Ilustração: Sergio Ricciuto Conte |
Klaus Brüschke, é membro do movimento dos Focolares, ex-publisher da Editora Cidade Nova, articulista da revista Cidade Nova.
Às manhãs, quando lê o jornal, você não fica com a impressão
de que o mundo está dando uma marcha à ré? Novamente negros são mortos pela
polícia estadunidense, desencadeando protestos e mais mortes, quando em tese a
igualdade racial já deveria ser ponto pacífico. O candidato a presidente
daquele país, bem situado nas pesquisas de opinião, defende muros na fronteira
com o México e proibição de entrada de muçulmanos no EUA, dentre outras
promessas congêneres. O Reino Unido retira-se da Comunidade Europeia, enquanto
que esta não logra compartilhar responsabilidades sobre a sorte dos refugiados.
Uma “terceira guerra mundial”, combatida por pedaços, segundo o Papa Francisco,
corre solta… Por aqui, Mercosul e Unasul empacam nos embates ideológicos e, no
País, fatos e versões encobrem o jogo pelo poder político e econômico, e parte
da sociedade se mobiliza para que nas escolas não se ensine mais a pensar…
Não lhe vem à mente a pergunta: onde estarão os profetas e
as profecias a nos mostrar o caminho? Onde foram parar as utopias que gerações
acalentaram e tentaram realizar? O sonho acabou?
Esse novo “mal-estar civilizatório” (cada época teve o seu)
precisa ser tratado considerando-se suas múltiplas facetas e camadas. Creio que
dentre as camadas mais profundas esteja o esgotamento do projeto da Modernidade
e, com ele, o esgotamento de um modelo de ser humano.
A modernidade “descobriu” o indivíduo, o eu, aquele ser
único e irrepetível (e objeto do amor infinito de Deus – acreditamos nós,
cristãos). Assim foi possível reconhecer a cada ser humano sua dignidade, sua
cidadania, seu ser sujeito de direitos inalienáveis. Sem essa “descoberta” do
indivíduo não teríamos democracia, nem justiça, como a concebemos hoje, nem
tampouco solidariedade, que indo além da empatia e da compaixão, reconhece nos
excluídos da sociedade sua igualdade e liberdade fundamentais. Essa concepção
do indivíduo, contudo, também levou à explosão de diversidades e, com ela, à
fragmentação da realidade e à “liquefação” da sociedade (Bauman). Na sociedade
de consumo, levou ao narcisismo: não consigo enxergar mais nada que não seja eu
e amo pessoas e coisas ao meu redor como projeções de mim mesmo.
Essa antropologia – importante, repito, apesar de suas
contradições – não dá conta da realidade atual e dos desafios que a história
nos impõe. Faz-nos temer a diversidade e, em última análise, faz-nos temer a
nós mesmos, levando-nos a buscar refúgios seguros – em nossas casas-casulos, em
nossos templos intimistas, em nossas ideias preconcebidas e até intolerantes.
O passo a ser feito pela cultura contemporânea é descobrir a
pessoa, o ser humano em relação. Que se relaciona com o Transcendente, com o
próximo, consigo mesmo, e igualmente com a natureza e com as coisas. “No
princípio é a relação”, afirmava o pensador austríaco Martin Buber.
Para nós cristãos, o atual “mal-estar civilizatório” representa
uma oportunidade. Nossa contribuição pode ser compreender – à luz desses sinais
dos tempos – o que significa que Deus é Trindade e é amor, portanto, que é
relação amorosa. Compreender, nos limites da condição humana e na abertura da
sabedoria divina, a dinâmica trinitária e assim – como já fazem alguns
pensadores – refletir sobre uma “antropologia trinitária” (o ser humano que se
relaciona, por amor, na diversidade e na unidade) que se traduza,
consequentemente, em novas práticas políticas, sociais, econômicas, enfim,
culturais.
Talvez seja essa a profecia que os atuais tempos esperam…
Jornal "O São Paulo", edição 3114, 10 a 16 de
agosto de 2016.
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