sexta-feira, 20 de março de 2015

A tragédia do Charlie Hebdo: quem começa o diálogo?

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte

Francisco Borba Ribeiro Neto, sociólogo, 
coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

Iniciamos 2015 impactados pelo atentado ao Charlie Hebdo e seus desdobramentos. Pouca gente se deu conta, porém, que naqueles mesmos dias os extremistas islâmicos do Boko Haram mataram cerca de 2000 pessoas no ataque a uma cidade na nigeriana.
É compreensível que os jornais ocidentais deem muito mais cobertura a um fato ocorrido em Paris, afetando direta ou indiretamente a vida de grande parte de seus leitores, que a outro acontecido no coração da África, num contexto que parece totalmente estranho a seus leitores.
O problema é que estes acontecimentos estão interligados e exigem respostas conjuntas.
O uso das armas – ainda que necessário em muitos casos extremos – não tem resolvido o problema. Pelo contrário, parece só aumenta-lo. Neste sentido, a resposta da Igreja se revela cada vez mais sensata e abrangente: só o diálogo e o encontro entre religiões e culturas, associados a um desenvolvimento humano integral e justo de todos os povos, podem garantir a paz mundial.
Não é uma ideia recente. Está presente em todas as mensagens papais sobre o tema desde a Pacem in Terris de João XXIII – e até antes.
Evidentemente o caminho do diálogo não eliminará atos terroristas e ações extremistas. Nossa sociedade ocidental há poucas décadas se livrou de grupos como as Brigadas Vermelhas italianas e o Baader-Meinhof alemão, e ainda enfrentamos franco-atiradores que disparam contra dezenas de inocentes e se suicidam (lembram-se do massacre de Columbine, nos EUA?).
O objetivo deve ser construir uma paz mundial onde estes episódios terroristas sejam casos de polícia (atos individuais, condenados por toda a opinião pública) e não de política (atos de grupos sociais que se sentem no direito de atentar contra os demais).
Mas os desdobramentos do atentado ao Charlie não parecem mostrar um grande espírito de diálogo e vontade de encontrar o diferente.
Houve a espetacular manifestação que reuniu mais de 1 milhão de pessoas em Paris, com uma “comissão de frente” que reuniu desde líderes europeus até Mahmoud Abbas, da Autoridade Palestina, e Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro israelense. Mas no dia seguinte os jornais estavam inundados com críticas a este ou aquele chefe de Estado e interpretações da manifestação como um gesto belicoso contra o terror e não como afirmação de um desejo de paz compartilhado.
Não faltou quem usasse os atentados para atacar as religiões em geral, associando-as a todas as formas de violência da história. Ou que interpretasse as manifestações contra o terrorismo como defesa do relativismo, da incerteza e do ataque a todas as crenças, desrespeitando a heterogeneidade evidente que existe entre mais de 1 milhão de manifestantes.
Estas pessoas não percebem que transformaram seu agnosticismo e seu relativismo numa nova religião, igual ás mais fundamentalistas que criticam, dispostas não à violência física, mas sem dúvida à violência intelectual, tão incapazes de diálogo e encontro quanto os extremistas que combatem.
E ainda criticam o Papa, acusando-o de um discurso ambíguo ou confuso. Não aceitam um discurso voltado ao diálogo, que procura entender as razões do outro, acolhe-lo em suas frustrações e seu desejo de realização, ao invés de massacrá-lo intelectualmente.
Quem começa o verdadeiro diálogo? Quem é capaz de amar sinceramente o outro, quem se sabe amado e por isso se sente livre diante do outro.
Nestes tempos difíceis, o cristianismo não é uma objeção à paz, mas um dos poucos, talvez o único, caminhos para construí-la num mundo laico carregado de ódio, soberba e divisão.

Jornal “O São Paulo”, edição 3035, de 21 a 27 de janeiro de 2015.

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