terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Deus habita esta cidade

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Ney de Souza é padre da arquidiocese de São Paulo, professor de História da Igreja da Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção da PUC-SP.

São Paulo completa 462 anos. É tempo de repensar os desafios da Igreja na cidade. A sua origem cristã e católica não pode ser esquecida. Recordamos o nascimento da antiga vila no Pátio do Colégio, onde os padres jesuítas, em especial Anchieta, iniciaram, sob o patrocínio do apóstolo Paulo, a que seria a metrópole atual.
São Paulo cidade da riqueza e pobreza extremas. O pastoreio da Igreja católica acompanhou o seu crescimento econômico gigantesco, mas também vivenciou a complexidade que nos defrontamos pela quantidade imensa de cortiços, favelas, periferias sem água e esgoto e inúmeras situações violadoras da dignidade humana. O sábio da antiguidade, São João Crisóstomo, alertava que “não fazer os pobres participar dos seus próprios bens é roubá-los e tirar-lhes a vida”. Outro sábio, da atualidade, o Papa Francisco na Evangelii Gaudium (EG) alerta que “o ser humano é considerado, em si mesmo, como um bem de consumo que se pode usar e depois lançar fora. Devemos dizer não a uma economia da exclusão e da desigualdade social”.
A Igreja em São Paulo sofreu ao lado da população e passou pelos anos da tortura e da violação dos direitos humanos durante a ditadura militar (inclusive censura ao jornal O São Paulo, rádio 9 de julho, invasão da PUC). Viu aumentar a miséria da população de rua e dos excluídos.
Diante de tantos desafios, a Igreja intensificou o seu trabalho de evangelização e anúncio misericordioso de Deus, e seu compromisso com a transformação social, a defesa dos direitos de todos e o diálogo ecumênico e inter-religioso. A Igreja, escrevia João Paulo II, “vive uma vida autêntica quando professa e proclama a misericórdia” (Dives in misericordia). E “sem misericórdia, poucas possibilidades temos hoje de inserir-nos em um mundo de feridos, que têm necessidade de compreensão, de perdão, de amor” (Francisco, Discurso ao Episcopado Brasileiro na Jornada Mundial da Juventude, 2013).
Neste quadro desafiador está mergulhada a evangelização que se empreendeu especialmente a partir dos anos 70. O primeiro deles foi à linha de organização popular para que a população se tornasse de fato sujeito que decide o ser presente e futuro da organização da cidade. As prioridades dos Planos de Pastoral em favor das periferias, no mundo do trabalho, dos direitos humanos, das comunidades populares, foram fatores de encarnação do catolicismo dentro do movimento popular emergente. Esta inserção da Igreja na vida da população fizeram com que se tornasse lugar de expressão e busca da maior liberdade, símbolo de esperança e lugar de encontro, de unidade de várias forças dispersas e antes desconhecidas.
A tonalidade da evangelização em favor dos empobrecidos e em favor de um projeto humano, orientado pela realidade da justiça de Deus, se fez, se faz e se fará através de uma obra evangelizadora, por um ponto de humanidade e de convergência que se adquiriu da própria experiência. O catolicismo quer contar ainda mais com todos aqueles que vivem nesta megalópole (independente de credo, de etnia, de língua, de orientação sexual) e que desejam construir aqui os sinais concretos da vida através da justiça, do direito, da solidariedade, da fraternidade e da paz. Nesta festa da cidade de São Paulo no ano jubilar da misericórdia se faz urgente abrir a Porta da misericórdia do nosso coração para acolher e dar nova perspectiva de vida digna a imensidão dos excluídos desta cidade. “Não deixemos que nos roubem a esperança” (Francisco, EG), pois de esperança em esperança se constrói os sinais do Reino de Deus.
Jornal "O São Paulo", edição 3085, 20 a 27 de janeiro de 2016.

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