quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Herança de Dom José Maria Pires

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, teólogo, é o atual Vigário Geral da Congregação dos Missionários de São Carlos (scalabrinianos). Realizou trabalhos pastorais em favelas, cortiços e no interior do Estado com os migrantes cortadores de cana. Foi diretor do CEM-Centro de Estudos Migratórios de São Paulo, assessor do Setor Pastorais Sociais da CNBB, Superior da Província São Paulo dos Padres Scalcabrinianos.

Que nos deixa Dom José Maria Pires? Pouco mais do que uma memória de gigante e, ao mesmo tempo, um estridente e respeitoso silêncio de eternidade. Não obstante o silêncio solene e reverente, atrevo-me a rabiscar algumas palavras sobre essa figura de raízes, tronco, ramos, folhas e frutos. Um homem que se assemelhava a uma árvore platantada à beira de um riacho, como diz o salmo número um.
Comecemos com as raízes. Desde logo convém dizer que Dom José era um homem de profundas raízes. Raízes que, vindas da mãe África, souberam nutrir-se dos ingredientes encontrados do outro lado do Atlântico. Tinham cor negra, som de música e uma versatilidade de dança. No “terreiro da diocese”, moviam-se ao som do tambor que vem do centro da terra, tal era a integridade com que assumiu sua negritude. Primeiro o chamaram de Dom Pelé, depois preferiu que o chamassem de Dom Zumbi, devido à luta deste último pela libertação do seu povo escravo. Amou o povo brasileiro, formado por três raças, sem jamis deixar de amar seus antepassados.
Possuía um tronco vigoroso de pastor, de profeta e de sábio. As raízes o alimentavam a partir do solo úmido e escuro, onde o povo sofre e luta, reza e espera. Nos tempos sombrios da ditadura militar, foi marcante sua “opção preferencial” pelos pobres e oprimidos, juntamente com a CNBB. Sua profecia, mansa e robusta a um só tempo, fazia tremer os latifundiários das dioceses de Araçuaí e da Paraíba. Suas palavras, sempre iluminadas por um sorriso, adquiriram uma eloquente veemência. A sabedoria vinha-lhe de um ouvido aberto ao clamor de todo rebanho, com grande respeito pela alteridade. Sabia ler no rosto das pessoas a lágrima e o riso, “as alegrias e esperanças, tristezas e angústias” (GS, n. 1).
Os ramos eram braços e mãos enérgicos, sem ser grosseiros ou brutais. Uma energia não impetuosa ou precipitada, mas oportuna e pontual. Tanto quanto estava pronto a abençoar as vítimas e os injustiçados da história, também era capaz de golpear os lobos com sua autoridade de pastor. Quando o conheci na Paraíba, estava justamente em meio a um conflito entre trabalhadores rurais sem terra, de um lado, e fazendeiros inescrupulosos, de outro. Sua figura se agigantava, seja na defesa dos primeiros, quanto na advertência aos segundos. Uma e outra fundamentadas na misericórdia evangélica. Todos os anos, por ocasião da Romaria da Terra, caminhava toda a noite ao lado dos peregrinos.
Quanto às folhas e frutos dessa árvore, basta relembrar sua sombra de pai/pastor, ou suas ações em prol dos famintos e sedentos de justiça. Tive a alegria de conhecer vários agentes de pastoral, e outros tantos trabalhadores e trabalhadoras, que se viram livres da perseguição ou da prisão devido à sua sombra. Acolhia-os e protegia-os com a peregrinos errantes que têm necessidade de uma tenda e de repouso, lembrando o espisódio de Abraão no Carvalho de Mambré (Gn 18,1-10). Inumeráveis, por outro lado, são seus projetos, gestos e ações em favor da justiça e da paz.

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