Ilustração: Sergio Ricciuto Conte |
Fábio Lacerda é mestre e doutorando em Ciência Política pela USP e professor do Centro Universitário da FEI.
O Estado secular é uma conquista e deve garantir a liberdade
religiosa dos seus cidadãos. Essa foi a posição defendida pelo Papa Francisco
em entrevista ao jornal francês La Croix,
no dia 17 de maio. A mensagem foi endereçada à Europa, num momento em que a
discussão sobre se e como receber um enorme número de imigrantes ganha relevo.
A crise migratória se associa à discussão sobre a laicidade, visto que a chegada
de imigrantes provenientes em sua maioria da Síria, Afeganistão e Iraque
levanta questões sobre como os Estados nacionais europeus devem acomodar
diferentes credos.
A defesa da laicidade não é exclusiva do atual romano
pontífice. Ao contrário, está em conformidade com a visão dos últimos Papas e
ecoa o Concílio Vaticano II (1962-65). Na verdade, a defesa da autonomia entre
o poder temporal e o espiritual remonta ao menos até Santo Agostinho. É,
portanto, parte da própria tradição cristã, ainda que tenha sido obscurecida
durante considerável período da história.
Porém, Francisco também ressaltou o problema de uma
concepção restritiva de laicidade, tal como a francesa. O caráter secular de
uma ordem política deveria ter mais a ver com a garantia à liberdade de crença
(a qualquer crença ou nenhuma) do que com a exclusão da religião do debate
público. Tal exclusão parte de um ideal de cidadania que considera a religião
como uma base inadequada, seja para argumentos públicos, seja para a motivação
política. Nessa visão, cidadãos religiosos não deveriam argumentar em termos
religiosos, nem deixar suas crenças influenciarem sua atuação política.
Essa visão é questionável por várias razões. A exclusão de
argumentos religiosos se baseia na ideia liberal de que o debate público deve
ser pautado por argumentos acessíveis, razoáveis e/ou convincentes, e que
argumentos religiosos não seriam nenhuma dessas coisas. Note-se, no entanto,
que a defesa da exclusão de argumentos religiosos está longe de ser ela mesma
consensual, e certamente não é convincente para a maioria dos cidadãos
religiosos.
A exclusão da religião como motivação política é igualmente questionável.
Ela desconsidera que a religião é uma das mais potentes forças políticas do
mundo contemporâneo e que suas consequências se fazem sentir em todos os campos
do espectro político. No caso do Brasil, a condenação de políticos evangélicos
“conservadores” feita em nome da laicidade ignora a importância que outros
grupos religiosos tiveram historicamente na defesa de bandeiras “progressistas”
– tome-se, como exemplo, a luta da Comissão Pastoral da Terra pelos direitos dos
trabalhadores rurais, a oposição da CNBB ao regime militar e a mobilização de
protestantes em defesa da liberdade religiosa no início do século XX. Não se
pode fazer uma leitura seletiva da contribuição das religiões à sociedade,
reconhecendo o seu valor apenas quando elas apoiam a esse ou aquele grupo que
está no poder. Sem dúvida, a contribuição das religiões deve se dar no diálogo
com as demais forças sociais, mas também no respeito a sua especificidade.
Levar as palavras do Papa Francisco a sério significa
defender o Estado laico, mas também a liberdade dos cidadãos de defender suas
crenças na vida pública. A exclusão dos cidadãos religiosos poderia se tornar
uma profecia autorrealizável, incutindo neles a percepção de que não têm lugar
numa democracia e, por conseguinte, levando-os a descrer na possibilidade de
compatibilizar sua fé com uma sociedade secular.
Jornal "O São Paulo", edição 3112, 27 de julho a 2
de agosto de 2016.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirMuito bem escrito.
ResponderExcluirFábio, obrigado pelo artigo bem atual e bastante pertinente. Esses esclarecimentos contribuem para o avanço da fraternidade no mundo.
ResponderExcluirFábio, obrigado pelo artigo bem atual e bastante pertinente. Esses esclarecimentos contribuem para o avanço da fraternidade no mundo.
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