segunda-feira, 3 de julho de 2017

Uma justa compreensão da laicidade

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Daniela Jorge Milani é mestre e doutoranda em Filosofia do Direito na PUC-SP e advogada em São Paulo.

Estado laico não é estado antirreligioso ou ateu, não é hostil à religião ou censor de práticas religiosas em espaços públicos, não seleciona entre argumentos que podem e não podem ser debatidos publicamente, não exclui, não ergue muros!
São muitos os equívocos na compreensão deste instituto político-jurídico.
Primeiro, cabe dizer que não foi Cristo ou a Igreja que deu origem a um Estado fundido com a religião. Na verdade, desde a Antiguidade clássica era a religião que legitimava o poder familiar e civil. O poder temporal decorria do poder religioso. Não havia separação.
No Egito o Faraó era considerado o próprio Deus, portanto a obediência lhe era devida nesta condição. Nas famílias e tribos da Grécia e Roma antigas os primogênitos e herdeiros das fórmulas religiosas sagradasé que se tornavam seus chefes. Cidades eram fundadas a partir de um ritual religioso. Significa dizer que não havia divisão entre poder espiritual e civil, o poder era uno.
Jesus de Nazaré foi subversivo nessa questão, pois ao dizer: “A César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, retira do imperador parte de seu poder. Foi uma completa mudança de paradigma.
A Idade Média se caracterizou pela presença da Igreja na sociedade, tendo o Papa como representante de Deus na terra. Porém, a Igreja também sofria com esta situação, pois o ideal de submissão do poder temporal ao espiritual se transformou em ingerência do poder do império sobre questões internas da Igreja, reis nomeando e destituindo bispos e papas conforme interesses políticos. Evidente que isto gerou enormes abusos. Viu-se também o fenômeno do cesaropapismo, em que reis pretendiam anexar a seu poder civil o poder espiritual com o qual Cristo havia investido sua Igreja, pretendendo ser eles próprios os representantes de Deus na terra.
O início da Igreja no Brasil sofreu as mesmas interferências indevidas. O Estado era católico, confessional, isto é, a Igreja era completamente submetida à Coroa Portuguesa. Não havia autonomia dos bispos e padres. Diversos direitos eram restringidos a cidadãos não católicos.
Ao contrário do que se possa imaginar, a separação entre os poderes temporal e espiritual é totalmente aceito pela Igreja.
A laicidade do Estado garante não apenas a autonomia das esferas civil e religiosa, mas a igualdade de direitos entre os cidadãos independente de sua crença. Não significa, todavia, hostilidade em relação à religião ou supressão do âmbito público e da política de manifestações religiosas, da expressão dos cidadãos religiosos e das argumentações motivadas por crença em Deus. Esta seria uma visão ideológica de laicidade, parcial, , não neutra.
O verdadeiro Estado laico reconhece a liberdade de crença e não crença, acolhe e congrega, favorece o diálogo e a cooperação, faz parcerias em prol do bem comum, não nega acesso ao ambiente público e político por motivos religiosos a qualquer cidadão. Afinal a religião está presente com força na pós-modernidade, havendo quem fale em pós-secularização, isto é, na persistência da religiosidade e da fé, não obstante a promessa de libertação racionalista do Iluminismo e do cientificismo.
A diferenciação é imprescindível para não nos tornarmos um país laicista, excludente, que apenas tolera a religião e vê o cidadão religioso como alguém de menor importância e, em seu extremo, chega a proibi-lo de utilizar símbolos de sua religião em escolas, empresas e repartições públicas, como tem ocorrido na França.
Jornal "O São Paulo", edição 3157, 28 de junho a 4 de julho de 2017.

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