segunda-feira, 11 de abril de 2016

A Cruz como Anti-Símbolo

Ilustração: Sergio Ricciuti Conte
Eduardo Rodrigues da Cruz é professor titular do Departamento de Ciências da Religião da PUC-SP. 

Aproveito que a sexta-feira santa ainda está presente na nossa memória para fazer uma reflexão a respeito. Em particular, penso no que é dito na liturgia da tarde: “Eis o lenho da Cruz, do qual pende a salvação do mundo”. Associo essa lembrança a outra bem distinta, o fato de que muitos hoje criticam a presença de crucifixos em locais públicos, argumentando que representariam a adoção pelo estado laico de uma religião particular em detrimento de outras. O contra-argumento gira usualmente em torno de se respeitar a cultura do povo brasileiro, eminentemente católica, e que o símbolo da cruz faria parte dessa cultura. Acho esse argumento fraco, pois tende a se dissipar com a passagem do tempo. Os evangélicos, por outro lado, não se posicionam contra tal uso de crucifixos, ainda que suas igrejas desvalorizem símbolos, por que postulam que os supostos privilégios concedidos à Igreja Católica também sejam estendidos a eles.
Gostaria de propor outra razão para a manutenção do símbolo da Cruz nos espaços públicos, ainda que ela talvez não comova muito os corações laicos. Meu argumento é que a cruz da qual o Cristo pende é um anti-símbolo, e passo agora a explicar porque.
No início, a cruz era central na piedade cristã, ainda que não como símbolo. Além dos relatos do evangelho, temos como destaque as reflexões de São Paulo a respeito do mistério da cruz, presentes em especial em 1 Coríntios 1, 18-31 e Filipenses 2, 6 a 11. No primeiro caso, Paulo fala da Cruz como “escândalo para os Judeus [representantes da lei] e loucura para os pagãos [detentores da sabedoria]”. O versículo 20 pergunta, diante da Cruz, “Onde está o sábio, onde está o doutor da lei, onde está o raciocinador desse século?”. Entretanto, principalmente a partir de Constantino, o símbolo da Cruz surge para muitos como um de vitória e poder, e aos poucos vai sendo assumido como o símbolo por excelência do cristianismo. Com esse símbolo, muita violência e atos de poder se realizaram no mundo.
Os ilustrados do sec. XVIII, dos quais resultam os atuais laicistas, destacaram com força esse aspecto da cruz (com c minúsculo), e rejeitaram-na. Mesmo quando aceita, a cruz se tornou para eles um símbolo de uma fé específica, um entre tantos, sem nenhum valor de destaque, e por aí compreendemos a situação atual. Mas será que é o caso de nos resignar diante da situação?
Responderei com dois exemplos. Primeiro o de um tribunal que sustente uma Cruz na parede principal. Enquanto a justiça dos homens é feita, pende do lenho o Crucificado, que nos relembra de quanto o direito, mesmo no que tem de melhor, realiza e não realiza a justiça que todos aguardamos. “Algo falta”, mesmo quando se cumpriu o processo legal. Mas “A maldição da lei” de São Paulo (Gálatas 3, 13) é levantada quando o Cristo é pregado no Madeiro—o símbolo de maldição torna-se o símbolo de salvação.  No segundo exemplo, temos o crucifixo que pende da parede do Congresso. Novamente, o crucificado contempla tudo o que ocorre no plenário, toda a ambivalência e amoralidade da política, mesmo entre os melhores congressistas. Como já se fala nos evangelhos, o poder “desse mundo” está ligado a interesses inconfessáveis, e mesmo quando o político busca a justiça (como na visão idealizada de Pilatos diante de Jesus) termina por perpetuar a obra do diabo.
Assumindo-se que todo símbolo remeta ao poder espiritual que sacraliza o que é feito à sua sombra, a Cruz surge como anti-símbolo. Assim, ela pode ser tomada como símbolo universal, não ligado a uma religião particular. Diante da Cruz, a iniquidade humana se revela e, no mesmo ato, também é redimida.

Jornal "O São Paulo", edição 3096, 6 a 12 de abril de 2016.

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