quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

‘É um engano achar que o aborto resolve os problemas de saúde pública’

O aumento da proliferação do zika vírus a e sua possível ligação com os crescentes números de casos de microcefalia têm gerado grande debate. A gravidade da situação levou a Organização Mundial da Saúde a declarar a microcefalia e o zika como uma emergência internacional. Nos últimos dias, grupos que defendem o “direito” das mulheres em optar pelo aborto anunciaram que pretendem levar o tema ao Supremo Tribunal Federal (STF). A discussão tem tomado várias esferas da sociedade. A Igreja, fiel à Cristo e promotora dos direitos humanos, sempre se coloca a favor da vida. Permitir o aborto é ir contra o 5º mandamento da Lei de Deus – “Não matarás” – e é uma violação ao primeiro e mais fundamental direito humano: o de viver. Nesta entrevista ao O SÃO PAULO, Dalton Ramos, 57, professor titular de Bioética na Universidade de São Paulo e membro da Pontifícia Academia Pro Vita, do Vaticano, responde a algumas questões sobre o tema.

O SÃO PAULO – A Igreja é a favor da vida e contra o aborto. Como a posição da Igreja tem repercutido nos meios científicos e acadêmicos? O que falta para os fiéis conhecerem e formarem opinião de acordo como o Magistério?
Dalton Ramos - Creio que o melhor é sempre afirmarmos o positivo, isto é, o valor da vida qualquer que seja a situação em que a pessoa se encontre: saudável ou doente. Daí decorre apontar a incoerência que representa o aborto: uma morte provocada que gera vítimas e que não resolve problema algum, aliás, cria outros; é somar sofrimento ao sofrimento. Assim posto, cientistas honestos e competentes, quaisquer que sejam suas crenças, estarão sempre em concordância com a Lei Natural e também com os ensinamentos da Igreja.

Qual é a possibilidade de o Judiciário permitir que o aborto no caso de microcefalia seja executado? Quais as consequências dessa decisão?
Trágicas. Porque quando se promulgam leis ou sentenças judiciárias contrárias à vida, se favorece um clima cultural em que o que é um absurdo parece ser natural, razoável, correto. Mesmo que muitos, mais atentos, tenham claro a “injustiça” da lei, para muitos outros pode parecer que, então, “se pode fazer dessa forma”. No aspecto jurídico até se poderá fazer, se a lei ou o Judiciário autorizarem, mas a lei autorizar não elimina o significado moral do gesto. E pior, não elimina as trágicas consequências para as vítimas: a mãe e a criança.

As ações do Executivo têm sido eficazes no combate às doenças causadas pelo Aedes aegypti? Regulamentar o aborto criaria mais um problema, o da demanda dessa prática nos serviços públicos?
É um engano achar que o aborto resolve os problemas de saúde pública. Muda o foco. Se permitimos, como achamos razoável, o nascimento de crianças com microcefalia, isto vai gerar demandas no tratamento e acompanhamento dessas crianças não só em termos de assistência à saúde, mas também em educação, seguridade social etc. Se, tragicamente, se autoriza o aborto, essas demandas não existirão, mas teremos outras, como o acompanhamento das mães vítimas do aborto. E essas serão tão complexas e caras, se não mais, que as decorrentes da assistência às criançascom microcefalia. Esse discurso de economia é um absurdo.

