Francisco Borba Ribeiro Neto, sociólogo,
coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.
coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.
A construção da paz e
de uma sociedade mais segura passa por uma visão integral de pessoa humana. Uma
sociedade que não acolhe a pessoa em todas as suas dimensões, material,
psicológica e espiritual, não é capaz de ser uma sociedade de paz.
Quando consideramos o
problema da segurança na sociedade atual, temos que considerar três níveis da
questão: o socioeconômico global; o político-institucional e o das relações
interpessoais e da vida social no âmbito local. Na prática, esses níveis se
entrelaçam, ainda que a ação pessoal aparentemente perca sua força à medida que
nos afastamos do nível local e nos dirigimos ao nível internacional.
Neste plano
internacional, as mudanças decorrentes da chamada “globalização” criaram novas
modalidades para velhos problemas – geralmente aumentando-os. Para se ter uma
ideia dessas mudanças, pode-se comparar o tempo em que o jogo-do-bicho era o
exemplo típico de “crime organizado” no Brasil com a atualidade, quando ele
perdeu seu espaço para o narcotráfico. Ou as mudanças nas relações internacionais
que cercavam a guerra da Coréia e a guerra do Vietnam, em comparação com as da
guerra do Iraque. No mundo globalizado, os poderes locais se enfraquecem e
surgem novos recursos que permitem espalhar a contravenção, a violência e a
destruição por territórios geográficos e sociais muito mais amplos.
No plano
político-institucional, nos deparamos com os limites da ação do Estado no
controle da violência e do crime – as políticas de segurança pública. De modo
geral, nesse campo, se busca a melhoria da rede de prevenção ao crime, do
sistema prisional e da gestão da informação, da formação e da valorização dos
policiais, etc. Contudo, a capacidade do Estado de investir na área de
segurança é limitada e o retorno do investimento frequentemente fica abaixo das
expectativas, gerando uma série de debates sobre a eficiência do estado e dos
governos. Nesse nível, a ação de cada cidadão se faz principalmente através do
voto e da participação em campanhas de pressão sobre o poder público.
O terceiro nível, o
interpessoal e da vida social no âmbito local, é o que mais diretamente diz
respeito ao tema das relações fraternas. Nesse nível da análise, nos deparamos
com diversas formas de insegurança e de fatores geradores de violência. Roubos,
assaltos, agressões sexuais, ocorridas na rua, em casa, nos locais de trabalho
e estudo, etc. Quando perguntamos por que essas agressões acontecem, as causas
mais lembradas são a pobreza, a impunidade, a própria maldade do coração
humano.
Muitas vezes, uma
inegável associação entre violência, insegurança e pobreza parece mascarar
todos os demais aspectos do problema. Mas a maioria dos pobres não é criminosa
ou violenta – pelo contrário, são as vítimas anônimas e mais comuns do crime e
da violência. Por outro lado, demonstrações de violência, vindas de pessoas e
famílias de classe média ou alta, nos chocam frequentemente. Nesse nível da
análise, podemos compreender melhor a violência atual se a vemos como
conseqüência de uma incapacidade que a sociedade tem de acolher a pessoa humana
em todas as suas necessidades, materiais, psicológicas e espirituais.
A pobreza material
representa, sem dúvida, o primeiro aspecto dessa falta de acolhida. Aquele que
chega numa grande cidade, como imigrante ou recém-nascido, tem necessidade de
uma série de recursos materiais para realizar-se como pessoa humana. Na falta
dessas condições, aumenta a probabilidade de que recorra ao crime como
alternativa e que responda violentamente a uma sociedade que lhe recebe com
violência (o que não significa que o pobre irá se tornar bandido...).
No mundo tradicional,
a pobreza também existia, mas não era realçada pela desigualdade em recursos e
oportunidades que marca nossas cidades. Além disso, os laços sociais criavam
uma rede de solidariedade e apoio mútuo que tendiam a minimizar seus efeitos.
Em nossas periferias essa rede social se esgarça, tende a desaparecer. É nesse
tecido social em desagregação, diante dessa pobreza desassistida e
desesperançada, que a violência e o crime fermentam com mais vigor. Portanto,
deve-se compreender que uma dada estrutura social, com suas consequências no
plano das relações interpessoais, da afetividade e do desenvolvimento da
pessoa, podem potencializar ou reduzir as consequências da pobreza.
Esse aspecto
sociocultural e psicológico não é específico das populações pobres. Ele
atravessa toda a sociedade. A desestruturação das famílias, a falta de
orientação dos adolescentes, a solidão e o abandono de jovens e adultos,
representam outra dimensão desse processo de não-acolhida da pessoa humana, e
podem ter o mesmo efeito gerador de violência, insegurança e criminalidade. A
esses fatores se acrescenta um terceiro nível, que podemos chamar de
espiritual. Esse termo é frequentemente interpretado num sentido abstrato ou se
referindo apenas a uma vida após a morte, como que sem influência sobre o
cotidiano concreto das pessoas. Mas o nível espiritual é mais do que uma
questão de vida após a morte. A espiritualidade diz respeito à busca do sentido
da vida.
A questão espiritual –
assim entendida – é a mais decisiva do plano individual. O homem se move
procurando satisfazer suas necessidades, realizar seus desejos e escapar de
seus sofrimentos. Mas é a resposta (geralmente inconsciente) à pergunta sobre o
sentido da vida que lhe permite hierarquizar necessidades, explicitar desejos e
colocar-se diante do sofrimento. Assim, também a opção pela violência ou pelo
crime representa uma resposta específica à questão do sentido da vida. É aqui
que a realidade material, as experiências pessoais e o contexto cultural fazem
seu encontro vertiginoso com a liberdade humana, e determinam como se dará a
dramaticidade de cada existência humana.
