segunda-feira, 23 de março de 2015

Temos o direito de decidir quem deve morrer?

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte

Dalton Luiz de Paula Ramos é professor titular de Bioética da USP, membro da Pontifícia Academia para a Vida do Vaticano e conselheiro do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

A recente morte de um brasileiro condenado à pena de morte por tráfico de drogas na Indonésia e certa insistencia no tema por parte de setorres da sociedade brasileira me fizeram retomar algumas reflexões sobre este tema (Reflexões parcialmente publicadas no Jornal Mundo Jovem, Novembro de 2005, Edição nº 362).
Em O Senhor dos Anéis, de J.R.R.Tolkien, Gollum é um personagem mau, repugnante, capaz de fazer coisas horríveis, até de matar. Em um dos diálogos do livro, Frodo, um personagem do bem, questiona o mago Gandalf que, junto com os elfos, povo sábio da floresta, havia aprisionado Gollum e não o haviam matado. Frodo diz que Gollum “merece a morte” ao que Gandalf, o personagem que representa a sabedoria, lhe responde:
“Merece! Ouso dizer que sim. Muitos que vivem merecem a morte. E alguns que morrem merecem viver. Você pode dar-lhes a vida? Então não seja tão ávido para julgar e condenar alguém à morte. Pois mesmo os muito sábios não conseguem ver os dois lados. Não tenho muita esperança de que Gollum possa se curar antes de morrer, mas existe uma chance... Meu coração me diz que ele tem ainda algum tipo de função a desempenhar, para o bem ou para o mal, antes do fim... De qualquer forma não o matamos... Os elfos da Floresta o mantêm preso, mas o tratam com toda a gentileza que têm em seus sábios corações.”
Eu mesmo já vivi, na minha família, um desses terríveis episódios de violência que ilustram o noticiário policial. Ví o sofrimento dos parentes da vítima. E estando frente ao assassino de um ente querido é realmente difícil não pensar “ele merece morrer”.
No episódio ocorrido na minha família uma voz se fez presente. Justamente a do irmão da vítima. Um sacerdote católico que, vendo o nosso sofrimento, e vivendo também o dele, antes de clamar por justiça nos repetia insistentemente: "Que tudo isso não abale a fé de vocês em Cristo!”.
Assim, se sou ajudado a vencer a dor e o tormento gerados pela violência que sofri, recupero a serenidade, e o coração volta seu olhar para onde nunca devia ter se desviado; começo a entender que tenho que olhar para Cristo e, a partir daí, não quero mais ser igual ao criminoso. Não quero me igualar ao assassino, propondo a sua morte. Não quero mais morte!
E como nos lembra Tolkien, por meio do sábio Gandalf, nenhum ser humano por mais inteligente que seja, nenhum cientista mesmo dispondo da maior tecnologia é capaz de ”dar a vida”. E nunca poderá! Se não somos senhores da vida, por que então podemos pretender ser senhores da morte?
Que violência a pena de morte! Mesmo se tratando do pior dos criminosos estaríamos respondendo a violência dos seus crimes com mais violência, o que, além de nos igualarmos ao criminoso, sabidamente não resolve os problemas de segurança da sociedade.
Mas quero deixar muito claro, para não ser incorretamente interpretado: não quero impunidade para o criminoso, ou tolerância para com o crime. A questão é qual o nosso papel frente ao crime e ao criminoso. Com um coração tocado por Cristo entendo que uma pessoa vale por aquilo que é e não pelas escolhas que faz, mesmo que faça escolhas terrivelmente equivocadas. Quero investir nele, o que é um grande desafio para nossa inteligência, sei que não é fácil, mas devemos tentar.  Não devemos querer destruir o criminoso; matá-lo significa desistir dele.
 Jornal “O São Paulo”, edição 3036, de 28 de janeiro a 3 de fevereiro de 2015.

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