Ilustração: Sergio Ricciuto Conte |
Eduardo Rodrigues da Cruz é professor titular do Departamento de Ciências da Religião da PUC-SP. Tendo graus avançados em Física e Teologia, publicou extensamente sobre o relacionamento entre ciências naturais e fé Cristã.
Talvez o leitor não esteja familiarizado com esse tipo de
conversa, mas é só pesquisar um pouco para se notar que muito se fala da Igreja
como obstáculo para o avanço das ciências. O exemplo mais visível e recente é o
da bioética, no caso específico da experimentação com pessoas humanas, nascidos
e não nascidos, embriões e idosos.
Nesses dias encena-se em São Paulo a peça teatral “Galileo
Galilei”, de Bertold Brecht. Nela o autor, seguindo seu ideário socialista,
apresenta Galileu como mártir da ciência, e a Igreja como a vilã e
obscurantista. Penso na maioria das pessoas que assistem a essa peça. O que
ficará impresso na mente delas, a versão de historiadores honestos, que
apresentam as relações entre as partes envolvidas como muito complexas para
caberem em estereótipos, ou a versão que acabaram de ver? O leitor, portanto,
há de ficar de sobreaviso sobre o que de fato ocorreu. O que segue abaixo são
apenas indicativos desses fatos.
Como todos deveriam saber, a começar dos que se dizem
herdeiros do iluminismo (uma palavra que, por si só, tem uma carga ideológica),
foi a Igreja que preservou o saber antigo, à medida que o Império Romano
chegava ao seu fim. Aos poucos, esse saber começa também a ser desenvolvido,
nos mosteiros, escolas de catedrais, e por fim em universidades, que começam a
surgir ainda no século XII.
No surgimento da ciência moderna, no século XVII, todos os
filósofos da natureza eram cristãos, e entendiam sua tarefa e o resultado de
suas descobertas como expressão da glória divina. Se agora percorremos os séculos
restantes, haverá muitos exemplos de incentivo da Igreja à atividade
científica, seja em caráter global ou local. Já para o sec. XX, os dados são
mais conhecidos, começando com Observatório Vaticano (1891) e passando pela
Academia Pontifícia de Ciências (1936) e o Concílio Vaticano II.
Porém, mais importante que um balanço histórico, é indicar
alguns princípios doutrinários que movem as posturas da Igreja em relação à
ciência. Esses princípios surgem do pensamento de Agostinho e Tomás de Aquino,
os dois maiores teólogos da tradição católica. Por exemplo, a doutrina das
“ordens de saber”, que diz que não se podem confundir as ciências da natureza
com a metafisica e a teologia, que vem sendo regularmente acolhida. Isso dá uma
integridade e um valor ímpares às ciências da natureza – duas verdades não se
podem contradizer mutuamente. Essa articulação entre fé e razão ganhou uma
forma dogmática no Concílio Vaticano I, e tem sido reiterada pelo magistério da
Igreja desde então.
Se de modo geral a ciência tem sido favorecida pela Igreja,
de onde então se tem uma estranheza mútua e falas sobre conflito? A resposta é
ao mesmo tempo simples e desafiadora: o pensamento humano (e a ciência dentro
dele) não se dá em uma única classe de significados. Desse modo, a ciência
empiricamente baseada vem acompanhada de toda sorte de filosofia e interesses
escusos. O problema, portanto, não se encontra na atividade científica em si,
mas com o cientificismo, a arrogância de uma ciência autossuficiente, que crê
ser a chave para a compreensão da realidade. Somando-se isso a certa dose de
anticlericalismo, temos então a imagem de uma Igreja conservadora e uma ciência
progressista.
Oxalá pudéssemos ter uma ciência “pura”, que correspondesse
aos mais altos anseios humanos e em harmonia com a fé cristã. Mas afinal de
contas, somos apenas homens, finitos e pecaminosos.
Jornal “O São Paulo”, edição 3056, de 17 a 24 de junho de
2015.
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