Caio de Souza Cazarotto – Advogado.
Mestre em Filosofia do Direito.
A defesa da vida humana, pressuposto necessário da bioética,
parte do princípio de que essa vida é dotada de dignidade. Mas de onde provém
essa dignidade? Seria ela meramente formalística, engendrada pela vontade ou
pelo raciocínio humano, ou teria algum substrato ontológico, real? Para isso, é
necessário investigar o que é propriamente o ser humano.
Nessa investigação, a proposta inicial é proceder à análise
dos sentidos que normalmente se atribuem à palavra “eu”, em vista de encontrar
seu substrato permanente e contínuo por baixo deles. Por fim, a observação das
experiências de morte clínica irá fornecer uma das principais chaves
científicas para a confirmação dessa forma substancial da identidade humana.
Há diversos modos de se utilizar o termo “eu”, tais como o
“eu” presencial (o indivíduo aqui e agora); ou o “eu social” (o indivíduo em
suas diversas relações). Neste artigo iremos considerar o “eu” em sentido biográfico
ou autobiográfico”. Esse sentido transparece nas situações em que a pessoa
conta sua história para si mesma ou para os outros. Baseia-se, portanto, na
recordação ou memória de fatos e se constitui de formas narrativas construídas
a partir do material de que o indivíduo dispõe. Esse significado do termo “eu”
revela algo bem mais estável e contínuo; porém, o elemento de esquecimento e o
fator de seleção que a mente faz em relação a dados que, naquele momento de sua
vida, parecem mais relevantes, faz com que haja descontinuidades também no “eu
biográfico”. Por exemplo: o fato de que as pessoas não se recordem do período
em que estavam no ventre materno e dos seus primeiros anos de vida ou de fatos
a que não atribuem importância não significa que elas não passaram por esses
estágios ou acontecimentos.
Percebe-se, desse modo, que tudo aquilo a que se atribui a
palavra “eu” tem referência a algo descontínuo, escandido, fragmentário e
passível de modificação no decurso do tempo. Porém, todos sabem algo que é
completamente evidente e que pode ser expresso nos seguintes termos: “Eu sempre
fui eu mesmo e nunca deixei de ser por um único momento. ” A cada dia que
acordamos, sabemos que somos nós mesmos e que essa identidade permanece por
baixo de todas as mudanças do “eu presencial”, “social” ou “biográfico”.
A pergunta que cabe a partir dessa constatação é a seguinte:
De onde surge esse senso de continuidade no que se refere à identidade do “eu”?
David Hume, filósofo empirista, afirmava que as únicas
coisas que podemos conhecer com certeza são dadas pelas experiências
fragmentárias. Notamos sentimentos, pensamentos, percepções, mas nunca um “eu”
que esteja por baixo dessas experiências; logo, o que chamamos “eu” seria mero
feixe de percepções transitórias, não uma substância real. Porém, as indagações
que surgem naturalmente são: Quem pode dizer que tem essas percepções,
sentimentos e pensamentos? Como um “feixe” pode adquirir um senso de
continuidade de sua própria identidade? Não há resposta satisfatória para elas
seguindo essa linha de raciocínio.
Há os que afirmam que ele nasce de uma imposição ou
influência social ou cultural. Porém, uma imposição desse tipo pressuporia que
os que compõem a sociedade e causam essa influência tivessem um “eu” real, enquanto
os que a sofrem não o tivessem. Além disso, essa imposição teria que ser
contínua, não podendo se interromper em momento algum, pois se isso ocorresse,
a identidade se perderia automaticamente.
Em parcela da tradição psicanalítica, o “eu” é interpretado
como uma construção realizada sobre o inconsciente. No entanto, a existência
ontológica de um “eu” é a condição necessária para que qualquer pessoa construa
algo. Essa construção, portanto, será sempre uma imagem do “eu”.
Pode-se perguntar se o corpo seria esse fator de
continuidade e permanência unificada do “eu”. Sob determinado aspecto, a
resposta é negativa, pois em um período de menos de dez anos, todas as células
do corpo de um indivíduo se modificam – as antigas morrem para que nasçam
novas.
A estrutura da corporalidade, no entanto, permanece a mesma.
As mutações, dessa forma, ocorreriam a partir de um mesmo corpo material, o
qual não se modifica em si mesmo.
Essa matéria da qual o indivíduo se constitui, no entanto, é
dotado de uma forma, a forma que o torna humano, com os fatores distintivos dos
outros entes, dentre os quais, a capacidade de se reconhecer enquanto
individualidade permanente e contínua, mesmo no decurso de intensas mutações.
A visão materialista se assenta na hipótese de que a matéria
da qual o homem é constituído encontra fundamento em si mesma e que é a
evolução do cérebro humano que permite essa especificidade da identificação
consigo mesmo.
O prisma metafísico, no entanto, não reconhece a matéria
como fundamento de si, tendo em vista que nada do que existe de puramente material
é causa sui e de que a forma dessa
matéria, presente em cada individualidade, denota a presença de um Intelecto –
ou Logos – que confere existência
real ao ser constituído de matéria e forma. Esse Logos, por ser o fundamento dos seres existentes, contém, abrange e
transcende a matéria, sendo portanto supramaterial – é o sentido de “metafísico”.
