Que nos deixa Dom José Maria Pires? Pouco mais do que uma memória de gigante e, ao mesmo tempo, um estridente e respeitoso silêncio de eternidade. Não obstante o silêncio solene e reverente, atrevo-me a rabiscar algumas palavras sobre essa figura de raízes, tronco, ramos, folhas e frutos. Um homem que se assemelhava a uma árvore platantada à beira de um riacho, como diz o salmo número um.
Comecemos com as raízes. Desde logo convém dizer que Dom José era um homem de profundas raízes. Raízes que, vindas da mãe África, souberam nutrir-se dos ingredientes encontrados do outro lado do Atlântico. Tinham cor negra, som de música e uma versatilidade de dança. No “terreiro da diocese”, moviam-se ao som do tambor que vem do centro da terra, tal era a integridade com que assumiu sua negritude. Primeiro o chamaram de Dom Pelé, depois preferiu que o chamassem de Dom Zumbi, devido à luta deste último pela libertação do seu povo escravo. Amou o povo brasileiro, formado por três raças, sem jamis deixar de amar seus antepassados.
Possuía um tronco vigoroso de pastor, de profeta e de sábio. As raízes o alimentavam a partir do solo úmido e escuro, onde o povo sofre e luta, reza e espera. Nos tempos sombrios da ditadura militar, foi marcante sua “opção preferencial” pelos pobres e oprimidos, juntamente com a CNBB. Sua profecia, mansa e robusta a um só tempo, fazia tremer os latifundiários das dioceses de Araçuaí e da Paraíba. Suas palavras, sempre iluminadas por um sorriso, adquiriram uma eloquente veemência. A sabedoria vinha-lhe de um ouvido aberto ao clamor de todo rebanho, com grande respeito pela alteridade. Sabia ler no rosto das pessoas a lágrima e o riso, “as alegrias e esperanças, tristezas e angústias” (GS, n. 1).
Os ramos eram braços e mãos enérgicos, sem ser grosseiros ou brutais. Uma energia não impetuosa ou precipitada, mas oportuna e pontual. Tanto quanto estava pronto a abençoar as vítimas e os injustiçados da história, também era capaz de golpear os lobos com sua autoridade de pastor. Quando o conheci na Paraíba, estava justamente em meio a um conflito entre trabalhadores rurais sem terra, de um lado, e fazendeiros inescrupulosos, de outro. Sua figura se agigantava, seja na defesa dos primeiros, quanto na advertência aos segundos. Uma e outra fundamentadas na misericórdia evangélica. Todos os anos, por ocasião da Romaria da Terra, caminhava toda a noite ao lado dos peregrinos.
Quanto às folhas e frutos dessa árvore, basta relembrar sua sombra de pai/pastor, ou suas ações em prol dos famintos e sedentos de justiça. Tive a alegria de conhecer vários agentes de pastoral, e outros tantos trabalhadores e trabalhadoras, que se viram livres da perseguição ou da prisão devido à sua sombra. Acolhia-os e protegia-os com a peregrinos errantes que têm necessidade de uma tenda e de repouso, lembrando o espisódio de Abraão no Carvalho de Mambré (Gn 18,1-10). Inumeráveis, por outro lado, são seus projetos, gestos e ações em favor da justiça e da paz.
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