sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Que tipo de ser humano?

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Klaus Brüschke, é membro do movimento dos Focolares, ex-publisher da Editora Cidade Nova, articulista da revista Cidade Nova.

Às manhãs, quando lê o jornal, você não fica com a impressão de que o mundo está dando uma marcha à ré? Novamente negros são mortos pela polícia estadunidense, desencadeando protestos e mais mortes, quando em tese a igualdade racial já deveria ser ponto pacífico. O candidato a presidente daquele país, bem situado nas pesquisas de opinião, defende muros na fronteira com o México e proibição de entrada de muçulmanos no EUA, dentre outras promessas congêneres. O Reino Unido retira-se da Comunidade Europeia, enquanto que esta não logra compartilhar responsabilidades sobre a sorte dos refugiados. Uma “terceira guerra mundial”, combatida por pedaços, segundo o Papa Francisco, corre solta… Por aqui, Mercosul e Unasul empacam nos embates ideológicos e, no País, fatos e versões encobrem o jogo pelo poder político e econômico, e parte da sociedade se mobiliza para que nas escolas não se ensine mais a pensar…
Não lhe vem à mente a pergunta: onde estarão os profetas e as profecias a nos mostrar o caminho? Onde foram parar as utopias que gerações acalentaram e tentaram realizar? O sonho acabou?
Esse novo “mal-estar civilizatório” (cada época teve o seu) precisa ser tratado considerando-se suas múltiplas facetas e camadas. Creio que dentre as camadas mais profundas esteja o esgotamento do projeto da Modernidade e, com ele, o esgotamento de um modelo de ser humano.
A modernidade “descobriu” o indivíduo, o eu, aquele ser único e irrepetível (e objeto do amor infinito de Deus – acreditamos nós, cristãos). Assim foi possível reconhecer a cada ser humano sua dignidade, sua cidadania, seu ser sujeito de direitos inalienáveis. Sem essa “descoberta” do indivíduo não teríamos democracia, nem justiça, como a concebemos hoje, nem tampouco solidariedade, que indo além da empatia e da compaixão, reconhece nos excluídos da sociedade sua igualdade e liberdade fundamentais. Essa concepção do indivíduo, contudo, também levou à explosão de diversidades e, com ela, à fragmentação da realidade e à “liquefação” da sociedade (Bauman). Na sociedade de consumo, levou ao narcisismo: não consigo enxergar mais nada que não seja eu e amo pessoas e coisas ao meu redor como projeções de mim mesmo.
Essa antropologia – importante, repito, apesar de suas contradições – não dá conta da realidade atual e dos desafios que a história nos impõe. Faz-nos temer a diversidade e, em última análise, faz-nos temer a nós mesmos, levando-nos a buscar refúgios seguros – em nossas casas-casulos, em nossos templos intimistas, em nossas ideias preconcebidas e até intolerantes.
O passo a ser feito pela cultura contemporânea é descobrir a pessoa, o ser humano em relação. Que se relaciona com o Transcendente, com o próximo, consigo mesmo, e igualmente com a natureza e com as coisas. “No princípio é a relação”, afirmava o pensador austríaco Martin Buber.
Para nós cristãos, o atual “mal-estar civilizatório” representa uma oportunidade. Nossa contribuição pode ser compreender – à luz desses sinais dos tempos – o que significa que Deus é Trindade e é amor, portanto, que é relação amorosa. Compreender, nos limites da condição humana e na abertura da sabedoria divina, a dinâmica trinitária e assim – como já fazem alguns pensadores – refletir sobre uma “antropologia trinitária” (o ser humano que se relaciona, por amor, na diversidade e na unidade) que se traduza, consequentemente, em novas práticas políticas, sociais, econômicas, enfim, culturais.
Talvez seja essa a profecia que os atuais tempos esperam…
Jornal "O São Paulo", edição 3114, 10 a 16 de agosto de 2016.

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