviço prestado pelos ambulatórios médicos e odontológicos que oferecem serviços gratuitos às populações mais pobres.
- na habitação: o governo deve favorecer associações que realizam assentamentos legais e regularizados, e fazer convênios de assessoria técnica e econômica, ou seja, favorecer as inúmeras experiências de mutirões existentes.
Em suma, a política precisa de governantes éticos e que respeitem a liberdade e a criatividade das pessoas, valorizando as iniciativas sociais que delas nascem e respondem às necessidades cotidianas. A política não precisa de pessoas que se julgam no direito de decidir o que é bom para todos. Que cada pessoa seja protagonista de sua história e que possa estar sempre a serviço do bem comum.
Jornal "O São Paulo", edição 3121, 28 de setembro a 4 de outubro de 2016.

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

O Profetismo da Igreja Doméstica

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte

Padre Denilson Geraldo, SAC, é professor da Faculdade de Teologia da PUC-SP e membro da Cátedra André Franco Montoro de DIreito da Família da PUC-SP. 

As Conferências do Episcopado Latino-Americano e do Caribe apresentam, de Medellín a Aparecida, a dimensão profética da Igreja doméstica que se exprime no anúncio do Evangelho e na denúncia das injustiças sofridas, principalmente contra as mulheres. O II Simpósio Internacional de Teologia da PUC-SP, na mesa temática apresentada no campus Santana, refletiu sobre a centralidade da mulher para a configuração da família e sua desconfiguração pela violência.
O fundamento da abordagem encontra-se no conceito de pessoa como imagem e semelhança de Deus e no reconhecimento de sua dignidade. As denúncias do CELAM se fazem diante das diversas formas de violência, principalmente contra a mulher pobre, ainda mais vulnerável. Estudos apontam que a violência não é um fenômeno somente da miséria material, mas se relaciona com os determinantes sociais ao qual a mulher pertence e onde a relação de dominação sobrepõe-se à de amar, ou seja, a violência doméstica encontra-se em todas as classes sociais. A família, que representa um lugar de refúgio e segurança torna-se, para muitas mulheres, o local da vulnerabilidade, destacando-se o problema do machismo. A família, como Igreja doméstica profética, não pode deixar de fazer a denúncia das situações de violência.
A prática de Jesus foi decisiva para ressaltar-se a dignidade da mulher e seu valor insubstituível. A figura de Maria, discípula por excelência entre os discípulos, é fundamental na recuperação da identidade da mulher e de seu valor na vida eclesial, familiar, cultural, social e econômica, criando espaços e estruturas que favoreçam sua participação. O anúncio dessa boa nova será sempre proclamado pela família.
De fato, é necessário superar a mentalidade que ignora a novidade do cristianismo, no qual se reconhece a identidade da mulher e torna-se urgente à Pastoral Familiar a necessidade de uma escuta qualificada do clamor, muitas vezes silenciado pela violência de mulheres submetidas a muitas formas de exclusão. A escuta qualificada significa a urgência em preparar pessoas para acolher as vítimas, especialmente aqueles que trabalham na secretaria paroquial e na Pastoral Familiar, proporcionando uma acolhida em situação de extrema vulnerabilidade. 
Acolher é o primeiro passo para ajudar a vítima de violência a readquirir a autoestima e a coragem para falar sobre o que se passa na intimidade do lar, superando a vergonha familiar e social. O acolhimento na comunidade paroquial faz a pessoa retornar porque sabe que, se acontecer novamente a violência, não será julgada ou debochada. Do mesmo modo, o sacerdote no Sacramento da Penitência saberá acolher a pessoa enfraquecida pela situação doméstica e ajudará a própria vítima a adquirir forças para tomar decisões que coloquem fim à violência doméstica. A acolhida é sinal de uma Igreja paroquial em saída, de uma verdadeira opção pelos pobres. Oferecer uma formação qualificada de acolhimento às vítimas de violência pode ser uma excelente contribuição da Pastoral Familiar diocesana às comunidades.
O desejo de estar e viver em família faz parte da natureza humana, como uma verdadeira ecologia humana, abrindo espaço para um efetivo profetismo da Igreja doméstica. A família é o rosto visível e concreto do Mistério da Igreja, “Sacramento de salvação” no mundo. É a célula viva da sociedade e da Igreja, lugar privilegiado no qual os batizados têm a possibilidade de fazer uma experiência concreta do encontro com Cristo e da sua dimensão profética. A mulher tem uma centralidade para a configuração da família, mas a violência doméstica desconfigura essa comunidade de vida e amor.
 Jornal "O São Paulo", edição 3120, 21 a 27 de setembro de 2016.

