sexta-feira, 20 de março de 2015

Abra a felicidade?

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte

Ana Lydia Sawaya é professora da UNIFESP, fez doutorado em Nutrição na Universidade de Cambridge. Foi pesquisadora visitante do MIT e é conselheira do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

Será que ao abrir a tampa de uma garrafa de refrigerante seremos realmente felizes? A ciência vem mostrando o contrário. Refrigerantes e comidas ricas em açúcar, sal e gorduras geram vício alimentar, estão na base do aumento da obesidade, e de muitos problemas de saúde como o diabetes e as doenças cardiovasculares.
“Amo muito tudo isso”, “com sabor de quero mais”, “exageradamente gostoso”, “um sabor inesquecível”: as indústrias de alimentos e bebidas têm explorado cada vez mais a associação entre prazer e felicidade, pois descobriram que esses processos associativos aumentam muito suas venda:
Mas prazer e felicidade não são sinônimos. Os antigos gregos diferenciaram bem essas duas experiências mostrando que podem até ser antagônicas. Usaram a palavra “eudaimonia” para descrever a experiência de felicidade (ter um espírito bom) e a palavra “hedonia” para descrever o sentimento de prazer. Diziam que pouco prazer traz infelicidade, mas muito prazer traz infelicidade também e que a felicidade esta no meio termo e na capacidade de autodomínio. Nem muito, nem pouco.
Para eles, a raiz da felicidade está em saber decidir, ter liberdade para decidir pelo bem. E a felicidade é proporcional ao ser livre das coisas materiais. Assim, o apego excessivo ou incontrolado a algo gera infelicidade. Um monge do deserto chamado Evágrio Pôntico dizia: “Seja o porteiro do seu coração e não deixe entrar nenhum pensamento sem interroga-lo. Interrogue cada pensamento individualmente e diga-lhe: você é um dos nossos ou um dos nossos adversários? Se for da casa, vai enchê-lo de paz. Mas se for do inimigo, vai perturbá-lo pela raiva ou provoca-lo pela cobiça”.
A ciência está cada vez mais de acordo com esses antigos sábios, pois estudos científicos têm mostrado que quando uma criança toma refrigerante seu cérebro memoriza o sabor, o aroma, o barulho de abrir a garrafa, as bolhinhas que faz e, para o resto da vida, desejará este prazer e o terá guardado em sua memória. E quando tiver oportunidade, tomará de forma excessiva essa bebida. Algo parecido com o vício do cigarro ou da cocaína. Todas as bebidas adocicadas e industrializadas tem esse efeito.
Se a mãe toma refrigerante frequentemente ou todos os dias durante a gravidez, o cérebro da criança terá uma atenção saliente e uma busca frequente por esta bebida após o nascimento. Isto acontece porque alimentos ricos em açúcar, gordura e sal geram, mais do que outros, emoções positivas que aumentam a motivação para obtê-los, tão logo são lembrados ou estão disponíveis ao alcance da mão. Ingeri-los é recompensador. Por quê?
Sal, açúcar e gordura eram  muito difíceis de serem obtidos na natureza. O sal era considerado ouro na antiguidade; e a gordura vinha da caça e exigia grande esforço para ser obtida. Por isso nosso cérebro procura preferencialmente estes ingredientes e os prefere em relação a outros.
A mentalidade hedonista proporcionou à indústria a motivação necessária para oferecer produtos baratos, à disposição de todos e a qualquer hora do dia. Essa situação gerou o descontrole e muitos problemas de saúde.
A solução? É o equilíbrio e cozinhar o máximo possível alimentos in natura. Voltar a comer só nas horas certas. Sentar à mesa com a família num ambiente calmo e tranquilo. Cuidar das conversas e falar do que é positivo. Deixar os problemas para outro momento e não ver televisão enquanto come.

Jornal “O São Paulo”, edição 3033, de 7 a 13 de janeiro de 2015.

2 comentários:

  1. Gostei do artigo por discutir um tema de saúde pública que atinge a todos nós, indistintamente de classe ou região do país. Não concordo, contudo, com o olhar "neurocentrista" que afirma uma correlação absoluta e unilateral entre sistema nervoso (cérebro) e nossas ações. Será que somos tão dependentes e determinados por um único órgão em toda nossa complexa estrutura corporal?
    abs,

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  2. Ana Lydia, achei o texto delicioso e pertinente. Interessante a citação do monge Evagrio e as referencias de marketing. Muito bom.

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