sexta-feira, 20 de março de 2015

Os debates políticos, a razão e o coração da pessoa

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte

Ana Lydia Sawaya, professora da UNIFESP, coordenadora do Grupo de Estudos em Nutrição e Pobreza do Instituto de Estudos Avançados da USP e conselheira do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

Francisco Borba Ribeiro Neto, sociólogo,
coordenador 
do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

A confusão presente tanto no debate entre os candidatos quanto nas discussões que a sociedade brasileira travou em torno deles, nas rodas de amigos, nos ambientes de trabalho, nas redes sociais, demonstrou frequentemente o predomínio de posições instintivas, rígidas e tendenciosas. A intransigência e o fechamento intelectual e humano observados nestas semanas têm também uma nuança de indiferença e de hostilidade, onde o vale-tudo para afirmar a própria opinião e o próprio poder, a desqualificação do outro, a difamação se tornam instrumentos ‘normais’.  Parece que diante da política a razão não tem voz e o que domina é a emoção.
L. Giussani assinalava, em O senso religioso, que a redução positivista da razão a subtrai dos interesses mais propriamente humanos, como a política. H. Arendt, em As origens do totalitarismo, mostra que esta redução começou quando a razão se separou da experiência, dispensando a verificação da realidade e se colocando como o sujeito da construção do mundo.  Para ela, o “pensamento ideológico destrói toda a relação com a realidade”, não se deixa questionar pela experiência nem aprende com a realidade.
Não interessa mais discutir os fatos mas apenas performances de imagens midiáticas construídas por marqueteiros. No Facebook, charges e piadinhas substituem a discussão política dos fatos inerentes à gestão de poder e as possibilidades para o futuro.  Perde-se assim a relação com a verdade fatual. Mas “a verdade fatual relaciona-se sempre com outras pessoas: ela diz respeito a eventos e circunstâncias nas quais muitos são envolvidos; é estabelecida por testemunhas e depende da comprovação (...) É política por natureza”, considerava H. Arendt, em Entre o passado e o futuro.
Uma atitude política realista e racional, no sentido exposto acima, demanda um caminho educativo cotidiano, onde a razão encontra os desejos mais verdadeiros que existem no coração da pessoa. L. Giussani, em O eu, poder e as obras, considera que “a política, enquanto forma completa de cultura, só pode ter como preocupação fundamental o homem” e que “só existe possibilidade de se construir sobre o desejo presente (...). O desejo, como energia de construção, jamais se cansa e (...) por sua natureza escancara os homens diante da realidade”.
Mas perdemos a consciência deste desejo de realização integral que existe em nosso coração, substituindo-o por vontades e imagens fragmentadas, manipuladas pelas mídias, que nos fecham no individualismo, no utilitarismo e no imediatismo. Temos dificuldade em perceber que o nosso desejo não pode se realizar sem a construção do bem comum, sem o encontro com o outro, em perceber que o prazer fugaz vindo do poder ou da satisfação da instintividade não constrói nossa felicidade.
Sem esta percepção do desejo e do uso da razão torna-se impossível superar a politicagem e realizar a verdadeira política, que é construção do bem comum. Neste contexto, a comunidade cristã tem a tarefa de lembrar-nos de nosso desejo e nosso limite diante do ideal, lembrar que a construção coletiva que nasce deste desejo de bem é diferente de um projeto político construído sobre uma concepção ideológica do mundo e dos homens. “A análise e a construção dependem da intensidade realista do desejo”, lembrava L. Giussani. A partir deste desejo profundo do coração, a política pode abraçar a realidade e criar espaços onde o debate se orienta para o encontro e o bem comum.

Jornal “O São Paulo”, edição 3026, de 6 a 11 de novembro de 2014.

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