sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

O Tecido da Realidade

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Ulisses Barres de Almeida, doutor em Astrofísica, é pesquisador do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF/MCTI), leciona no programa internacional de pós-graduação IRAP, e membro da Associazione Euresis, dedicada ao debate entre fé e ciência.

Uma teoria física que descreva alguma lei fundamental é um instrumento intelectual de enorme potência tecnológica e cultural. Tecnológica, porque abre portas para que o homem domine um novo aspecto da realidade, cuja natureza e o controle, antes lhe escapavam. Basta pensar no desenvolvimento da termodinâmica no século XVIII, que levou a Inglaterra, berço da máquina a vapor e da revolução industrial, à hegemonia econômica e política mundiais. A mecânica quântica, o transistor e os computadores são outro exemplo, moderno, da mesma dinâmica, donde seguiu-se o Vale do Silício.
O potencial cultural não é menos evidente. A mecânica newtoniana, por exemplo, influenciou a gênese de uma concepção mecanicista do mundo na era moderna. Do mesmo modo, várias correntes de pensamento do século XX beberam da fonte escavada por Einstein e os físicos quânticos dos anos 20 e 30.
A teoria da relatividade de Einstein, em particular a Relatividade Geral, que substitui a descrição clássica de Newton sobre a gravidade é, em certo sentido, algo ainda mais especial. No pano de fundo da Física Clássica, o espaço e o tempo, e por consequência o próprio universo, eram eternos e imutáveis, um palco fixo no qual se desenrolava o drama cósmico.
A Relatividade de Einstein levou a uma nova visão do espaço e do tempo, isto é, daquilo que poderíamos chamar o próprio “tecido da realidade”. Estes dois entes fundamentais deixaram então de ser quantidades passivas, para se tornarem dinâmicos, deformando-se e mudando de aspecto (o espaço se dilata e se contrai, a passagem do tempo se acelera ou se retarda) como resposta aos eventos em curso. Além disso, o próprio tempo deixa de ser algo etéreo e se torna a quarta dimensão daquilo que chamamos hoje o espaço-tempo.
Este espaço-tempo dinâmico revolucionou a natureza de tudo, tal como entendida pela razão humana. Um espaço-tempo dinâmico abriu portas para a descoberta e entendimento do Big Bang, permitiu a descrição de um universo que se expande e que portanto evolui, sujeito à novidade, um universo no qual átomos se formam onde antes não existiam, criando galáxias e estrelas, ao redor das quais planetas dão origem à vida. O espaço-tempo dinâmico da Relatividade Geral permitiu ao cosmos, à realidade, ter uma história própria, e a história humana passa a ser um capítulo deste livro. A Relatividade Geral abriu renovado espaço para discussões filosóficas e teológicas sobre o sentido e destino do cosmos, duas palavras que só existem dentro de um conceito de história.
Ondas gravitacionais são a comprovação mais forte e direta da realidade deste “tecido dinâmico” no qual estamos imersos. Cada pedaço de matéria que se move no espaço-tempo deixa um rastro do seu passeio, ondas no espaço e no tempo, que os cientistas do experimento LIGO registraram ao medir as vibrações microscópicas produzidas por elas.
As ondas gravitacionais detectadas pelo LIGO nos trazem notícias da colisão de dois buracos negros, ocorrida há mais de 1 bilhão de anos e abrem uma nova era na Astrofísica, uma descoberta que será considerada entre as maiores do século XXI. Elas confirmam a verdade física de uma ideia. Agora podemos dizer: “O mundo é assim!”, e gozar do prazer e alegria inigualáveis de conhecer uma verdade nova, recém-revelada. Contemplamos o mistério de um universo em evolução, de uma realidade e de um futuro que não são fechados, mas abertos à novidade, que marcou toda a história cósmica até nós - como as ondas gravitacionais, que lhes são a memória, nos mostram. 
Jornal "O São Paulo", edição 3090, 24 de fevereiro de a 1º de março de 2016.

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