Ilustração: Sergio Ricciuto Conte |
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs,
teólogo, é o atual Vigário Geral da Congregação dos Missionários de São Carlos
(scalabrinianos). Realizou trabalhos pastorais em favelas, cortiços e no
interior do Estado com os migrantes cortadores de cana. Foi diretor do
CEM-Centro de Estudos Migratórios de São Paulo, assessor do Setor Pastorais
Sociais da CNBB, Superior da Província São Paulo dos Padres Scalcabrinianos.
De início, cada pessoa, grupo ou cultura são terreno fértil
para ambos. Basta um olhar ao próprio coração, à família ou a qualquer
organização para dar-se conta que trigo e joio integram a condição humana.
Misturam-se a ponto de ser impossível destruir um sem afetar o outro. Em geral sofremos
de uma dicotomia crônica que opõe os bons e os maus como adversários. Uns estão
do lado de dentro do muro imaginário, os outros estão do lado de fora. Como se
o mundo fosse dividido nitidamente entre “nós” e “eles”: conhecidos e estranhos
em campos diversos e adversos. O certo é que a linha divisória entre o bem e o
mal passa pelo interior da própria pessoa.
Esse dualismo tende a ser cego para a ambiguidade intrínseca
ao ser humano, associação ou comunidade. Supõe que as incongruências e
contradições encontram-se sempre do lado contrário. Daí o corte taxativo entre
puros e impuros, santos e pecadores, fiéis e infiéis, salvos e perdidos...
Estamos aqui a um passo do fanatismo, do extremismo e do fundamentalismo, sejam
tais “ismos” de ordem política, ideológica ou religiosa. Daí a discriminação, a
intolerância e a perseguição – para não falar da violência e da guerra.
Depois, joio e trigo devem conviver juntos. Pois no jogo
complexo das relações humanas e socioculturais, a erva daninha pode superar o
próprio veneno e transfigurar-se em planta benéfica. E esta, por sua vez, pode regredir
à condição de erva daninha. Toda travessia comporta a probabilidade de um processo
de conversão. No percurso da existência, ninguém está definitivamente condenado
e ninguém definitivamente salvo. Daí a importância de deixar aberta a porta a
possíveis mudanças de rota e de meta. Cortar o joio precocemente significa
tolher de uma vez por todas uma eventual regeneração. De um ponto de vista da
fé, significa fechar o campo à ação do Espírito Santo na trajetória histórica
da pessoa ou cultura.
O terceiro aspecto põe em cena a solução evangélica do
Mestre: deixem que joio e trigo cresçam até o tempo da colheita. Então torna-se
maduro um julgamento integral, pois todas as cartas já foram jogadas:
experimentadas todas as tentativas de resgate. O velho sábio dizia que “a vida
é a arte de escrever sem borracha”. E o dito popular acrescenta: “fruto que se
colhe cedo demais amarga na boca, fruto que se colhe tarde demais amarga no
estômago”. O julgamento e a punição, porém, não pertencem aos homens, mas aos
anjos, aos mensageiros de Deus. Como lembrou o Papa Francisco, “quem sou eu
para julgar”? Qualquer juízo antecipado pode induzir ao erro, tanto na
condenação quanto na salvação. Somente o Senhor da história tem o poder de
emitir a sentença definitiva. Os julgamentos humanos serão sempre provisórios.
Conclui-se que os fios invisíveis na trama das relações
humanas – fazendo, desfazendo e refazendo o tecido social – se mesclam, se
confundem e se alternam. O bem e o mal, tal como o choro e o riso, coexistem
lado a lado. Além disso, quem pode decidir o que é bom e o que é mau? Que
critérios, leis e costumes usar? Na sociedade cada vez mais “líquida” (Bauman),
onde encontrar referenciais pétreos? Só no fim do percurso histórico será
possível saber o que permaneceu joio e deve ser queimado, e o que permaneceu
trigo e deve ser preservado. Nas etapas intermediárias, o bom senso, a busca do
bem comum e as instituições reguladoras recomendam o respeito à dignidade, aos
distintos valores e à solidariedade entre pessoas, povos, culturas e nações.
Jornal "O São Paulo", edição 3164, 31 de agosto a 5
de setembro de 2017.
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