![]() |
Ilustração: Sergio Ricciuti Conte |
Eduardo Rodrigues da Cruz é professor titular do Departamento de Ciências da Religião da PUC-SP.
Aproveito que a sexta-feira santa ainda está presente na
nossa memória para fazer uma reflexão a respeito. Em particular, penso no que é
dito na liturgia da tarde: “Eis o lenho da Cruz, do qual pende a salvação do
mundo”. Associo essa lembrança a outra bem distinta, o fato de que muitos hoje
criticam a presença de crucifixos em locais públicos, argumentando que
representariam a adoção pelo estado laico de uma religião particular em
detrimento de outras. O contra-argumento gira usualmente em torno de se
respeitar a cultura do povo brasileiro, eminentemente católica, e que o símbolo
da cruz faria parte dessa cultura. Acho esse argumento fraco, pois tende a se
dissipar com a passagem do tempo. Os evangélicos, por outro lado, não se
posicionam contra tal uso de crucifixos, ainda que suas igrejas desvalorizem
símbolos, por que postulam que os supostos privilégios concedidos à Igreja
Católica também sejam estendidos a eles.
Gostaria de propor outra razão para a manutenção do símbolo
da Cruz nos espaços públicos, ainda que ela talvez não comova muito os corações
laicos. Meu argumento é que a cruz da qual o Cristo pende é um anti-símbolo, e
passo agora a explicar porque.
No início, a cruz era central na piedade cristã, ainda que
não como símbolo. Além dos relatos do evangelho, temos como destaque as
reflexões de São Paulo a respeito do mistério da cruz, presentes em especial em
1 Coríntios 1, 18-31 e Filipenses 2, 6 a 11. No primeiro caso, Paulo fala da
Cruz como “escândalo para os Judeus [representantes da lei] e loucura para os
pagãos [detentores da sabedoria]”. O versículo 20 pergunta, diante da Cruz,
“Onde está o sábio, onde está o doutor da lei, onde está o raciocinador desse
século?”. Entretanto, principalmente a partir de Constantino, o símbolo da Cruz
surge para muitos como um de vitória e poder, e aos poucos vai sendo assumido
como o símbolo por excelência do cristianismo. Com esse símbolo, muita
violência e atos de poder se realizaram no mundo.
Os ilustrados do sec. XVIII, dos quais resultam os atuais
laicistas, destacaram com força esse aspecto da cruz (com c minúsculo),
e rejeitaram-na. Mesmo quando aceita, a cruz se tornou para eles um símbolo de
uma fé específica, um entre tantos, sem nenhum valor de destaque, e por aí
compreendemos a situação atual. Mas será que é o caso de nos resignar diante da
situação?
Responderei com dois exemplos. Primeiro o de um tribunal que
sustente uma Cruz na parede principal. Enquanto a justiça dos homens é feita,
pende do lenho o Crucificado, que nos relembra de quanto o direito, mesmo no
que tem de melhor, realiza e não realiza a justiça que todos aguardamos. “Algo
falta”, mesmo quando se cumpriu o processo legal. Mas “A maldição da lei” de
São Paulo (Gálatas 3, 13) é levantada quando o Cristo é pregado no Madeiro—o
símbolo de maldição torna-se o símbolo de salvação. No segundo exemplo, temos o crucifixo que
pende da parede do Congresso. Novamente, o crucificado contempla tudo o que
ocorre no plenário, toda a ambivalência e amoralidade da política, mesmo entre
os melhores congressistas. Como já se fala nos evangelhos, o poder “desse
mundo” está ligado a interesses inconfessáveis, e mesmo quando o político busca
a justiça (como na visão idealizada de Pilatos diante de Jesus) termina por
perpetuar a obra do diabo.
Assumindo-se que todo símbolo remeta ao poder espiritual que
sacraliza o que é feito à sua sombra, a Cruz surge como anti-símbolo. Assim, ela
pode ser tomada como símbolo universal, não ligado a uma religião particular.
Diante da Cruz, a iniquidade humana se revela e, no mesmo ato, também é
redimida.
Jornal "O São Paulo", edição 3096, 6 a 12 de abril
de 2016.
Parabéns professor , adorei o q escreveu.
ResponderExcluir