segunda-feira, 29 de maio de 2017

Nas asas de Tolkien

Ilustração Sergio Ricciuto Conte

Cristina Casagrande é jornalista e mestre em Estudos Comparados de Literaturas na USP, com a dissertação "Em Boa Companhia - a amizade em O Senhor dos Anéis".  

O Senhor dos Anéis obviamente é uma obra fundamentalmente religiosa e católica; inconscientemente no início, mas conscientemente na revisão”, afirmou o autor J. R. R. Tolkien ao padre Robert Murray, amigo da família. Tal declaração constantemente anima os teólogos e filósofos cristãos. Mas, muitas vezes, a crítica coloca em xeque a qualidade literária do autor, apesar de ele ter, categoricamente, rejeitado qualquer alusão alegórica de sua obra.
Apesar de haver diversos tolkienistas famosos que fazem primorosos estudos sobre a qualidade estética do autor, como Tom Shippey, Verlyn Flieger e Dimitra Fimi e outros, muitos críticos ainda torcem o nariz para o grande autor de literatura de fantasia. Uma das questões que suscitam esse problema, certamente, é a popularidade de suas obras. Sabemos que O Senhor dos Anéis e O Hobbit são obras extremamente populares, mesmo antes das produções cinematográficas de Peter Jackson. Para essa discussão, no livro Mercado Editorial Brasileiro, Sandra Reimão traz uma interessante distinção entre best-seller do ponto de vista quantitativo e do qualitativo.
Os dois grandes romances publicados por Tolkien são, sem dúvidas, literaturas de massa do ponto de vista quantitativo, mas do qualitativo, divide opiniões. Reimão traz critérios propostos por pensadores como Umberto Ecco e Muniz Sodré para a caracterização de uma literatura tida como baixa: por exemplo, apresentar um herói super-homem ou ter um final feliz imutável, em que tudo permanece onde estava. Os critérios são diversos, mas o fato é que o romance tolkieniano não se encaixa em nenhum deles.
O que a crítica daqueles que rejeitam a literatura de Tolkien me leva a pensar é que, talvez, o autor sofra – com o perdão da analogia – o preconceito da garota bonita. A obra dele tem beleza, aquela que atrai um grande público, não necessariamente a massa crítica intelectual de humanas.
Para alguns, uma garota bonita não pode ser inteligente. Talvez até possa, mas então que seja moralmente vazia. Tudo bem: que seja bonita, inteligente e tenha uma moral impecável, mas nada de ser simpática com muita gente. Assim, a obra tolkieniana desafia as leis da crítica mais sisuda: a verdade é que a sua obra é extremamente sedutora para muitas pessoas e até mesmo viciante para os mais apaixonados. Para agravar a contradição, é escrita por alguém tão literariamente educado como Joyce ou Eliot – conforme diz Gustavo Racy, em seu artigo “Tolkien e os críticos”.  
Sua obra, além de atraente e escrita por uma mente extremamente inventiva e culta, pode levar o leitor já iniciado – ou mais interessando – a outras questões mais profundas, sobre o sentido de sua vida. Para Tolkien, os contos de fadas trazem como característica a fantasia (o ato de subcriar um mundo, à semelhança de um Criador), a recuperação (a retomada da visão de mundo a despeito do racionalismo exacerbado), o escape (a possibilidade de desprender-se das amarras do materialismo) e o consolo (o final feliz da condição humana, com base na Ressurreição de Cristo).  
Essas quatro características descritas pelo autor trazem ares de novidade no desafio do autoconhecimento: não nega a imaginação para se chegar à Verdade, ao contrário, percebe-se dependente dela nessa difícil tarefa. Os textos tolkienianos trazem, enfim, o que Sócrates chama de reminiscência da alma: nos leva a encontrar a nossa razão de ser primordial, despidos de nossos vãos apegos, para assim, ganharmos asas em nossas almas.
Jornal "O São Paulo", edição 3152, 24 a 30 de maio de 2017.

segunda-feira, 22 de maio de 2017

A Igreja e as crises sociais contemporâneas

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Ivanaldo Santos é doutor em filosofia e professor do Departamento de Filosofia do Programa de Pós-Graduação em Letras da UERN.