Um processo de
construção da paz, de superação da situação de insegurança atual, implica na
construção de relações fraternas capazes de gerar uma realidade de acolhida
integral à pessoa humana – que a considere em seus aspectos materiais,
psíquicos e espirituais PARTE I. Uma visão integral de pessoa
O combate às agruras e
aos sofrimentos nascidos da pobreza é sem dúvida a grande missão à qual somos
todos chamados na sociedade brasileira. Trata-se da face mais imediata do
problema, a primeira a ser enfrentada. Mas não basta enfrentar a pobreza, sem
oferecer uma resposta também às demais dimensões da pessoa humana, a psíquica e
a espiritual. Por isso, a construção dessas relações fraternas não pode ser
reduzida nem a um assistencialismo, nem a uma militância supostamente
transformadora, mas que não responde a todos esses aspectos da pessoa.
Esse processo, na
tradição da Igreja, costuma ser chamado de “construção de um povo”. A expressão
“povo” costuma ser entendida como uma designação genérica para o conjunto de
pessoas que habita um país, ou para designar uma unidade étnica específica. O
cristianismo, contudo, trouxe em si outra imagem de povo: a unidade de pessoas
que compartilham um mesmo sentido para a vida e que, em nome desse sentido
único para a vida, se propõem a superar as divisões sociais, raciais ou
nacionais que as separam. Assim, poderíamos terminar a nossa reflexão dizendo
que construir a paz implica em construir (ou reconstruir) um povo, com as
contradições que caracterizam toda empreitada humana, mas com uma certeza que
nasce de já ter encontrado esse sentido para a vida.
Mas, esse pode parecer
um discurso teórico e abstrato, se não nos voltarmos para aspectos concretos e
práticos desse grande trabalho. Gostaria de enumerar alguns aspectos mais
práticos disso que já dissemos anteriormente:
1) Compreender que
cada pequena obra, que cada trabalho social, que cada ação solidária, faz parte
desse processo de construção de um povo e de reafirmação – num mundo marcado
pelo individualismo e pelo niilismo – de que a vida tem um sentido, e que esse
sentido é solidário. Isso é particularmente importante numa sociedade
fragmentada e particularizada, onde as ações pessoais freqüentemente perdem sua
referência global.
2) Não descuidar do
aspecto educativa de cada gesto. A educação não é apenas um processo de
treinamento profissional, como muitas vezes pensamos, mas um processo de abertura
para a realidade. Em cada gesto que fazemos verificamos, mesmo que
inconscientemente, a força do sentido que damos a nossa vida. Essa verificação
deve ser cada vez mais consciente e explicita, para gerar uma certeza de que se
fez as opções certas, que a própria liberdade está engajada num caminho justo –
isso é, num caminho que constrói a nossa felicidade.
3) Procurar trabalhar
sempre em redes solidárias, onde as iniciativas não precisam – nem devem –
estar submetidas a uma direção central, que acaba instrumentalizando-as num
processo de luta pelo poder, mas devem estar sempre procurando se ajudar,
compreender juntas o sentido de suas ações e do contexto que as cerca.
4) Valorizar, com uma
postura realista e sem ingenuidade, no interior dessas redes, as iniciativas
que ajudem a construir uma sociedade mais segura e menos violenta.
5) Uma preocupação
especial deve ser dedicada à realidade carcerária. Deve-se compreender que a
maior parte dos detentos não é formada pelos grandes senhores do tráfico, tão
noticiados pela imprensa, mas é pobre e padece as maiores humilhações e
sofrimentos em nossas prisões. É vital lutar para que as prisões deixem de ser
“escolas do crime” e centro de aliciamento de novos criminosos. Isso não
acontecerá, porém, aumentando o rigor do sistema e o sofrimento dos detentos,
mas sim crinado – também aí – condições de uma verdadeira acolhida à pessoa
humana.
6) Compreender os
limites da justiça e a força do perdão e da esperança. Queremos justiça. Mas,
se a justiça for bem aplicada, o máximo que parece poder garantir é que o
criminoso não voltará mais a realizar o crime. Isso já é muito, mas ainda é
pouco. Não resolve o vazio que está em nós. Aquele pedaço de humanidade, de
sentido e de esperança, que nos foi arrancado quando tomamos consciência do
crime continua ali faltando, clamando por alguma coisa mais, por uma outra
justiça que transcenda nossos limites. Queremos uma outra justiça, que recupere
o que foi perdido. Mas isso parece impossível... Só o perdão e a esperança
podem nos trazer justiça, só eles podem – de alguma forma – recompor uma parte
dessa humanidade desfigurada que nos resta depois da tragédia. É a lição que
foi dada, por exemplo, por Massataka Ota, o pai do menino assassinado Ives Ota,
que passou a dedicar-se a trabalhar com meninos carentes e – surpresa! –
criminosos condenados como os que mataram seu filho. É bom lembrar que perdão
não significa impunidade, mas sim que a justiça é praticada visando o bem de
todos e não a vingança.
7) Por último,
trabalhar conscientes de que essas coisas não podem ser vividas e transmitidas
como idéias, elas dependem do encontro com experiências concretas, com pessoas
que já tem a vida mudada a partir delas – daquilo que a Igreja chama de
“testemunhas”. É o rosto dessas testemunhas, são as relações fraternas que
nascem do encontro com elas, que permitem que essas palavras não se tornem
moralistas ou abstratas.
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