Editorial do jornal O São Paulo, ed. 3142, 15 a 21 de março de 2017.
Existe atualmente no Brasil a tendência
de se tentar no Supremo Tribunal Federal (STF) aquilo que não se consegue junto
ao Poder Legislativo, casa de um povo amplamente contrário ao aborto. Com os
escândalos de corrupção e legislação em causa própria, a tendência é compreensível.
Mas a repartição de poderes e a organização institucional das democracias têm
sua razão de ser e, quando desrespeitadas, corre-se o risco de criar novos
males ao tentar remediar os males existentes.
É o que acontece com a Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442 apresentada ao STF, pedindo
que seja descriminalizado o aborto praticado até a 12ª semana de gravidez. O
pedido baseia-se em precedentes anteriores, quase sempre justificados por
questões de saúde pública e grande sofrimento da mulher.
Nesses casos, segundo os proponentes da
ADPF 442, o STF já teria indicado que o feto não é “pessoa constitucional”,
isso é, não tem direitos reconhecidos por lei, mesmo sendo um indivíduo humano -
quanto a isso, não pode haver dúvida: biologicamente, o feto é humano, pois
toda sua genética é humana, e é um indivíduo novo, pois seu código genético é
uma combinação daqueles da mãe e do pai, diferente destes.
Independentemente das discussões
jurídicas sobre a validade dessa interpretação da Constituição e das demais
leis brasileiras, qualquer família que se constitui já pensa seus filhos como
parte de sua vida atual ou futura, se organiza em função deles, espera que o
Estado lhes dê a necessária proteção e amparo legal. Para os pais que desejam
uma criança, é óbvio que seu filho é uma pessoa com direitos desde a concepção.
A solução “politicamente correta” geraria
uma incongruência: as crianças desejadas por seus pais teriam seu status de
“pessoa constitucional” assegurado perante a lei (com todos os direitos
decorrentes), as indesejadas não teriam esse status e poderiam ser abortadas.
Teríamos novamente seres humanos iguais com direitos diferentes, contradizendo
todas as lutas por igualdade e justiça da história da humanidade!
O aborto clandestino é realmente um
problema de saúde pública e um sofrimento para muitíssimas mães. Mas
descriminalizar o aborto, em si mesmo, não soluciona o problema. Um verdadeiro
direito - o de realização da mulher - não se afirma com a negação de outro - o da
vida do nascituro.
A verdadeira solução é construir uma
sociedade mais solidária, mais hospitaleira e acolhedora, com relações familiares
mais fortes e políticas sociais mais efetivas. Não uma sociedade onde as
mulheres que sofrem possam abortar, mas sim uma sociedade onde nenhuma mulher
precise abortar por conta de seus sofrimentos.
Muito bom o editorial! Conciso, preciso, justo, humano!... Sou obstetra há 26 anos e nunca tive contato profissional com alguma mulher que estivesse feliz com um abortamento. Sempre há muito sofrimento envolvido, mesmo nos abortos provocados e nos ditos "legais". Nenhuma mulher se compraz com a morte de outro ser, mesmo que seja seu "direito". E esta percepção só vem a contribuir com o argumento do editorial: Não se pode garantir um direito retirando o direito de outra pessoa, no caso, o feto!... Adiciono mais uma questão: e o direito do genitor masculino em ter seu filho genético, frente à decisão unilateral da genitora feminina em abortar? Ele não é tão pai quanto ela? Ou ele só é depois, quando a criança nasce e se discute a pensão?...
ResponderExcluirExatamente!
ExcluirReconhecer o direito do mais forte (no caso a mãe, ou qualquer pessoa), de tirar a vida de um ser humano (já que cientificamente não se discute a característica humana do feto)indesejado, inocente e mais fraco é mais um importante passo no reconhecimento de que afinal, prevalece "legitimamente" a vontade do mais forte. Nesta e em todas as relações da vida humana. É construção de tirania.
ResponderExcluirGostaria de comentar que normalmente os abortos e desejos de aborto acontecem em situações de não amor, de violência, rejeição etc. Lembrando daquela máxima de são João da Cruz, "onde não há amor, coloca amor e encontrarás amor", além da batalha por uma sociedade em que nenhuma mulher se veja constrangida a abortar (quanto ao pai, esse já lavou suas mãos há muito tempo!), um gesto muito concreto é aquele de Madre Teresa: criar mecanismos de acolhida dessa criança que não consegue ser desejada pela mãe. Conheço caso de a mãe, vendo que outras pessoas amavam seu filho, querendo adotá-lo, acabaram amando o próprio filho. Claro que essa assistência, em situações de penúria, não pode se limitar ao acompanhamento da gravidez e do parto. Aquela criança necessitará ser amada também ao longo de seu desenvolvimento. Penso que a Igreja poderia fazer mais do que já vem fazendo nesse sentido. Seria um belo testemunho!
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