Francisco Borba Ribeiro Neto,
coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP
Entre os muitos modismos de nosso tempo, está o fascínio
pelas “inversões de valores”. Certas obras são propostas como leituras
necessárias apenas porque fazem alguma dessas inversões.
Por traz desse encanto existe mais do que um deslumbramento
inconsequente ou uma negação sistemática e irracional. Existe a percepção,
dolorosa quando encarada seriamente, de que os ideais que moldaram a vida das
gerações precedentes eram falsos, porque vividos de forma hipócrita ou porque
impotentes para trazer felicidade aos corações humanos.
A rebeldia pode ser apenas uma tentativa infantil de não
reconhecer a realidade e as responsabilidades que acarreta (mesmo quando o
rebelde é um adulto). Porém, até com mais frequência, é o grito daquele que não
quer se conformar a uma vida sem sentido, sem sabor e sem amor.
Por isso, a maioria das inversões de valores, se levadas a
sério, são como pistas deixadas por um refém do vazio que busca encontrar e ser
encontrado por um amor que dê o sentido verdadeiro a sua vida. Ou o esforço
solidário daqueles que perceberam que nossa sociedade foi construída sobre
valores desumanos e injustos (ainda que falsamente apresentados como cristãos)
e que agora procuram encontrar novos valores para construir um mundo mais
humano.
Contudo, a mais extremada inversão de valores da história
encontra-se num texto de quase vinte séculos de idade. As bem-aventuranças
evangélicas invertem todos os princípios de realização individual que nossa
inteligência poderia conceber. Consciente desse fato, o Papa Francisco as
coloca no centro de sua Exortação sobre a santidade, Gaudete et Exsultate. Quem quiser ser santo, deve buscá-las e
praticá-las. Ainda mais radical, Francisco remete à tradição que traduz o grego
do Evangelho não como “bem-aventurados” ou “abençoados”, mas como “felizes”.
Como poderá ser feliz uma pessoa pobre, mansa e não
violenta, humilhada, que chora e sofre com as injustiças e as dores do mundo,
destituída de poder e sofrendo perseguição? Num mundo que valoriza a força e a
agressividade, a riqueza, o prazer, o sucesso e o “empoderamento” individual,
uma pessoa que vive conforme a descrição das bem-aventuranças não poderia ser
feliz. Mas, é esse mesmo mundo que busca as inversões de valores, porque se
reconhece sem responda para o desejo de felicidade que habita os corações
humanos.
Curiosamente, as indicações concretas das bem-aventuranças,
em versões atenuadas e edulcoradas, povoam o imaginário de nossos tempos.
Livros de autoajuda, conselhos de psicólogos e coachings, organizações que
pregam a não-violência, e até filmes e histórias de heróis referem-se à
humildade, à empatia, à paz como condições para uma vida mais feliz, enquanto
denunciam as armadilhas da busca do poder e do sucesso a qualquer custo, do
individualismo e da ambição.
A radicalidade evangélica, contudo, brota de algo mais: a
experiência de ter recebido um amor impensável, capaz de superar a todas as
adversidades e de se comprometer com o bem de todos. Sem isso, as
bem-aventuranças se perdem no voluntarismo pelagiano denunciado pelo próprio
Papa Francisco em seu texto, ou tem que ser recortadas e edulcoradas para serem
seguidas apenas em parte –ajudando a melhorar a vida e o mundo, mas incapazes
de dar sentido à existência e força para superar todas as contradições do
mundo.
Sem a consciência dessa radicalidade, a leitura do Terceiro
Capítulo da Gaudete et Exsultate, “À
luz do Mestre”, poderá ser interessante e até reconfortante, mas a força de sua
mensagem será perdida.
Jornal "O São Paulo",
edição 3197, 3 a 8 de maio de 2018.
“À luz do Mestre”, poderá ser interessante e até reconfortante, mas a força de sua mensagem será perdida...
ResponderExcluirParabéns, um bom artigo que nos faz pensar com maior profundidade os crescentes paradoxos em nossa sociedade, o risco de uma busca superficial dessa sede de "inversão de valores", a possivelmente camuflar uma busca superficial pela Verdade.