Ilustração: Sergio Ricciuto Conte |
Alexandre Ribeiro é doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP e editor de Aleteia.org
Meu pai, Afonso, mudou-se para São José dos Campos em meados de 1970. O quarto onde ele se hospedou nas primeiras semanas, de onde saía todas as manhãs para ir a pé de fábrica em fábrica procurar trabalho, era nos fundos de uma casa velha e pobre. Naquele mesmo lugar, alguns anos antes, havia morado seu irmão mais velho, Geraldo, também vindo do sul de Minas.
Geraldo tinha aspirações literárias, escrevia poemas
metrificados. E bebia. Aos 25 anos, era um espírito solitário e alcoólatra.
Fora seminarista na infância e juventude, mas abdicou da profissão religiosa
para tomar as armas. Do Seminário ao Exército, os cadernos e a letra memorável
sempre o acompanharam. Foram seu prazer e sua fuga. Quando vi seus poemas pela
primeira vez, sua caligrafia impecável, fiquei abalado e fui conversar com
minha avó materna sobre aquele velho tio. Minha avó, quando questionada, pensou
alto, deixando escapar: "Ah, aquele irmão do seu pai que se matou..."
Busquei informações, confrontei fontes, mas aquele assunto
estava enterrado, e ninguém nunca mais tocaria nele. Geraldo fora encontrado
morto, em circunstâncias misteriosas, naquele mesmo quarto que meu pai viria a
habitar tempos depois.
O dormitório era a imagem da pobreza e do horror que o
seguiam na cidade grande, assombrado pelo vulto do irmão bêbado. Naquele
momento da vida do meu pai, em que encontrar um trabalho possibilitaria a realização
do sonho de se casar com minha mãe e começar sua própria família num lugar
novo, ele teve a atitude que definiria sua vida: não bebeu.
O destino traçado por Geraldo, seguido por Isaac, o outro
irmão mais velho, também estilhaçado pelo alcoolismo, não se confirmaria.
Afonso conviveria com a depressão a vida toda, sem trégua, com os olhos
petrificados, o olhar cabisbaixo, o jeito doce, porém sem confiança ao qual eu
me aconchegava na infância, enquanto chamava de papai.
Lembro-me, quando criança, do cheiro do café a inundar nossa
casa todas as tardes. Eu, voltando da rua, sento-me à mesa ao lado do pai, que
reclina para acariciar meus cabelos suados. Minha mãe estende-me a caneca.
Papai pega um pão, rasga-o com a faca de cabo azul, passa manteiga e me entrega
sobre um pires branco. Mamãe senta-se ao nosso lado. Mergulho o pão no café com
leite e começo a comer calmamente, apesar das pernas agitadas debaixo da
cadeira.
Papai se levanta, vai até a mesa da sala e pega seu caderno.
Em letra de forma, anota os gastos diários numa planilha azul. Ele não sabia
escrever em letra cursiva. Não me recordo tê-lo visto redigindo frases
completas, apenas anotações soltas, em que cada linha formava um tópico. Sua
letra em nada exibia a sofisticação da escrita de Geraldo. Seu carisma era
quase um pedido de desculpas, e ainda assim ele era cercado de amigos fiéis,
algo que para mim era incompreensível, pois imaginava que as amizades se
avolumavam ao redor de espíritos expansivos e alegres, e papai, em sua
melancolia cabisbaixa, não se encaixava nesse perfil.
Afonso destaca do caderno a folha tracejada e me entrega. O
desenho simplório de um boizinho, que tanto me alegrava, era-me dedicado como
um beijo de boa noite, antes que ele fechasse o caderno e fosse ver o
noticiário na TV.
Hoje, na gaveta à minha esquerda, eu guardo os poemas de
Geraldo. Eles estão logo abaixo de alguns desenhos de boizinhos que ainda me
acompanham, entre os quais se encontram fotografias da infância.
Ali, em meados dos anos 1970, sozinho na cidade grande, no
mesmo quarto onde o irmão desistira de tudo, meu pai tomou a atitude que
definiria sua vida e a de todos nós: ele não bebeu. E assim encontrou trabalho,
se casou, teve dois filhos e levou uma vida honrada até o fim. Toda ternura e
paz da minha infância, de certa forma, eu devo àquela firme e nobre decisão.
Jornal "O São Paulo", edição 3142, 15 a 21 de
março de 2017
Lindo testemunho de amor e gratidão ao pai...
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