O Profetismo da Igreja Doméstica




Padre Denilson Geraldo, SAC, é professor da Faculdade de Teologia da PUC-SP e membro da Cátedra André Franco Montoro de DIreito da Família da PUC-SP. 


As Conferências do Episcopado Latino-Americano e do Caribe apresentam, de Medellín a Aparecida, a dimensão profética da Igreja doméstica que se exprime no anúncio do Evangelho e na denúncia das injustiças sofridas, principalmente contra as mulheres. O II Simpósio Internacional de Teologia da PUC-SP, na mesa temática apresentada no campus Santana, refletiu sobre a centralidade da mulher para a configuração da família e sua desconfiguração pela violência.
O fundamento da abordagem encontra-se no conceito de pessoa como imagem e semelhança de Deus e no reconhecimento de sua dignidade. As denúncias do CELAM se fazem diante das diversas formas de violência, principalmente contra a mulher pobre, ainda mais vulnerável. Estudos apontam que a violência não é um fenômeno somente da miséria material, mas se relaciona com os determinantes sociais ao qual a mulher pertence e onde a relação de dominação sobrepõe-se à de amar, ou seja, a violência doméstica encontra-se em todas as classes sociais. A família, que representa um lugar de refúgio e segurança torna-se, para muitas mulheres, o local da vulnerabilidade, destacando-se o problema do machismo. A família, como Igreja doméstica profética, não pode deixar de fazer a denúncia das situações de violência.
A prática de Jesus foi decisiva para ressaltar-se a dignidade da mulher e seu valor insubstituível. A figura de Maria, discípula por excelência entre os discípulos, é fundamental na recuperação da identidade da mulher e de seu valor na vida eclesial, familiar, cultural, social e econômica, criando espaços e estruturas que favoreçam sua participação. O anúncio dessa boa nova será sempre proclamado pela família.
De fato, é necessário superar a mentalidade que ignora a novidade do cristianismo, no qual se reconhece a identidade da mulher e torna-se urgente à Pastoral Familiar a necessidade de uma escuta qualificada do clamor, muitas vezes silenciado pela violência de mulheres submetidas a muitas formas de exclusão. A escuta qualificada significa a urgência em preparar pessoas para acolher as vítimas, especialmente aqueles que trabalham na secretaria paroquial e na Pastoral Familiar, proporcionando uma acolhida em situação de extrema vulnerabilidade. 
Acolher é o primeiro passo para ajudar a vítima de violência a readquirir a autoestima e a coragem para falar sobre o que se passa na intimidade do lar, superando a vergonha familiar e social. O acolhimento na comunidade paroquial faz a pessoa retornar porque sabe que, se acontecer novamente a violência, não será julgada ou debochada. Do mesmo modo, o sacerdote no Sacramento da Penitência saberá acolher a pessoa enfraquecida pela situação doméstica e ajudará a própria vítima a adquirir forças para tomar decisões que coloquem fim à violência doméstica. A acolhida é sinal de uma Igreja paroquial em saída, de uma verdadeira opção pelos pobres. Oferecer uma formação qualificada de acolhimento às vítimas de violência pode ser uma excelente contribuição da Pastoral Familiar diocesana às comunidades.
O desejo de estar e viver em família faz parte da natureza humana, como uma verdadeira ecologia humana, abrindo espaço para um efetivo profetismo da Igreja doméstica. A família é o rosto visível e concreto do Mistério da Igreja, “Sacramento de salvação” no mundo. É a célula viva da sociedade e da Igreja, lugar privilegiado no qual os batizados têm a possibilidade de fazer uma experiência concreta do encontro com Cristo e da sua dimensão profética. A mulher tem uma centralidade para a configuração da família, mas a violência doméstica desconfigura essa comunidade de vida e amor.
 Jornal "O São Paulo", edição 3120, 21 a 27 de setembro de 2016.