Francisco Borba Ribeiro Neto,
coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP
A Carta a Diogneto, uma descrição da vida dos primeiros
cristãos, provavelmente do início da Era Cristã, foi escrita em grande parte
com base no paradoxo de que os cristãos estavam no mundo, vivendo como todos os
homens e mulheres de seu tempo, mas não eram do mundo, pois tinham uma
“cidadania no céu”; obedeciam às
leis, mas com sua vida as ultrapassavam; mesmo perseguidos e condenados à
morte, amavam os que lhes odiavam.
Seu autor se perguntava: como poderia uma proposta tão
paradoxal sobreviver e se difundir, tendo cada vez mais segudiores? Ele mesmo
respondia: porque aqueles que vivem desse modo encontram a alegria e a
felicidade ao descobrirem-se amados por Deus e se tornarem participantes de Seu
amor no mundo.
Tantos séculos depois, a Exortação Apostólica Gaudete et
Exsultate, lançada pelo Papa Francisco, em 19 de março último, retoma essa
mesma cidadania, que confunde o mundo, mas enche de alegria a vida daqueles que
a abraçam, e que denominamos santidade.
Infelizmente, mesmo entre os católicos o ideal de santidade
tem se perdido porque parece depender de um heroísmo inalcançável, da privação
de todos os prazeres e alegrias, de uma bondade ingênua que descamba até para a
tolice. Francisco escreve sua Exortação desmentindo todos esses pontos.
Sem dúvida sua imagem de santidade é heroica, mas de um
heroísmo cotidiano, possível a todos. Aquele heroísmo essencial para podermos
chegar ao final do dia ou ao momento da própria morte com a consciência de que
a vida vale a pena de ser vivida.
Uma santidade que não nos priva das alegrias da vida, mas,
pelo contrário, nos faz viver com maior alegria e satisfação. Num mundo em que
todos perseguem, sem alcançar, a alegria e a felicidade, Francisco mostra que a
rota para ser alegre e feliz está em sentido oposto à que a mentalidade
hegemônica quer que trilhemos. Não se é verdadeiramente alegre e feliz num
caminho individualista e egocêntrico, mas sim, pelo contrário, aprendendo cada
vez mais a amar o outro.
A bondade do
santo não corresponde a uma ingenuidade tola, mas à verdadeira sabedoria, capaz
de discernir o sentido das coisas e encontrar o caminho para a realização de
cada ser humano e de toda a humanidade.
Na Exortação,
o Papa vai “contracorrente”, como diz ao falar das bem-aventuranças. Ser santo
implica em se posicionar de um modo radicalmente diferente do esperado em nossa
sociedade. Mas esse outro modo de ser traz a real felicidade para a pessoa, constrói
a justiça e o bem comum, se opondo ao poder e à dominação.
Numa
sociedade que idolatra a riqueza material, o sucesso individual e o poder,
Francisco escreve um texto orientado pela misericórdia, pela humildade, pelo
compromisso com os pobres e com os que mais sofrem. Assim propõem um estar no
mundo que muda tanto as pequenas relações interpessoais cotidianas quanto as
opções e as condutas políticas que definem nossa participação cidadã.
Gaudete et Exsultate mostra que a santidade é a grande articulação da
espiritualidade centrada na misericórdia e na alegria do encontro com Cristo,
mostradas na Evangelii Gaudium e na Misericordiae Vultus, com a opção pelos
pobres, a defesa do meio ambiente e a acolhida incondicional a todos que
caracterizam os escritos mais sociais de Francisco.
Por tudo isso, vale a pena falar dela também numa coluna
dedicada à relação entre fé e cidadania. O mundo dificilmente entenderá
integralmente sua proposta, mas é um texto fundamental para quem quer ser
cristão nos tempos atuais.
Jornal "O São Paulo",
edição 3195, 18 a 24 de abril de 2018.
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