sexta-feira, 26 de agosto de 2016

O Papa e a ideologia de gênero

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Francisco Borba Ribeiro Neto, 
coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

No encontro com os bispos durante a JMJ, na catedral de Cracóvia, em 27 de junho, Papa Francisco fez um duro pronunciamento contra a ideologia de gênero: “Hoje às crianças – às crianças! – na escola, ensina-se isto: o sexo, cada um pode escolhê-lo [...] Isto é terrível”.
Sempre que o Papa faz uma declaração desse tipo, num discurso ou num documento, de forma mais contundente ou mais contida, vemos um monte de artigos dizendo “estão vendo, ele condena a ideologia de gênero” e outro monte dizendo coisas como “não é bem assim” ou “o Papa não entendeu bem a questão”. Se a declaração fosse no sentido da acolhida aos homossexuais, também frequente nas palavras do Papa, veríamos uma coisa semelhante, só que com posições invertidas. Com isso, o leitor desavisado tem a impressão de que o Papa não tem ideias muito claras ou que joga para os dois lados.
Na verdade, a posição de Francisco é bastante clara. O seu método, contudo, é estranho à nossa lógica – e por isso nos atrapalhamos. Contrapomos noções ideológicas a outras que consideramos verdadeiras, confiando que nossos argumentos mostrarão a falsidade ideológica dos que pensam diferente. No fundo, são ideias contrapostas a ideias. Umas estão mais perto da verdade que outras, mas permanecem como ideias em confronto. Já para Francisco, as ideologias não são vencidas por ideias, mas por fatos. No caso, pelo fato da acolhida.
Vejamos uma situação concreta, infelizmente cada vez mais comum em nossas escolas. O adolescente está confuso, acredita ter uma inclinação que lhe parece homoafetiva. Torna-se cada vez mais arredio e depressivo. Começa a sofrer bullying dos colegas e junta-se cada vez mais a outros outsiders como ele. Os pais desesperados (pois são daqueles que ainda se preocupam com os filhos) vão procurar ajuda.
O orientador da escola está numa situação difícil: mesmo que conhecesse todos os aspectos do problema pessoal daquele adolescente, não poderia dar uma resposta que resolvesse imediatamente a situação. Explicações teóricas, mesmo que corretas, por si só não mudam comportamentos. As causas do problema e suas consequências podem ser muitas. Uma indicação errada pode piorar as coisas. São vários aspectos a serem considerados: a felicidade e o futuro do jovem, todo o seu contexto familiar, as relações que se criaram no ambiente escolar, as ideologias vinculadas.
É bem verdade que o cristianismo tem uma resposta certeira para o problema: a castidade. Só que ela é muito mais que abstinência sexual. A castidade é viver toda a sua afetividade e sexualidade como dons recebidos, que não nos pertencem ainda que nos encham de alegria. A abstinência é uma decisão, mas a castidade é um caminho. Não serve como resposta pronta e esquemática.
O passo que a realidade pede ao orientador de nosso exemplo é o da acolhida, incondicional e amorosa, ao jovem, a sua família, a seus amigos outsiders e mesmo aos colegas que praticaram bullying. A experiência de ser amado é o grande fator libertador, capaz de ajudar cada um a encontrar o caminho justo, a recomeçar quando tropeçar, não se deixar dominar pela ideologia.
Ter as ideias no lugar certo é fundamental para que a força da acolhida não se perca na conivência, para ir encontrando o melhor caminho, um passo depois do outro. Mas a realidade da acolhida tem que ter precedência sobre as ideias, para que a própria verdade não se torne mais uma ideologia – ainda que com sinal contrário à da ideologia de gênero.
Esse é o método que Francisco procura nos mostrar. Um método onde a misericórdia ilumina a realidade e submete as ideias – e não o contrário.
Jornal "O São Paulo", edição 3116, 24 a 30 de agosto de 2016.

3 comentários:

  1. Excelente texto. Claro, direto ao ponto, esclarecedor, acolhedor e firme. Equilibrado e harmônico como a vida, arrisco a dizer, como o bom Deus. Republiquei.

    ResponderExcluir
  2. Gostei muito do artigo. Seria muito bom e útil se você pudesse aprofundar esse tema sem restrição de espaço e com seus diversos aspectos. Com esperança, Cecília

    ResponderExcluir
  3. Acolher e esclarecer são inseparáveis. Jesus acolheu os pecadores mas não deixou de dizer que eles estavam doentes e precisavam de medico.

    ResponderExcluir