quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Antropologia positiva: berço da sociabilidade.

Rafael Mahfoud Marcoccia é professor do Centro Universitário FEI.

No último artigo, abordei como as concepções estadista e liberal veem as funções da sociedade civil à luz de uma mesma antropologia negativa. Agora, pretendo mostrar como a Igreja parte de outro ponto.
  Os papas João Paulo II e Bento XVI iniciaram um debate importante, ligando o tema das deficiências do Estado e do mercado com um renovado entendimento antropológico do homem. Em Centesimus annus, João Paulo II afirma: “O indivíduo hoje é, muitas vezes, sufocado entre dois polos representativos do Estado e do mercado. Às vezes, parece que ele existe apenas como produtor e consumidor de mercadorias, ou como objeto da administração do Estado. As pessoas desapercebem o fato de que a vida em sociedade não tem nem o mercado nem o Estado como seu propósito final, visto que a própria vida tem um valor único ao qual tanto o Estado como o mercado devem servir” (n. 49).
Já em Deus caritas est, Bento XVI diz que: “O Estado, que forneceria de tudo, absorvendo tudo em si mesmo, se tornaria por fim uma mera burocracia, incapaz de garantir exatamente aquilo de que a pessoa sofredora — na verdade, toda pessoa — precisa: ou seja, interesse pessoal amoroso. Não precisamos de um Estado que regule e controle tudo, mas de um Estado que, em harmonia com o princípio da subsidiariedade, reconhece e apoia as iniciativas surgidas das diferentes forças sociais e combina a espontaneidade com a aproximação dessas necessidades” (n. 28).
Partindo de uma antropologia que reafirma completamente a dignidade humana, o filósofo Luigi Giussani ressalta que o que determina o homem são as exigências fundamentais (desejo de bem, justiça, verdade) que guiam suas ações - pessoais e sociais – e, portanto, estão na raiz de toda ação econômica, social e política. “O desejo é como uma fagulha com a qual se acende o motor do homem e então ele se põe a buscar o pão e a água, o trabalho, uma poltrona mais cômoda e uma morada mais descente, interessa-se por saber como é que alguns têm tanto e outros não têm nada. A partir daí, a pessoa se torna sujeito ativo e verdadeiro da história” (O eu, o poder, as obras. São Paulo: Cidade Nova, 2001, p. 167). São também essas exigências fundamentais que fazem com que as pessoas se reúnam ao redor de ideais e formem grupos sociais. “Eles encarnam as exigências, imaginando e criando estruturas operacionais detalhadas e oportunas que são chamadas de ‘trabalhos’, ‘novas formas de vida para o homem’, como as definiu João Paulo II” (Idem, p. 243).
É claro que esses grupos não são lugares idílicos e “puros”, livres do erro ou do egoísmo humano. Mas eles são espaços para a redescoberta das necessidades estruturais humanas, onde uma educação contínua ajuda a todos a crescer, a alcançar uma percepção de si mesmo e da realidade, para educar o próprio desejo. A reconciliação entre os interesses individuais e o bem comum não ocorre por meio de coerção e repressão, como no modelo estatista, mas por meio de contínua educação, a fim de experimentar a correspondência entre desejo e realidade. E isso acontece em termos operativos, não dialéticos.
Assim, os interesses dos indivíduos podem sim ser aliados ao bem comum; e é essa aliança o coração das ações políticas e econômicas que conduzem a uma democracia real e a um mercado que não é sufocado por um governo com atuação de cima para baixo.
A subsidiariedade, que parte de uma antropologia positiva e de forças sociais, permite correções virtuosas ao liberalismo e ao estatismo. Assunto para meu próximo artigo.
Jornal "O São Paulo", edição 3182, 17 a 23 de janeiro de 2018.

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