Dados ditos científicos sobre o assunto são citados a todo instante. Afinal, isso ajuda ou atrapalha no debate? Somente conhecer esses dados é o suficiente para uma postura ética e justa?
Esse é um ponto muito importante. A pesquisa científica e a difusão do conhecimento científico são, à priori, importantes e necessários. Só que é preciso haver um compartilhar de informações honesto. Honesto, no sentido de que não deve ser empregado com o objetivo de criar opinião em prol de uma tendência ou pior, um instrumento de poder for mais forte sobre o mais fraco. Agora bem recentemente, na Mensagem do Santo Padre, Francisco, para a Quaresma de 2016, mais uma vez o Papa aborda um tema que ele retoma com insistência, que é o abuso do uso das tecnologias ou tecnociências. Não que o que a ciência produz seja ruim, mas corre-se o risco de um “delírio de onipotência, no qual ressoa sinistramente aquele demoníaco ‘sereis como Deus’ (Gn 3,5), que é a raiz de qualquer pecado. Tal delírio pode assumir também formas sociais e políticas, como mostraram os totalitarismos do século XX e mostram hoje as ideologias do pensamento único e da tecnociência que pretendem tornar Deus irrelevante e reduzir o homem à massa possível de instrumentalizar”. Aí está a raiz da eugenia. Um delírio. Vou usar a ciência para gerar pessoas do jeitinho que eu quero. Melhor dizendo, do jeitinho que interessa aos poderosos. Tipo assim: pessoas sadias, que, portanto, não geraram despesas para o sistema de saúde; ótimos consumidores, trabalhadores saudáveis, produtivos etc. No fundo, uma fantasia na qual até pessoas de bom coração passam a acreditar.

Além desse amplo debate ético no âmbito social, tais situações requerem de cada cidadão uma posição e uma atitude ética e cristã. O que o senhor gostaria de dizer às pessoas com relação
Um filho com doença ou má-formação não se constitui no projeto de um pai (tenho três filhos e uma neta) e de uma mãe. Mas, frente à realidade de uma deficiência, doença ou até da morte é que se pode viver a experiência da solidariedade. Creio que todos somos chamados a um caminho de solidariedade e subsidiariedade. São ambos princípios que a Igreja nos propõe. O Documento de Aparecida, tratando desse caminho, proclama: “É necessário educar e favorecer em nossos povos todos os gestos, obras e caminhos de reconciliação e amizade social, de cooperação e integração”; “É necessário um forte sentido de esperança, não obstante as condições de vida que parecem ofuscar toda esperança”... “É necessário aplicar o princípio da subsidiariedade em todos os níveis e estruturas da organização social”. Em outras palavras: a nós cabe crescer nesse empenho de solidariedade frente à situação de uma família com, por exemplo, um filho com microcefalia (ou qualquer outra doença: Down, câncer etc), como também é necessário que os organismos estatais em vez de se preocuparem em leis que liberam a matança dos doentes, em vez de matar os mosquitos, garantam políticas públicas que favoreçam os subsídios (esse o significado da “subsidiariedade”) para que todos possam ter condições de cuidar dos necessitados. Porque, do contrário, uma mãe abandonada (sem uma companhia de pessoas solidárias, e isto é o papel e responsabilidade das comunidades) e sem condições ou recursos sociais (econômicas e de suporte para a saúde: sem, portanto, a “subsidiariedade”) a esta só resta o medo, o desespero. E aí o desenlace pode ser trágico.

Como orientar as mães grávidas que contraíram o zika vírus e estão com medo de que seus bebês possuam a microcefalia? Como ajudar?
A ciência não tem resposta para tudo. Não podemos ter excesso de ênfase numa questão, para não acabar a distorcendo. É preciso antes um diagnóstico correto e honesto, o acompanhamento pelo pré-natal. E caso o diagnóstico seja o da síndrome da microcefalia, é bom recordar que há diversos graus. Porém, o apoio à pessoa é essencial. Se ela se sente apoiada, ela poderá viver esse momento de uma forma mais tranquila. O grande desafio para a comunidade católica e para a sociedade é acolher, antes de rejeitar. Se temos um olhar afetuoso, amoroso, aquilo que era pra ser uma tragédia, pode ser algo em que as pessoas tenham empenho em cuidar do outro. Pode ser um percurso de amor, de solidariedade e de misericórdia.
Jornal "O São Paulo", edição 3087, 3 a 10 de fevereiro de 2016.


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