quinta-feira, 11 de junho de 2015

A construção da paz a partir de relações fraternas na grande cidade


Francisco Borba Ribeiro Neto, sociólogo, 
coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

A construção da paz e de uma sociedade mais segura passa por uma visão integral de pessoa humana. Uma sociedade que não acolhe a pessoa em todas as suas dimensões, material, psicológica e espiritual, não é capaz de ser uma sociedade de paz.
Quando consideramos o problema da segurança na sociedade atual, temos que considerar três níveis da questão: o socioeconômico global; o político-institucional e o das relações interpessoais e da vida social no âmbito local. Na prática, esses níveis se entrelaçam, ainda que a ação pessoal aparentemente perca sua força à medida que nos afastamos do nível local e nos dirigimos ao nível internacional.
Neste plano internacional, as mudanças decorrentes da chamada “globalização” criaram novas modalidades para velhos problemas – geralmente aumentando-os. Para se ter uma ideia dessas mudanças, pode-se comparar o tempo em que o jogo-do-bicho era o exemplo típico de “crime organizado” no Brasil com a atualidade, quando ele perdeu seu espaço para o narcotráfico. Ou as mudanças nas relações internacionais que cercavam a guerra da Coréia e a guerra do Vietnam, em comparação com as da guerra do Iraque. No mundo globalizado, os poderes locais se enfraquecem e surgem novos recursos que permitem espalhar a contravenção, a violência e a destruição por territórios geográficos e sociais muito mais amplos.
No plano político-institucional, nos deparamos com os limites da ação do Estado no controle da violência e do crime – as políticas de segurança pública. De modo geral, nesse campo, se busca a melhoria da rede de prevenção ao crime, do sistema prisional e da gestão da informação, da formação e da valorização dos policiais, etc. Contudo, a capacidade do Estado de investir na área de segurança é limitada e o retorno do investimento frequentemente fica abaixo das expectativas, gerando uma série de debates sobre a eficiência do estado e dos governos. Nesse nível, a ação de cada cidadão se faz principalmente através do voto e da participação em campanhas de pressão sobre o poder público.
O terceiro nível, o interpessoal e da vida social no âmbito local, é o que mais diretamente diz respeito ao tema das relações fraternas. Nesse nível da análise, nos deparamos com diversas formas de insegurança e de fatores geradores de violência. Roubos, assaltos, agressões sexuais, ocorridas na rua, em casa, nos locais de trabalho e estudo, etc. Quando perguntamos por que essas agressões acontecem, as causas mais lembradas são a pobreza, a impunidade, a própria maldade do coração humano.
Muitas vezes, uma inegável associação entre violência, insegurança e pobreza parece mascarar todos os demais aspectos do problema. Mas a maioria dos pobres não é criminosa ou violenta – pelo contrário, são as vítimas anônimas e mais comuns do crime e da violência. Por outro lado, demonstrações de violência, vindas de pessoas e famílias de classe média ou alta, nos chocam frequentemente. Nesse nível da análise, podemos compreender melhor a violência atual se a vemos como conseqüência de uma incapacidade que a sociedade tem de acolher a pessoa humana em todas as suas necessidades, materiais, psicológicas e espirituais.
A pobreza material representa, sem dúvida, o primeiro aspecto dessa falta de acolhida. Aquele que chega numa grande cidade, como imigrante ou recém-nascido, tem necessidade de uma série de recursos materiais para realizar-se como pessoa humana. Na falta dessas condições, aumenta a probabilidade de que recorra ao crime como alternativa e que responda violentamente a uma sociedade que lhe recebe com violência (o que não significa que o pobre irá se tornar bandido...).