Recentemente, o Brasil vivenciou uma onda de ataques e de rebeliões de facções criminosas em presídios espalhados pelo país. Apesar dos ataques e das rebeliões terem diminuído nas últimas semanas, seus efeitos e principalmente as suas causas estão bem vivas e presentes na realidade nacional.
Por detrás destes terríveis ataques existe uma série de crises e problemas que angustiam a sociedade contemporânea. Crises que extrapolam os clássicos níveis da análise política. É bom frisar que por “clássico nível da análise política” está se falando do papel do Estado na sociedade, do protagonismo de organizações sociais dentro do cenário cultural. Entre essas organizações pode-se citar, por exemplo, os sindicatos, os partidos políticos e a família.
As crises sociais contemporâneas estão, ao mesmo tempo, fora e perto do Estado, da família e de outras organizações sociais. São crises perpetradas, por exemplo, pela crise da família – é preciso ver que atualmente grande parte das crianças com menos de 10 anos não são criadas por uma família tradicional, com um pai e uma mãe –, uma crise que gera outras crises; pela crise do aumento do consumo de drogas; pela crise do sistema penitenciário que, em grande medida, não consegue ressocializar os detentos; pela crise do esgotamento do modelo de cidadania; pela crise dos partidos políticos; pela crise existencial da classe média que, muitas vezes, apesar de ter um razoável patrão de vida material, não vê sentido na vida e, por isto, recorre às drogas, antidepressivos e até mesmo ao suicídio.
O conjunto dessas crises gera o atual modelo social. Um modelo marcado, muitas vezes, pelo indivíduo desmotivado, que não vê interesse em participar da comunidade religiosa e da política; um modelo onde a família lentamente perde seu valor de proteção emocional e social; um modelo onde as referências aos nobres valores da vida ou não existem – e, com isto, conduz o indivíduo às drogas ou ao suicídio – ou estão em redutos sociais que possuem uma visão limitada e até mesmo deturpada da vida, como é o caso das facções criminosas.
O fato de atualmente milhares de jovens se sentirem atraídos por facções criminosas e até mesmo entrarem em suas fileiras, demonstra que a sociedade vive uma crise profunda. A sociedade não está conseguindo educar essa juventude, não está conseguindo repassar os nobres e mais elevados valores da vida, da família e da humanidade.       
Diante desta crise tão profunda, qual o papel da Igreja?
Trata-se de uma pergunta muito complexa para ser respondida em um artigo tão pequeno. No entanto, apontam-se três caminhos para a ação pastoral em tempos de crises profundas.   
O primeiro caminho é repensar e revalorizar a família. O fato de grande parte das crianças com menos de 10 anos não estar vivendo em um lar com o pai e a mãe demostra, de alguma forma, que a Igreja está falhando em sua missão de promover, acolher e proteger a família. Não se trata de aceitar, de forma apressada, novos modelos familiares, mas sim de valorizar e acolher a família, cujo modelo é a Sagrada Família de Nazaré, formada, em sua essência, por pai, mãe e filho.
O segundo caminho é a intensificação do trabalho com a juventude. A juventude é o alvo central das drogas, das facções criminosas, da mídia alienante, das estruturas de poder e da burocracia. Por isso, é necessário que a Igreja, que é mãe, seja capaz de acolher a juventude, seja capaz de ir em busca dos jovens que, como ovelhas perdidas, estão fora do caminho do Senhor e, por isto, encontram tantos caminhos de morte e dor.
O terceiro e último caminho é a intensificação da ação pastoral da Igreja para o resgate da dignidade humana. Neste campo cita-se principalmente as fazendas da esperança. O sistema das fazendas da esperança tem sido um ótimo e necessário caminho para que muitos jovens possam sair do mundo das drogas, da criminalidade e das mãos das facções criminosas. É necessário que a Igreja, como voz profética, possa multiplicar, em todo o território nacional, a presença deste sistema. O Brasil necessita de mais fazendas da esperança.
Jornal "O São Paulo", edição 3151, 17 a 23 de maio de 2017.

segunda-feira, 15 de maio de 2017

“Mãe é tudo igual, só muda o endereço”: será?

