Tendo em vista a experiência cristã que somos chamados a
viver nos dias de hoje, descrita, mais adiante, no 4º capítulo da mesma
Exortação, o papa Francisco nos alerta para duas sutis ameaças à sua
autenticidade evangélica: o fechamento sobre si mesmo e sobre suas próprias
ideias e o empenho em realizar seus próprios projetos segundo planos,
estratégias ou organizações por nós elaborados.
Designa essas duas
tentações como agnosticismo e pelagianismo, que têm em comum a confiança em nós
mesmos. O papa Francisco sublinha que em ambas apegamo-nos a nossos ideais e aos
caminhos que escolhemos para realizar nossos projetos sociais e pastorais, esquecendo-nos
de que a vida e a ação cristãs não têm outro caminho senão acolher e cultivar,
em nossa vida, o Espírito de Jesus, que é graça e dom de Deus.
Francisco Catão
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Percorrendo o texto:
Desejo chamar a
atenção para duas falsificações da santidade que nos poderiam extraviar: o
gnosticismo e o pelagianismo. São duas heresias que surgiram nos primeiros
séculos do cristianismo, mas que continuam a ser de alarmante atualidade. Nelas
aparece um imanentismo antropocêntrico, disfarçado de verdade católica. Em primeiro
lugar conta verdadeiramente o eu, nem Jesus Cristo nem os outros
interessam. [Nº 35]
O
gnosticismo atual
O gnosticismo
supõe «uma fé fechada no subjetivismo, onde apenas interessa uma determinada
experiência ou uma série de raciocínios e conhecimentos que supostamente
confortam e iluminam, mas, em última instância, a pessoa fica enclausurada na
imanência da sua própria razão ou dos seus sentimentos» [Nº 36]
Ao longo da história da
Igreja, ficou claro que o que mede a perfeição das pessoas é o seu grau de
caridade, e não os conhecimentos que possam acumular. Os «gnósticos» concebem
uma mente sem encarnação, incapaz de se interessar pelos outros. Preferem «um
Deus sem Cristo, um Cristo sem Igreja, uma Igreja sem povo». [Nº 37]
Isto pode acontecer
dentro da Igreja, tanto entre os leigos das paróquias como entre aqueles que
ensinam filosofia ou teologia nos centros de formação. É típico dos gnósticos
crer que, com as suas explicações, podem tornar perfeitamente compreensível
toda a fé e todo o Evangelho. [Nº 39]
O gnosticismo é uma
das piores ideologias, pois [...] considera que sua própria visão da realidade
suplanta tanto o mistério de Deus e da sua graça, como o mistério da vida dos
outros [...] Mesmo quando a vida de alguém tiver sido um desastre, mesmo que o
vejamos destruído pelos vícios ou dependências, Deus está nele presente. [Nº 40-42]
Mal chegamos a
compreender a verdade, e ainda com maior dificuldade, expressá-la. Por isso,
não podemos pretender que osso modo de entender nos autorize a exercer um
controle rigoroso sobre a vida dos outros. [Nº 43]
Na Igreja, convivem
legitimamente diferentes maneiras de interpretar muitos aspetos da doutrina e
da vida cristã, que, na sua variedade, ajudam a explicitar melhor o tesouro
riquíssimo da Palavra [...] São Francisco de Assis [...] reconheceu a tentação
de transformar a experiência cristã num conjunto de especulações mentais, que acabam
por nos afastar do frescor do Evangelho. [Nº 43-46]
O
pelagianismo atual
O gnosticismo deu
lugar a outra heresia antiga, que está presente também hoje [...] O poder que
os gnósticos atribuíam à inteligência, alguns começaram a atribuir à vontade
humana, ao esforço pessoal. Surgiram, assim, os pelagianos. Já não era a
inteligência que ocupava o lugar do mistério e da graça, mas a vontade. [Nº
47-48]
Quem se conforma a
esta mentalidade embora fale da graça de Deus com discursos edulcorados, «no
fundo, só confia nas suas próprias forças e sente-se superior aos outros por
ser irredutivelmente fiel a um determinado estilo de ser católico» [...] Costumam
transmitir a ideia de que tudo se pode com a vontade humana [...] a que se
acrescenta a graça. [Nº 49]
A falta dum
reconhecimento sincero, pesaroso e orante dos nossos limites é que impede a
graça de atuar melhor em nós [...] se não reconhecemos a nossa realidade
concreta e limitada, não poderemos ver os passos reais e possíveis que o Senhor
nos pede em cada momento. A graça atua historicamente e vai nos transformando
de forma progressiva. Se recusarmos esta modalidade histórica e progressiva,
podemos chegar a negá-la e bloqueá-la, embora a exaltemos com as nossas palavras.
[Nº 50]
A Igreja ensinou
repetidamente que não somos justificados pelas nossas obras ou pelos nossos
esforços, mas pela graça do Senhor que toma a iniciativa [...] Só a partir do
dom de Deus, livremente acolhido e humildemente recebido, é que podemos cooperar
com os nossos esforços para nos deixarmos transformar cada vez mais [...] Só a
caridade torna possível o crescimento na vida da graça, porque, «se não tiver
amor, nada sou». [Nº 52-56]
Ainda há cristãos que
insistem em seguir outro caminho: o da justificação pelas suas próprias forças
[...] com muitas atitudes aparentemente diferentes entre si: a obsessão pela
lei, o fascínio de exibir conquistas sociais e políticas, a ostentação no
cuidado com o prestígio da Igreja, a vanglória ligada à gestão de assuntos
práticos, a atração pelas dinâmicas de autoajuda e realização autor
referencial. [Nº 57]
Sem nos darmos
conta, pelo fato de pensar que tudo depende do esforço humano canalizado
através de normas e estruturas eclesiais, complicamos o Evangelho e nos tornamos
escravos dum esquema que deixa poucas aberturas para que a graça atue. [Nº 59]
Para evita isso, é
bom recordar a primazia das virtudes teologais, que têm Deus como objeto e
motivo, em cujo centro, está a caridade [...] Em meio à selva de preceitos e
prescrições da Lei, Jesus abriu uma brecha, que permite vislumbrar dois rostos:
o do Pai e o do irmão. Não nos dá mais dois preceitos, entrega-nos dois rostos,
ou melhor, um só: o de Deus que se reflete em cada irmão, especialmente nos
mais pequenos, frágeis, inermes e necessitados. [Nº 60-61]
Que o Senhor
liberte a Igreja das novas formas de gnosticismo e pelagianismo que a complicam
e detêm nosso caminho para a santidade! Exorto cada um a se questionar e a
discernir diante de Deus a maneira como possam manifestar o amor em sua vida.
[Nº 62]
Jornal "O São Paulo",
edição 3195, 18 a 24 de abril de 2018.
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