quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Um Michelangelo brasileiro

Capela da Casa Generalícia dos Padres Assuncionistas
Roma, Itália, 2008
Hilda Souto, curadora da Associação Cláudio Pastro - Ars Sacra, e Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

Pouquíssimos brasileiros atentaram para a recente morte do artista sacro Cláudio Pastro. Contudo, daqui a 200 anos, quando a maioria das personalidades públicas de hoje for apenas um parágrafo nos livros escolares ou personagens de teses acadêmicas de história, a obra e o nome de Pastro serão muito conhecidos, vistos como uma referência de nosso tempo.
Ele foi o maior artista religioso brasileiro depois do Aleijadinho. Pouco sabemos e lembramos das intrigas políticas e das crises econômicas brasileiras da passagem do século XVIII para o XIX, mas todos conhecemos as obras feitas nessa época por Aleijadinho. A arte e a beleza superam os limites do tempo e nos carregam para a eternidade do Mistério.
Sua obra mais grandiosa é o esplêndido e colorido interior da Basílica de Aparecida. Por ela, foi comparado a Michelangelo. A Basílica é um dos maiores templos religiosos do mundo. Reúne a tradição cristã dos primeiros séculos, valorizada pelo Concílio Vaticano II, à arte latino-americana contemporânea. É um fruto emblemático de nosso tempo. É um significado semelhante ao que a Basílica de São Pedro e Michelangelo têm para a relação entre Renascimento e arte cristã.
A síntese artística e a personalidade de Cláudio Pastro despertaram muitas polêmicas. Contudo, o estudioso bem informado constata que sua obra foi rigorosamente fiel aos preceitos do Concílio Vaticano II, que preconiza uma volta às fontes do cristianismo, conforme o Documento Perfectae Caritatis de 1965. A Beleza no Cristianismo é uma pessoa: Jesus Cristo e a única razão de ser do templo cristão é a celebração do Mistério Pascal.
Produziu uma arte de culto, como a produção artística dos primeiros cristãos e das Igrejas orientais. Uma arte que está a serviço da contemplação do Mistério e de sua presença objetiva no mundo, seguindo indicações litúrgicas e não a subjetividade do artista, como os grandes ícones bizantinos.
Por oposição, a arte de devoção, que vigorou na Europa do Concilio de Trento e formou a sensibilidade religiosa brasileira, está muito mais vinculada à subjetividade do artista, ressaltando sua sensibilidade e seus dotes artísticos. Retrata Cristo e os santos buscando demonstrar a capacidade individual do artista e despertar nossas emoções individuais diante da glória ou do sofrimento dos personagens bíblicos.
A sensibilidade religiosa brasileira é tipicamente devocional, daí a dificuldade de entender a arte de Cláudio Pastro, voltada ao culto mais que à devoção. Porém, quem acompanhou sua trajetória artística percebe o entrelaçamento entre sua arte e a alma brasileira.
Do encontro entre os ícones bizantinos vistos nos mosteiros e as formas simples do artesanato popular nasceram suas primeiras obras: imagens com olhos esbugalhados (porque o santo está sempre contemplado maravilhado o Mistério) e a pele morena dos primeiros cristãos e do povo brasileiro.

Emaus, 1978
Nascia assim uma produção artística que bebia nas fontes cristãs da Patrística, no rico e complexo simbolismo do mundo oriental, mas também refletia a alma popular latino-americana e as tendências primitivistas da arte moderno do século XX. Muitos consideram suas obras muito simbólicas e cerebrais, mas o povo simples sempre aderiu com facilidade a sua beleza e cores vibrantes.
Com o tempo, suas obras foram se tornando mais delicadas e os traços mais essenciais. Repetia sempre que toda forma, traço, cor, som, movimento ou gesto genuinamente cristão é essencialmente continuidade do Mistério da Encarnação.
Jornal "O São Paulo", edição 3125, 26 de outubro a 1º de novembro de 2016.

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