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Magna Celi Mendes da Rocha é doutora em Educação: Psicologia da Educação pela PUC-SP, é assessora da Pastoral Universitária da PUC-SP e membro da comunidade católica Shalom. É mãe de quatro filhos. 

Estereótipos, rótulos, fôrmas são, na melhor das hipóteses, tentativas de simplificar e compreender a realidade que nos cerca.  Quando conseguimos caracterizar, categorizar, definir, classificar parece que a complexidade torna-se menos assustadora e assim, adquirimos certo domínio sobre os fenômenos.
Quando o assunto é maternidade, ao menos em um primeiro momento, trata-se de um tema menos complexo. Afinal, no mundo ideal, “Mãe é tudo igual, só muda o endereço”. Adjetivos relacionados à maternidade não faltam: ternura, bondade, desprendimento, amor, dedicação, confiança. No mundo real, podem existir ainda outros: medo, insegurança, culpa, abandono, rejeição, maus-tratos, indiferença, revolta.
Em geral, compreendemos com tranquilidade que cada filho é único. Porém, ainda resistimos em aceitar que cada mãe é igualmente única. Uma mulher, situada em um tempo e um espaço, com história pessoal própria e uma gama de potencialidades e limites que são postos em cheque a cada instante.  A maternidade é, portanto, uma experiência única, situada no aqui e no agora.  Nunca uma vivência a-histórica.
Se em outros tempos, por exemplo, as mulheres eram reconhecidas, sobretudo, pela sua capacidade reprodutiva, hoje estamos diante de um quadro em que parece uma ofensa romper a barreira do segundo filho, de modo que as novas gerações sentirão dificuldade em compreender a expressão “Igual coração de mãe: sempre cabe mais um.”
Mulher não é tudo igual. Mãe não é tudo igual! Viver a maternidade conscientemente requer tomar parte daquilo que nos constitui, tanto no âmbito pessoal como comunitário. Compreender aquilo que nos constitui não apenas para  conformar-se com  ele, nem para justificar-se e esconder-se, mas também para avaliar o que realmente nos edifica. Decidir sobre o tipo de mãe que queremos ser, ainda que alguns duvidem,  está ao nosso alcance.
A maternidade é inevitavelmente uma via de dores e alegrias, cruz e ressurreição. O mesmo filho que nos faz rir, também nos faz chorar - quase sempre não intencionalmente - mas essa é uma via da qual dificilmente escapamos.
A via da reconciliação faz-se, portanto, também necessária. Reconciliar-se com a própria história de vida e, a partir dela, alçar novos horizontes é uma possibilidade humana que não devemos desperdiçar. Uma reconciliação que consiste em admitir falhas e erros de outros e os próprios. Da mãe que tivemos e da que somos ou seremos.
Reconciliação que significa, ainda, substituir as lentes da (auto)crítica e do (auto)julgamento, pelas lentes da gratidão e do reconhecimento, sob a pena de sermos esmagados pelo fardo da busca de uma perfeição inalcançável aos humanos.
Mesmo Aquela que muitos temos como referencial de Mãe também era única. Podemos nos espelhar, admirar, desejar suas virtudes, mas, ainda assim, nos apropriaremos delas de maneira original e nunca da mesma forma.
Portanto, ousemos ser mais nós mesmas, com nossas fraquezas, limitações, alegrias, medos e esperanças. Ousemos amar nossos filhos com um amor livre, desinteressado, grato e feliz. Renunciemos ao fardo de acertar sempre, sendo sempre mais originais e autênticas, renunciando aos rótulos ou estereótipos.  Afinal, “Mãe só tem uma!”
Jornal "O São Paulo", edição 3150, 10 a 16 de maio de 2017.

segunda-feira, 8 de maio de 2017

A importância do trabalho

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Rafael Mahfoud Marcoccia é professor do Centro Universitário da FEI, fez Doutorado sobre Doutrina Social da Igreja e é colaborador do site católico Terre d'America. 