No mundo tradicional, a pobreza também existia, mas não era realçada pela desigualdade em recursos e oportunidades que marca nossas cidades. Além disso, os laços sociais criavam uma rede de solidariedade e apoio mútuo que tendiam a minimizar seus efeitos. Em nossas periferias essa rede social se esgarça, tende a desaparecer. É nesse tecido social em desagregação, diante dessa pobreza desassistida e desesperançada, que a violência e o crime fermentam com mais vigor. Portanto, deve-se compreender que uma dada estrutura social, com suas consequências no plano das relações interpessoais, da afetividade e do desenvolvimento da pessoa, podem potencializar ou reduzir as consequências da pobreza.
Esse aspecto sociocultural e psicológico não é específico das populações pobres. Ele atravessa toda a sociedade. A desestruturação das famílias, a falta de orientação dos adolescentes, a solidão e o abandono de jovens e adultos, representam outra dimensão desse processo de não-acolhida da pessoa humana, e podem ter o mesmo efeito gerador de violência, insegurança e criminalidade. A esses fatores se acrescenta um terceiro nível, que podemos chamar de espiritual. Esse termo é frequentemente interpretado num sentido abstrato ou se referindo apenas a uma vida após a morte, como que sem influência sobre o cotidiano concreto das pessoas. Mas o nível espiritual é mais do que uma questão de vida após a morte. A espiritualidade diz respeito à busca do sentido da vida.
A questão espiritual – assim entendida – é a mais decisiva do plano individual. O homem se move procurando satisfazer suas necessidades, realizar seus desejos e escapar de seus sofrimentos. Mas é a resposta (geralmente inconsciente) à pergunta sobre o sentido da vida que lhe permite hierarquizar necessidades, explicitar desejos e colocar-se diante do sofrimento. Assim, também a opção pela violência ou pelo crime representa uma resposta específica à questão do sentido da vida. É aqui que a realidade material, as experiências pessoais e o contexto cultural fazem seu encontro vertiginoso com a liberdade humana, e determinam como se dará a dramaticidade de cada existência humana.
Um processo de construção da paz, de superação da situação de insegurança atual, implica na construção de relações fraternas capazes de gerar uma realidade de acolhida integral à pessoa humana – que a considere em seus aspectos materiais, psíquicos e espirituais PARTE I. Uma visão integral de pessoa
O combate às agruras e aos sofrimentos nascidos da pobreza é sem dúvida a grande missão à qual somos todos chamados na sociedade brasileira. Trata-se da face mais imediata do problema, a primeira a ser enfrentada. Mas não basta enfrentar a pobreza, sem oferecer uma resposta também às demais dimensões da pessoa humana, a psíquica e a espiritual. Por isso, a construção dessas relações fraternas não pode ser reduzida nem a um assistencialismo, nem a uma militância supostamente transformadora, mas que não responde a todos esses aspectos da pessoa.
Esse processo, na tradição da Igreja, costuma ser chamado de “construção de um povo”. A expressão “povo” costuma ser entendida como uma designação genérica para o conjunto de pessoas que habita um país, ou para designar uma unidade étnica específica. O cristianismo, contudo, trouxe em si outra imagem de povo: a unidade de pessoas que compartilham um mesmo sentido para a vida e que, em nome desse sentido único para a vida, se propõem a superar as divisões sociais, raciais ou nacionais que as separam. Assim, poderíamos terminar a nossa reflexão dizendo que construir a paz implica em construir (ou reconstruir) um povo, com as contradições que caracterizam toda empreitada humana, mas com uma certeza que nasce de já ter encontrado esse sentido para a vida.
Mas, esse pode parecer um discurso teórico e abstrato, se não nos voltarmos para aspectos concretos e práticos desse grande trabalho. Gostaria de enumerar alguns aspectos mais práticos disso que já dissemos anteriormente:
1) Compreender que cada pequena obra, que cada trabalho social, que cada ação solidária, faz parte desse processo de construção de um povo e de reafirmação – num mundo marcado pelo individualismo e pelo niilismo – de que a vida tem um sentido, e que esse sentido é solidário. Isso é particularmente importante numa sociedade fragmentada e particularizada, onde as ações pessoais freqüentemente perdem sua referência global.
2) Não descuidar do aspecto educativa de cada gesto. A educação não é apenas um processo de treinamento profissional, como muitas vezes pensamos, mas um processo de abertura para a realidade. Em cada gesto que fazemos verificamos, mesmo que inconscientemente, a força do sentido que damos a nossa vida. Essa verificação deve ser cada vez mais consciente e explicita, para gerar uma certeza de que se fez as opções certas, que a própria liberdade está engajada num caminho justo – isso é, num caminho que constrói a nossa felicidade.
3) Procurar trabalhar sempre em redes solidárias, onde as iniciativas não precisam – nem devem – estar submetidas a uma direção central, que acaba instrumentalizando-as num processo de luta pelo poder, mas devem estar sempre procurando se ajudar, compreender juntas o sentido de suas ações e do contexto que as cerca.
4) Valorizar, com uma postura realista e sem ingenuidade, no interior dessas redes, as iniciativas que ajudem a construir uma sociedade mais segura e menos violenta.
5) Uma preocupação especial deve ser dedicada à realidade carcerária. Deve-se compreender que a maior parte dos detentos não é formada pelos grandes senhores do tráfico, tão noticiados pela imprensa, mas é pobre e padece as maiores humilhações e sofrimentos em nossas prisões. É vital lutar para que as prisões deixem de ser “escolas do crime” e centro de aliciamento de novos criminosos. Isso não acontecerá, porém, aumentando o rigor do sistema e o sofrimento dos detentos, mas sim crinado – também aí – condições de uma verdadeira acolhida à pessoa humana.
6) Compreender os limites da justiça e a força do perdão e da esperança. Queremos justiça. Mas, se a justiça for bem aplicada, o máximo que parece poder garantir é que o criminoso não voltará mais a realizar o crime. Isso já é muito, mas ainda é pouco. Não resolve o vazio que está em nós. Aquele pedaço de humanidade, de sentido e de esperança, que nos foi arrancado quando tomamos consciência do crime continua ali faltando, clamando por alguma coisa mais, por uma outra justiça que transcenda nossos limites. Queremos uma outra justiça, que recupere o que foi perdido. Mas isso parece impossível... Só o perdão e a esperança podem nos trazer justiça, só eles podem – de alguma forma – recompor uma parte dessa humanidade desfigurada que nos resta depois da tragédia. É a lição que foi dada, por exemplo, por Massataka Ota, o pai do menino assassinado Ives Ota, que passou a dedicar-se a trabalhar com meninos carentes e – surpresa! – criminosos condenados como os que mataram seu filho. É bom lembrar que perdão não significa impunidade, mas sim que a justiça é praticada visando o bem de todos e não a vingança.

7) Por último, trabalhar conscientes de que essas coisas não podem ser vividas e transmitidas como idéias, elas dependem do encontro com experiências concretas, com pessoas que já tem a vida mudada a partir delas – daquilo que a Igreja chama de “testemunhas”. É o rosto dessas testemunhas, são as relações fraternas que nascem do encontro com elas, que permitem que essas palavras não se tornem moralistas ou abstratas.

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