O filósofo Duns Scott, em aperfeiçoamento à filosofia
aristotélico-tomista – que, nesse ponto, atribui à espécie humana a forma de
“animal racional” – traz o termo latino Hecceidade
(“qualidade de ser isso”) para expressar a forma substancial específica do indivíduo, que, aliada à matéria,
confere existência atualizada àquela individualidade humana a qual, antes de
sua geração, existia como mera possibilidade.
O acesso a essa Hecceidade
ocorre por meio da experiência do senso de identidade do eu consigo mesmo, que
só o ser humano é capaz de ter justamente em razão de sua participação no Intelecto, no Logos,
que é o fundamento de sua existência. Isso é o que permite traduzir a forma
substancial irredutível a partir da qual o indivíduo se constitui como ser
existente. O ser humano, segundo essa perspectiva, ao mesmo tempo em que
permanece sendo material também participa do fundamento que transcende a
matéria e que permite ao homem reconhecer o “ser” das coisas e a sua própria
existência como individualidade unitária e permanente. Isso é o que poderíamos
chamar de “eu substancial”.
A cultura moderna, entretanto, formada em grande medida com
base numa desconsideração prévia pela Metafísica e permeada pela ideia de que
só é possível conhecer realmente aquilo que se possa provar pelo método
experimental da ciência moderna, não pode aceitar a princípio essa concepção de
“eu”, a menos que alguma evidência cientificamente concreta se imponha e
conduza a esse entendimento. É o que ocorre por meio da investigação das
chamadas experiências de morte clínica.
Essas experiências são largamente relatadas na literatura científica por
autores, dentre os quais renomados neurocientistas, que se interessam pelo
assunto, tais como o professor Bruce Greyson.[1]
O caso Pam Reynolds, relatado no livro Ciência da Vida após a Morte, é um dos mais emblemáticos e esclarecedores
a esse respeito. Ao aceitar uma operação cirúrgica de altíssimo risco para a
retirada de um tumor no cérebro, Pam passou por um estágio de paralização das
atividades cerebrais e de parada cardíaca durante a cirurgia, ou seja, nesse
intervalo de tempo ela estava literalmente
morta para todos os efeitos da ciência. O mais impressionante é que nesse período,
conforme relatado pela própria paciente após a ressuscitação, Pam percebeu-se
fora do seu corpo físico, observou o formato exato das ferramentas que foram
usadas na cirurgia – algo que não poderia ter percebido antes, pois quando
adentrou a sala de operações, já estava anestesiada – e ouviu o que as pessoas
que compunham a equipe médica diziam durante a operação, o que depois verificou-se
que correspondiam à realidade. Foi relatado que durante esse período, o
horizonte de consciência fica mais alargado e o retorno ao corpo físico é
experienciada como uma compressão ou limitação.
Outros casos semelhantes foram relatados na literatura
médica, como o de Sarah Polgan, uma cega
de nascença que, tendo passado por uma experiência de morte clínica, afirmou
ter enxergado acontecimentos, como os rabiscos que um médico realizou num
pequeno quadro negro e até mesmo o corte de cabelo que a enfermeira estava
usando, os quais depois verificou-se que eram reais.
Em todas essas experiências, a individualidade, ou seja, a
identificação do “eu” consigo mesmo, permanece e chega a ser até mesmo
intensificada.
A visão materialista seguirá na direção de explicar tais
fenômenos ainda pelo funcionamento do cérebro, alegando que não houve cessação
completa da atividade encefálica e que as imagens foram produzidas por meio do
funcionamento cerebral. No entanto, diante dessas evidências em que a pessoa
enxerga acontecimentos reais mesmo sendo cega de nascença, além de casos
relatados de acontecimentos presenciados fora da sala de cirurgia e descritos
com detalhes, torna-se extremamente remota a hipótese da suficiência do cérebro
como fonte explicativa. Além disso, há que se reconhecer que a ciência até hoje
não provou o locus do sistema
encefálico em que a consciência seria “produzida”.
Verifica-se a partir desses dados empíricos – que merecem
uma atenção científica e acadêmica mais apurada – que a consciência do
indivíduo e sua identidade se mantêm contínuas inclusive nas situações em que é
reconhecida clinicamente sua morte. Não é possível dizer que essa seja uma prova científica cabal da hipótese
metafísica da continuidade do ser humano para além da morte física, mas deve-se
reconhecer que é uma excelente pista nesse sentido.
A hipótese que podemos extrair da fusão entre a análise
filosófica empreendida e os relatos das experiências de morte clínica é que o
“eu” humano não é algo transitório, fugaz e perecível como nos últimos séculos
a filosofia ocidental se acostumou a nos fazer pensar, mas trata-se de uma
individualidade constituída de modo perene, ou seja, de agora para sempre, e
essa perenidade é ontológica. A verdadeira dignidade da vida humana reside
nesse fato, ou seja, nossa existência real, aquilo que somos realmente, é algo
que transcende a esfera do que podemos conceber por meio de nossa mente.
Cada pessoa sabe que não pode ter dado a si mesma essa existência,
cuja perenidade é sua própria forma substancial em razão da participação em seu
verdadeiro fundamento, o Logos que
transcende a matéria, que lhe é desconhecido por experiência direta.
A consciência simultânea tanto dessa grandeza da qual somos
constituídos quanto da ausência de fundamento em nós mesmos é o único substrato
que pode embasar o efetivo reconhecimento da dignidade da vida humana.
[1] Vide artigo: GREYSON, Bruce. Near-death experiences: clinical
implications: São Paulo, Revista Psiquiátrica Clínica, vol. 34, suppl. 1,
2007.
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