Ilustração: Sergio Ricciuto Conte |
Francisco Borba Ribeiro Neto,
coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.
coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.
Na semana de Corpus Christi, outro corpo ocupou, de
forma dramática, as atenções da mídia e da opinião pública: o de uma jovem do
Rio de Janeiro, estuprada ao que se sabe por cerca de 30 homens. Uma barbárie
que “clama aos céus” e às nossas consciências, ainda que um estupro sempre seja
uma selvageria inaceitável, não importa quantos o pratiquem.
A justiça tem que ser feita num caso como este, e de
forma exemplar. Deve ser feita como exemplo que demonstre a todos o quanto esta
conduta é inaceitável – em quaisquer condições.
Mas diante de um mal assim, nossa justiça humana,
ainda que necessária, ainda que cumprida, tem o sabor amargo da impotência. Ela
pode ser punitiva, condenando os culpados, pode até ser parcialmente
restaurativa, recuperando os criminosos para a vida social. Contudo, para a
vítima, nenhuma justiça humana pode reparar plenamente o mal sofrido. Num filme
dos anos ’80 (Um Hotel Muito Louco,
de Tony Richardson), o irmão pergunta a uma jovem vítima de estupro: “o que
você quer?”. E ela responde mais ou menos o seguinte: “que o dia de ontem nunca
tivesse existido”. Mas nenhum poder humano pode realmente mudar o tempo, fazer
com que ontem deixe de existir. O esquecimento, mesmo que consolador, não deixa
de ser um simulacro da realidade. A vingança parece saciar a indignação, mas
não preenche o vazio.
Existirá no mundo alguma força capaz de fazer o bem
nascer do mal mais ignominioso, como uma maravilhosa flor que nasça sobre
cadáveres em decomposição? Só o amor que se manifesta como misericórdia. Ela
não é só perdão, mas também é esse amor impensável, que nos mostra um horizonte
de sentido e de acolhida onde mesmo o pior mal não dá a última palavra, porque
se torna ocasião de encontro de um bem maior ainda.
Não há evidência tão maravilhosa da existência de um
Deus de amor quanto o bem que nasce no próprio mal. Nenhuma fé é tão inquebrantável
como a de quem viu, em sua própria vida, a beleza do amor florescer –
insuspeita e inesperada – em meio à desolação do mal. E não há razão mais forte
para a descrença e para a desumanização da pessoa do que um grande mal que
permanece sem redenção.
O Estado, que deve garantir a segurança do cidadão e
aplicar a justiça humana, deve fazer a sua parte. Mas também é impotente, assim
como cada um de nós em nossa limitada humanidade, para redimir os grandes males
sofridos. Aqui, nossa condição humana clama pela misericórdia, capaz de vir
como chuva que lava toda impureza e fertiliza a terra. Aqui, o “corpo místico
de Cristo” que ao mesmo tempo habita e transcende nossa comunidade humana se
torna indispensável.
O que podemos fazer, nós que aparentemente estamos
longe do sofrimento dessa jovem? A mentalidade progressista exige, com razão,
que o Estado tome as providências necessárias. A mentalidade conservadora, com
igual razão, aponta os limites de uma sociedade que perde a consciência do
valor da pessoa. Apoiando as duas posições, cada cristão é chamado a verificar
e testemunhar a força dessa misericórdia em sua vida, propondo-a como pequeno
milagre passível de ser vivido por todo ser humano.
Podemos não conhecer a jovem que foi vítima dessa
barbárie, mas – em nossa sociedade interconectada – conhecemos alguém que
conhece alguém, que conhece alguém que a conhece. A misericórdia se comunica
por essa rede de pessoas que comunicam uns aos outros não só a obrigatoriedade
da justiça humana ou os valores necessários à vida social, mas a força que se
esconde na aparente fragilidade de um amor capaz de gerar o bem em meio ao pior
mal.
Jornal "O São Paulo", edição 3103, 1 a 7 de junho
de 2016.
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Belíssima reflexão. Obrigado pelas palavras redendoras.
ResponderExcluirabs,
O texto do Prof. Francisco é belíssimo e reflete o sentimento que temos em relação ao que essa jovem sofreu e, ao mesmo tempo, os desafios que temos como cristãos no século XXI, que ainda se deparam com tamanha barbárie, de exercitamos a misericórdia no seu dia-a-dia. Que tudo passa pelo resgate dos valores humanos mais caros que essa sociedade tem deixado de lado há tempos e que isso só poderá ocorrer se nos conectarmos uns aos outros para fazer do bem, o principal remédio para o mal que nos cerca. Obrigada pelo presente! Mirtes Moreira Silva - educadora.
ResponderExcluirÓtima reflexão!
ResponderExcluirGracias amigo por compartir esta belleza conmigo. Te mando un abrazo. Chata
ResponderExcluirSabias palavras as suas prezado amigo Dr. Francisco Borba; todo um poema. Tomara que a Cultura da Vida prevaleça na humanidade sobre a Cultura da Perversidade. Ricardo Estigarribia,desde Assunção - Paraguai
ResponderExcluirAcho que só entendo o texto porque sou cristã e vejo por detrás das belas palavras Jesus vencendo a morte com o amor. Será que quem não é cristão conseguirá? Torço para que isso aconteça!
ResponderExcluirMuito bom, meu amigo. Obrigado por compartilhar estas riquezas conosco
ResponderExcluirBelíssima reflexão diante de algo que nos toca mesmo tão distante, e que ao mesmo tempo fica tão próximo, pois, o outro é parte de nós, mesmo que distante, o tempo e o espaço são insuficiente para separar os laços de humanidade que nos aproxima mesmo diante de tanta desumanização.
ResponderExcluirPrezado Borba
ResponderExcluirLi com prazer seu sábio e oportuno artigo sobre a impotência da justiça “humana” e sobre o bem que pode emergir de um mal. Ele toca uma dos grandes desafios, creio, dos cristãos. Que é integrar as categorias experiências “divinas”, as categorias e experiências “religiosas” e “seculares”, “sacras” e “profanas” (as aspas aqui são necessárias), pois temos de levar muito a sério o “Verbum caro factum est”, de Jesus ter entrado na história humana, chegando inclusive a gritar na cruz “meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” Há uma epistemologia das ciências humanas que tornam essa ponte possível. Como pesquisa, estudo, reflexão, ou seja, como ciência, mas também como tradução prática em atitudes, experiências e mesmo instituições. Não é tarefa simples, mas situações como você aponta em seu artigo, clamam por esse esforço. E é também a isso que o Núcleo Fé e Cultura tem se dedicado. Um abraço.