Ilustração: Sergio Ricciuto Conte |
Gustavo Adolfo P. D. Santos, PhD em Teoria Política (Catholic University of America), gerente de programas na Oficina Municipal.
Na democracia fundada no Estado de direito, a proteção da
liberdade de consciência e a tolerância das diferenças são princípios centrais
para o ordenamento das relações entre indivíduos e grupos. A luta contra os
vários tipos de discriminação, que se traduzem numa negação do acesso de
determinados indivíduos a certos direitos e condições que em princípio deveriam
ser universalmente disponíveis, é uma expressão da defesa desses valores.
O desenvolvimento do indivíduo na liberdade e na
autoafirmação, no entanto, não se dá num vácuo. Como ser essencialmente social,
a pessoa existe e se realiza no contexto de relações, normas e tradições
compartilhadas. O sociólogo americano Robert Nisbet (1913-1996) alertou sobre a
progressiva ênfase posta sobre a relação entre o indivíduo portador de direitos
e o Estado garantidor dos mesmos, que destitui os agrupamentos intermediários de
suas funções e de sua autoridade social.
A vida concreta não
acontece, porém, num espaço abstrato de disputa por direitos individuais, mas
em famílias, comunidades de crença, associações. A verdade que eu busco,
encontro e vivo nunca é totalmente minha propriedade – eu a devo a uma cadeia
de relações históricas e sociais. Nestas relações e comunidades, muitas vezes
os participantes não ocupam todos a mesma posição, e se submetem a normas que,
se limitam a gama de escolhas individuais possíveis, possibilitam a concretização
de um sentido da vida que transcende a individualidade isolada. As relações
familiares, ou as baseadas no compartilhamento da fé, são exemplos dessa
realidade.
No Brasil, os jornais recentemente noticiaram polêmicas em
torno da introdução de conteúdos relativos à chamada ideologia de gênero nos
currículos escolares do ensino fundamental e médio. A visão tradicional da
complementaridade entre homem e mulher e o direito da criança ao conhecimento e
à criação por seus progenitores biológicos na família vai assumindo, nesse
contexto, ares de limitação dos direitos individuais – não os das crianças, é
claro, que não são consideradas nesses raciocínios tipicamente individualistas.
Pode chegar o ponto em que afirmar o caráter privilegiado do casamento
tradicional para a criação dos filhos será considerado um ato discriminatório e
ilegal.
Por detrás dessas e outras incursões do Estado na vida
social e comunitária das pessoas, pode-se encontrar uma concepção que vê cada
pessoa como radicalmente livre para definir a própria realidade – e as práticas
correspondentes – nas mais variadas dimensões. Essa autonomia radical não teria
limites, a não ser a interferência na vida e no bem estar alheios (o famoso
“princípio da injúria”, definido por John Stuart Mill).
No entanto, como lembrou S. João Paulo II, a democracia não
pode abrir mão da referência a uma “reta concepção da pessoa humana”. Isso
significa, entre outras coisas, respeitar o espaço e a autoridade das diversas
comunidades éticas, sejam elas laicas ou religiosas, em que o ser humano se
constrói.
Entre a defesa dos direitos e da liberdade individual e o
respeito à autoridade e autonomia das comunidades éticas nas quais todo
indivíduo se desenvolve, um caminho de equilíbrio e razoabilidade precisa ser
encontrado, sob pena de ferir os próprios indivíduos cujos direitos o Estado
moderno tem como função garantir.
Jornal "O São Paulo", edição 3108, 30 de junho a 5
de julho de 2016.
Gostei da reflexão! Claro que há muitas questões decorrentes a serem debatidas e aprofundadas. Como afirma o autor, temos ainda um grande desafio de encontrarmos juntos um caminho de equilíbrio e razoabilidade não somente nesta questão da garantia dos direitos sociais e individuais... mas em tantas outras questões candentes em nossas sociedades contemporâneas!
ResponderExcluirObrigado pelo comentário!
ResponderExcluirMe parece que uma chava para enfrentar esses desafios é ampliar a discussão, a partir da afirmação dos direitos individuais, para reconhecer as teias ou as redes de interdependência e co-responsabilidade em que todos nós vivemos.