Ilustração: Sergio Ricciuto Conte |
Klaus Brüschke é membro do Movimento
dos Focolares, ex-publisher da Editora Cidade Nova e articulista da revista
Cidade Nova.
“No mundo são produzidos alimentos mais do que suficientes
para todos; contudo, 815 milhões de pessoas passam fome. ” É o que consta no
relatório “Quanto falta para alcançar a #FomeZero? O estado da seguridade
alimentar e da nutrição no mundo 2017”, da Organização das Nações Unidas
para Agricultura e Alimentação (FAO). Na última década, a fome global estava em
declínio; no último ano, porém, ela voltou a crescer, afligindo especialmente
as crianças e comprometendo para sempre a vida futura de toda uma geração. É um
enorme desafio para que se alcance a meta de zerar a fome no mundo até 2030.
Dentre suas causas, o relatório aponta os conflitos
violentos, as mudanças climáticas e a recessão econômica global. A FAO constata
que o número de conflitos violentos – não somente guerras entre Estados, mas
também guerras civis, grupos armados etc. – aumentou dramaticamente (cerca de
125% desde 2010). As secas e as enchentes, agravadas pelas mudanças climáticas,
refletem diretamente nas colheitas. E a recessão econômica tem impacto nas exportações
de commodities, receitas fiscais e aumento do preço dos alimentos, restringindo
o acesso a estes por parte das populações empobrecidas.
O relatório cita também o impacto das populações deslocadas
(refugiados e migrantes) no cenário da fome. Um em cada 113 habitantes do
Planeta foi forçado a abandonar a própria terra.
Essa crise humanitária chama a atenção para dois aspectos.
Em primeiro lugar, não se trata de meros números estatísticos, mas de pessoas,
filhas de Deus, privadas de condições mínimas de subsistência e lesadas em sua
dignidade. Também não se trata de decorrência de fatalidades, mas de
consequência de ações humanas, de escolhas de governos e de sociedades (das
quais em certa medida compartimos). Consequências que se estendem ao Planeta
inteiro (um exemplo é a questão dos refugiados).
Benjamin Barber, estudioso norte-americano da
interdependência dos países, recentemente falecido, afirmou que “interdependência
significa que nós podemos criar ou um mundo seguro para todos ou então, um
mundo que não é seguro para ninguém”, acrescentando: “Uma vez que os desafios
que devemos enfrentar hoje são globais, também as respostas encontradas devem
ser tais”.
O ponto é que tipo de visão global temos: a supostamente
universalista da cultura ocidental-europeia? a da mundialização econômica
neoliberal? a dos interesses estratégicos geopolíticos?
Chiara Lubich, a fundadora do Movimento dos Focolares, propõe:
“É a fraternidade [que ela entende a partir do Evangelho] que pode dar hoje
novos conteúdos à realidade da interdependência. É a fraternidade que pode fazer
que floresçam projetos e ações no complexo tecido político, econômico, cultural
e social de nosso mundo… A profunda necessidade de paz que a humanidade hoje
exprime diz que a fraternidade não é apenas um valor, não é apenas um método,
mas é um paradigma global de desenvolvimento político…”
Essas questões todas ensejam uma atualização da obra de
misericórdia de dar de comer a quem tem fome e da bem-aventurança da fome de justiça.
Há muito por fazer com urgência – os “povos da fome” não podem esperar até que
haja paz: das escolhas de estilo de vida conscientes aos gestos de
solidariedade, do engajamento no Terceiro Setor à participação na elaboração de
políticas públicas, da formação de opinião pública à escolha dos governantes
com suas visões de mundo. Consciência e ações em nível local e planetário…
A crise humanitária da fome – em última análise, tradução da
crise de humanidade de nossos tempos – não é questão apenas dos “grandes da
Terra”; também nós, “normais cidadãos” temos nossa tarefa a cumprir.
Jornal "O São Paulo", edição 3171, 18 a 24 de
outubro de 2017.
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