Ilustração: Sergio Ricciuto Conte |
Marcelo Musa Cavallari é escritor, tradutor e jornalista especializado em assuntos internacionais. Traduziu “O Livro da Vida de Santa Teresa D’Ávila” para a Companhia das Letras e escreveu “Catolicismo”, para a Editora Bella.
No ano de 1967, quando os hippies viviam seu apogeu na
esquina das ruas Haight e Ashbury em São Francisco, Ronald Reagan, um dos mais
importantes presidentes americanos do século XX, tomava posse como governador
da Califórnia. Atribui-se a ele uma piada sobre os jovens desgrenhados e sarapintados
que consumiam drogas, tocavam violão e faziam amor, não faziam a guerra. Nem
nenhum tipo de trabalho produtivo. O hippie, dizia Reagan, era um sujeito que
se parecia com o Tarzan, vestia-se como a Jane e fedia como a Chita.
Depois do verão de 67, os hippies declararam: “O sonho
acabou”. Não é verdade. O sonho, ou a imaginação, como disseram os estudantes
franceses de maio de 68, primos irmãos dos hippies - tomou o poder. A ideia de
que o único objetivo da vida é a diversão - sexo sem filhos, drogas, bebidas,
balada -; um conceito de cidadania que só inclui direitos e no qual gritar
slogans na rua é toda a responsabilidade social que se está disposto a exercer;
e a visão de que tudo o que a alma humana, retraduzida para o grego psique pela
psicologia, psiquiatria e psicanálise, precisa é se sentir bem - para o que terapias,
remédios ou técnicas orientais de meditação bastam - são filhos diretos dos
hippies. O sonho não acabou, ele só virou o pesadelo em curso.
A piada acerta três elementos essenciais da contracultura
que, desde os anos 1960, vêm dissolvendo a civilização ocidental por dentro. Desgrenhado,
o hippie se parecia com o Tarzan por desprezar a distinção entre natureza e
cultura. O comportamento irreverente - expressão que se usa há décadas como
elogio - decorre da falta de respeito com tudo aquilo que, por não ser natural,
é visto como desnecessário ou prejudicial à busca da satisfação.
Veste-se como Jane por não reconhecer a distinção entre
homem e mulher. Não tanto para libertar a mulher de algum papel subserviente a que
a civilização a teria relegado, mas para liberar todo tipo de ato sexual de
qualquer limitação moral. A teoria de gênero que hoje acumula vitórias
políticas é apenas o mais recente estágio da revolução sexual que a pílula, o
avanço tecno-científico-industrial condenado pelo papa Paulo VI já em 1968,
tornou possível.
Cheira como a Chita ao não reconhecer a distinção entre os
seres humanos e os animais. A visão biológica segundo a qual o homem não é mais
do que uma espécie de ser vivo entre milhares de outras geradas pela evolução
vem se tornando a base até de outras ciências -psicologia, sociologia etc -
como campo último de explicação do comportamento humano. Para as franjas mais
radicais da militância ambientalista, pior do que apenas uma espécie animal, o
homem é um peso excessivo sobre o meio ambiente. Uma espécie de câncer do qual
a mãe-terra sofre.
Sem a violência dos linchamentos e até do canibalismo que
marcou a Revolução Cultural chinesa, também ela fruto dos anos 1960, a
contracultura ocidental realizou a destruição dos “Quatro Velhos” que Mao Tsé
Tung odiava: velhos hábitos, velhos costumes, velhas ideias e velha cultura.
No Ocidente, a velha cultura que se quer destruir é aquela
criada pelo cristianismo. Sessenta anos depois de declarada a guerra à cultura,
livres da civilização cristã, da moral cristã e do estatuto especial do homem
diante de Deus, Tarzan, Jane e Chita contemplam mesmerizados as telas de
computadores celulares e tablets de onde esperam ver brotar, via internet, a Singularidade,
a superinteligência coletiva e tecnológica que, caricaturando a antiga
transcendência cristã, tornará o humano obsoleto. Não é por acaso que também a
internet foi imaginada pela primeira vez por Stewart Brand, um hippie com o
símbolo da paz pendurado no pescoço que guiava um ônibus colorido na Califórnia
dos anos 1960.
Jornal "O São Paulo", edição 3168, 27 de setembro a
3 de outubro de 2017.
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