quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

"O São Paulo" e a questão penitenciária



Por que eles e não eu?
Editorial do jornal O São Paulo, ed. 3133, de 11 a 17 de janeiro de 2017.
Concordem ou não com suas posições, quase todos reconhecem o Papa Francisco como a maior autoridade moral da atualidade. Mas é justamente ele que, diante de criminosos presos, faz repetidas vezes essa pergunta desconcertante: “por que eles e não eu?”.
Apesar de toda a sua estatura e coerência moral (ou justamente por causa delas), Bergoglio sabe que não deixou de ir para a cadeia simplesmente por ser mais honesto do que os outros, mas sim porque uma série de acontecimentos fizeram com que suas decisões boas fossem mais determinantes que as más (são conclusões dele, olhando retrospectivamente para sua vida, não nossas).
Diante de mais uma chacina em presídios brasileiros, não podemos deixar de pensar nessa lição – tão singela quanto forte – do Papa Francisco.
Se observamos com atenção, encontraremos várias situações, que ocorreram com parentes, amigos ou com nós mesmos, que poderiam ter levado a erros terríveis, mas que terminaram bem porque houve apoio material e orientação adequada. Solidariedade não é conivência com o mal, mas a falta de solidariedade leva a males sempre maiores. Ser solidário não é transformar o criminoso em vítima, mas construir o bem comum.
Temos frequentemente uma visão distorcida da realidade prisional brasileira. Pensamos numa minoria de líderes criminosos que continuam mandando e desmandando de dentro das cadeias, cercados até de um relativo conforto. Mas a imensa maioria não tem sua dignidade humana reconhecida, lhes falta desde as mínimas condições de higiene até a assistência jurídica adequada. Para esses, o crime organizado se tornou um espaço de solidariedade e uma condição para sobreviver. Com isso, nossos presídios se tornam cada vez mais “escolas do crime”.
Sem dúvida, são necessárias verbas para a segurança pública. Mas não haverá dinheiro que chegue se a segurança tiver que preencher as falhas da educação, da inclusão social, dos programas de geração de emprego e renda. O buraco é mais embaixo, e temos que ter consciência disso para enfrentar adequadamente a situação.
O Estado tem que assumir sua responsabilidade. Os problemas dos presídios mostram não só falta de recursos, mas ineficiência e até rejeição a políticas e metodologias sabidamente eficazes. Pior: uma sombra de corrupção e malversação de dinheiro público paira sobre todo o sistema.
O desafio do Estado é a eficiência. O desafio da sociedade é a solidariedade. Todos temos, em casa, no trabalho, na igreja, com os amigos, a missão de mostrar que a solidariedade é diferente da conivência, de dar nossa contribuição para que o sistema prisional seja espaço de ressocialização e não de exclusão.


Criminoso bom NÃO é criminoso morto
Editorial do jornal O São Paulo, ed. 3134, de 18 a 24 de janeiro de 2017.
Com as recentes chacinas em presídios brasileiros, parte da mídia e até membros do governo voltaram ao slogan “bandido bom é bandido morto”, agora na variante “é bom que eles se matem”. Mas dados científicos rigorosos não mostram correlação entre morte e sofrimento nos presídios com redução da criminalidade. Pelo contrário, mostram que a criminalidade é detida por um conjunto de medidas sociais, que ajudam a prevenir a delinquência e a reintegrar o delinquente, e de segurança pública, que aumentam a probabilidade do criminoso ser capturado e não o tamanho de sua condenação.
No Brasil, em situações críticas, a resposta política costuma ser a de endurecer as leis (pois “o papel tudo aceita”) e não a de criar mecanismos efetivos para superação dos problemas. Mas a solução dos problemas de segurança passa por (1) medidas eficientes para impedir o crime e/ou capturar o criminoso, (2) solidariedade e inclusão social, para que os jovens não sejam desencaminhados para o crime e os que presidiários sejam reintegrados à vida social – ao invés de cooptados por facções criminosas.
O discurso do “criminoso bom é criminoso morto” não nasce da justiça, mas da vingança e do ressentimento. São sentimentos com os quais não podemos concordar, mas que crescem numa população espezinhada por más condições de vida, que não vê a dignidade de seu trabalho e de seu esforço reconhecida, que se escandaliza com as mordomias e a impunidade de corruptos, corruptores e até de criminosos importantes.
Personalidades da mídia e da política que difundem um discurso raivoso e cada vez mais violento em nome da segurança pública estão, na verdade, fazendo um desfavor à população. Apontam para falsas soluções, que acabarão aumentando ainda mais a insegurança nas periferias e entre os mais pobres, vítimas de balas perdidas, truculência policial, erros judiciais, falta de perspectivas na vida.
A vingança também não ajuda os enlutados, vítimas de crimes hediondos ou que sofrem com a perda dos entes queridos assassinados.  À primeira vista, parece um consolo, mas não preenche o vazio nem cicatriza as feridas. Não ajuda a encontrar um sentido na vida capaz de superar o sofrimento e a dor. O perdão, o amor e a dedicação ao próximo são muito mais eficientes para superar o luto – e isso não é um discurso apenas da Igreja, mas de especialistas que atendem a pessoas enlutadas e vítimas da violência.
Mas tudo isso não será compreendido apenas com discursos e análises. Só uma comunidade capaz de acolher e amar tanto a vítima quanto o criminoso podem nos ajudar a ver a força social da justiça combinada à solidariedade ao amor – e assim defender realmente o que constrói o bem comum. Esse é o nosso desafio.

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