Em breve celebraremos mais um Dia do Trabalho, mas as notícias mostram que a taxa de desemprego no Brasil já atingiu 13,5 milhões de pessoas, uma das consequências mais dramáticas da crise que ainda estamos passando. O desemprego não afeta somente economicamente, mas fere a dignidade humana.
O trabalho é fonte de realização pessoal, como nos lembra João Paulo II na Laborem exercens (n.9). É um aspecto fundamental da vida por atender às necessidades humanas tanto do ponto de vista material como espiritual. Através das tarefas concretas o ser humano se sustenta e expressa seu modo original de realizar valores em um determinado tempo e lugar. É a maneira de a pessoa marcar a realidade, imprimir o seu “eu” nela.
Dessa forma, o trabalho ganha relevância e significado para a pessoa, pois possibilita ao ser humano a descoberta e a integração da própria personalidade. É menos importante a tarefa em si, mas é fundamental como se trabalha. Viktor Frankl afirma que “o que importa não é, de modo algum, a profissão em que algo se cria, mas antes o modo como se cria; que não depende da profissão concreta como tal, mas sim de nós o fazermos valer no trabalho aquilo que em nós há de pessoal e específico, conferindo à nossa existência o seu caráter de algo único, fazendo-a adquirir, assim, pleno sentido” (Psicoterapia e sentido da vida, São Paulo: Quadrante, 1989).
A realização que vem do trabalho está vinculada à singularidade do ser. Não são as atividades ou tarefas em si que realizam ou satisfazem, mas o que se afirma através e para além delas. Continua Frankl: “Não é um determinado tipo de profissão o que oferece ao homem a possibilidade de atingir a plenitude. Nenhuma profissão faz o homem feliz. A profissão, em si, não é ainda suficiente para tornar o homem insubstituível; o que a profissão faz é simplesmente dar-lhe a oportunidade para vir a sê-lo. Só a partir do momento em que se move para além das fronteiras dos preceitos puramente profissionais, para além do que está regulado pela profissão, só a partir desse momento é que o médico, por exemplo, começa um trabalho verdadeiramente profissional, que só ele pode levar a cabo completamente” (idem).
O trabalho expressa também a dimensão comunitária do ser humano, ao propiciar a interação ou recriação de recursos para a vida em comum. Diz Hannah Arendt: “Nenhuma vida humana, nem mesmo a vida de um eremita em meio à natureza selvagem, é possível sem um mundo que, direta ou indiretamente, testemunhe a presença de outros seres humanos. Todas as atividades humanas são condicionadas pelo fato de que os homens vivem juntos” (A condição humana, São Paulo: Forense, 2007) O trabalho constitui, então, uma possibilidade de desenvolver a personalidade humana  e colocar-se a serviço dos outros.
A pessoa deve colocar-se objetivamente a serviço dos outros, empenhando-se da melhor maneira possível em sua missão. E o sentido do trabalho está vinculado ao que cada ser humano pode expressar de único e original, ou seja, à sua dimensão subjetiva.
Por fim, o ser humano, “mediante seu trabalho, participa na obra do Criador e, segundo a medida de suas próprias possibilidades, em certo sentido continua avançando, cada vez mais, na descoberta dos recursos e dos valores encerrados em tudo o que foi criado” (Laborem exercens (n.25).
Oferecer condições para que as pessoas consigam um trabalho digno é uma das tarefas primordiais da nossa sociedade e dos nossos governantes.
Jornal "O São Paulo", edição 3149, 4 a 9 de maio de 2017.