segunda-feira, 22 de junho de 2015

A Igreja e a Ciência

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte

Eduardo Rodrigues da Cruz é professor titular do Departamento de Ciências da Religião da PUC-SP. Tendo graus avançados em Física e Teologia, publicou extensamente sobre o relacionamento entre ciências naturais e fé Cristã.

Talvez o leitor não esteja familiarizado com esse tipo de conversa, mas é só pesquisar um pouco para se notar que muito se fala da Igreja como obstáculo para o avanço das ciências. O exemplo mais visível e recente é o da bioética, no caso específico da experimentação com pessoas humanas, nascidos e não nascidos, embriões e idosos.
Nesses dias encena-se em São Paulo a peça teatral “Galileo Galilei”, de Bertold Brecht. Nela o autor, seguindo seu ideário socialista, apresenta Galileu como mártir da ciência, e a Igreja como a vilã e obscurantista. Penso na maioria das pessoas que assistem a essa peça. O que ficará impresso na mente delas, a versão de historiadores honestos, que apresentam as relações entre as partes envolvidas como muito complexas para caberem em estereótipos, ou a versão que acabaram de ver? O leitor, portanto, há de ficar de sobreaviso sobre o que de fato ocorreu. O que segue abaixo são apenas indicativos desses fatos.
Como todos deveriam saber, a começar dos que se dizem herdeiros do iluminismo (uma palavra que, por si só, tem uma carga ideológica), foi a Igreja que preservou o saber antigo, à medida que o Império Romano chegava ao seu fim. Aos poucos, esse saber começa também a ser desenvolvido, nos mosteiros, escolas de catedrais, e por fim em universidades, que começam a surgir ainda no século XII.
No surgimento da ciência moderna, no século XVII, todos os filósofos da natureza eram cristãos, e entendiam sua tarefa e o resultado de suas descobertas como expressão da glória divina. Se agora percorremos os séculos restantes, haverá muitos exemplos de incentivo da Igreja à atividade científica, seja em caráter global ou local. Já para o sec. XX, os dados são mais conhecidos, começando com Observatório Vaticano (1891) e passando pela Academia Pontifícia de Ciências (1936) e o Concílio Vaticano II.
Porém, mais importante que um balanço histórico, é indicar alguns princípios doutrinários que movem as posturas da Igreja em relação à ciência. Esses princípios surgem do pensamento de Agostinho e Tomás de Aquino, os dois maiores teólogos da tradição católica. Por exemplo, a doutrina das “ordens de saber”, que diz que não se podem confundir as ciências da natureza com a metafisica e a teologia, que vem sendo regularmente acolhida. Isso dá uma integridade e um valor ímpares às ciências da natureza – duas verdades não se podem contradizer mutuamente. Essa articulação entre fé e razão ganhou uma forma dogmática no Concílio Vaticano I, e tem sido reiterada pelo magistério da Igreja desde então.
Se de modo geral a ciência tem sido favorecida pela Igreja, de onde então se tem uma estranheza mútua e falas sobre conflito? A resposta é ao mesmo tempo simples e desafiadora: o pensamento humano (e a ciência dentro dele) não se dá em uma única classe de significados. Desse modo, a ciência empiricamente baseada vem acompanhada de toda sorte de filosofia e interesses escusos. O problema, portanto, não se encontra na atividade científica em si, mas com o cientificismo, a arrogância de uma ciência autossuficiente, que crê ser a chave para a compreensão da realidade. Somando-se isso a certa dose de anticlericalismo, temos então a imagem de uma Igreja conservadora e uma ciência progressista.
Oxalá pudéssemos ter uma ciência “pura”, que correspondesse aos mais altos anseios humanos e em harmonia com a fé cristã. Mas afinal de contas, somos apenas homens, finitos e pecaminosos.
Jornal “O São Paulo”, edição 3056, de 17 a 24 de junho de 2015.

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