Introdução
No capítulo 25 do
Evangelho de Mateus Jesus volta a se deter numa das bem-aventuranças: a que
declara felizes os misericordiosos. Se andamos à procura da santidade que
agrada a Deus, encontramos neste texto a regra de comportamento sob a qual seremos julgados: cuidando do próximo
em suas necessidades, cuidamos de Jesus: «Tive fome e Me destes de comer, tive
sede e Me destes de beber, era peregrino e Me recolhestes, estava nu e Me destes
que vestir, adoeci e Me visitastes, estive na prisão e fostes ter comigo» (GE, § 95).
O Espírito que
anima a experiência cristã se concretiza no gesto de amor e de bondade para com
todas as pessoas com que nos relacionamos no dia a dia, porque é nelas e por
elas, que Jesus vem ao nosso encontro.
Francisco Catão
O caráter místico
desse encontro funda-se antes de tudo na Palavra de Jesus. Mais do que mero convite à caridade, as palavras de Jesus são aqui uma página de doutrina,
que projetam um feixe de luz sobre o mistério de Cristo (§ 96). É meu
dever pedir aos cristãos que as aceitem e recebam com sincera abertura, sine
glossa, isto é, sem comentários, especulações e desculpas que lhes tirem a força.
O Senhor deixou-nos bem claro que a santidade não se pode compreender nem viver
prescindindo destas suas exigências, porque a misericórdia é o «coração
pulsante do Evangelho (§ 97).
Quando encontro uma
pessoa a dormir na rua posso sentir ou que se trate de um problema que não me
compete resolver, ou reagir a partir da fé e da caridade e reconhecer nele um
ser humano com a mesma dignidade que eu, um irmão redimido por Jesus Cristo.
Isto é ser cristão! Poder-se-ia porventura entender a santidade prescindindo
deste reconhecimento vivo da dignidade de todo o ser humano? (§ 98)
Para os cristãos,
isto supõe uma saudável e permanente insatisfação. Embora dar alívio a uma
única pessoa já justificasse todos os nossos esforços, isto, para nós, não é
suficiente. Não basta praticar apenas algumas boas ações, é preciso se empenhar
em procurar uma mudança social: o restabelecimento de sistemas sociais e econômicos
justos, para acabar com a exclusão (§ 99).
Mas não nos
deixemos seduzir pelas ideologias, elas mutilam o coração do Evangelho e nos levam, infelizmente, a dois erros nocivos.
Primeiro, separam as exigências do Evangelho de
nosso relacionamento pessoal com o Senhor, da união interior com Ele,
transformando o cristianismo numa espécie de ONG, privada da espiritualidade
irradiante que viveram os santos (§ 100).
Depois levam as pessoas a viver suspeitando do
compromisso social dos outros grupos, como se não houvesse nada mais importante
do que a ética ou o arrazoado que abraçam. A defesa do inocente nascituro, por
exemplo, deve ser clara, firme e apaixonada, porque neste caso está em jogo a
dignidade da vida humana, sempre sagrada, e o exige o amor por toda a pessoa,
independentemente do seu desenvolvimento.
Igualmente sagrada
é a vida dos pobres que já nasceram e se debatem na miséria, no abandono, na
exclusão, no tráfico de pessoas, na eutanásia encoberta de doentes e idosos
privados de cuidados, nas novas formas de escravatura, e em todas as formas de
descarte (§ 101).
Não nos podemos propor um ideal de santidade
que ignore a injustiça deste mundo, em que alguns festejam, gastam folgadamente
e reduzem sua vida às novidades do consumo, enquanto outros se limitam a olhar
de fora, numa vida que se passa e termina miseravelmente (§ 101)
Muitas vezes, em
face do relativismo e dos limites do mundo atual, ouve-se dizer que a situação
dos excluídos é um tema marginal. Longe disso, basta pensar, por exemplo, na
situação dos migrantes. Não se pode desconhecer que acolher o migrante é
precisamente o que hoje nos exige Jesus, quando diz que a Ele mesmo recebemos
em cada forasteiro (§ 102).
Damos glória a Deus
não só com o culto, a oração, ou a simples observância de algumas normas éticas.
O primado, é verdade, pertence à relação com Deus, mas não nos esqueçamos de que,
antes de mais nada, o critério de avaliação da nossa vida é o que fazemos pelos
outros. A oração é preciosa, alimenta a doação diária de amor; o culto agrada a
Deus, quando inclui o propósito de viver com generosidade e quando o dom recebido
se manifesta na dedicação aos irmãos (§ 104).
O melhor modo de
discernir se nosso caminho de oração é autêntico é de ver em que medida nossa
vida se vai transformando à luz da misericórdia, arquitrave que suporta a vida
da Igreja, manifesta mais luminosa a verdade de Deus e é a chave do Céu» (§105)
Tomás de Aquino ensina
que nossas ações maiores não são as obras exteriores. Não praticamos o culto
para proveito de Deus, mas para benefício nosso e do próximo, por isso a
misericórdia é o sacrifício que mais Lhe agrada» (§ 106). Quem deseja dar
glória a Deus com a sua vida, é chamado a se gastar e se cansar praticando a
misericórdia. Deus depende de nós para amar o mundo e lhe demonstrar o muito
que o ama (§ 107).
O consumismo
hedonista nos pode enganar, porque, na obsessão de nos divertirmos, acabamos
por estar excessivamente concentrados em nós mesmos. O próprio consumo de
informação superficial e as formas de comunicação rápida e virtual podem ser um
fator de estonteamento que ocupa todo o nosso tempo e nos afasta da carne
sofredora dos irmãos. No meio deste turbilhão atual, volta a ressoar o
Evangelho para nos oferecer uma vida diferente, mais saudável e mais feliz (§ 108)
A força do
testemunho dos santos consiste em viver as bem-aventuranças e observar a regra
de comportamento do juízo final. Recomendo vivamente que se leia, com
frequência, estes grandes textos bíblicos, se reze com eles e se procure
encarná-los. Far-nos-ão bem e nos tornarão genuinamente felizes (§ 109).
Jornal "O São Paulo",
edição 3198, 9 a 15 de maio de 2018.
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