Ilustração: Sergio Ricciuto Conte |
Marcelo Musa Cavallari
No livro Uma Era
Secular, o filósofo Charles Taylor identifica três sentidos da palavra “secular”.
O primeiro é o mais comum de separação entre Igreja e Estado consagrado na
maioria dos ordenamentos jurídicos em vigor. O segundo é aquele que contempla o
fato de que a frequência às igrejas e seus ritos é, hoje, largamente
minoritário. O catolicismo pode conviver com ambos, ainda que não sem danos. A
invenção do casamento civil, por exemplo, tirou a união entre o homem e a
mulher do lugar em que havia sido posta pelo livro do Gênesis e a entregou aos
cartórios. Foi só o primeiro passo para o desastre a que se assiste hoje. Os
católicos, porém, continuamos a acreditar que o casamento é a união
indissolúvel entre um homem e uma mulher. Quanto ao segundo sentido, a validade
dos sacramentos não depende de quórum. Não importa quanta gente vá à celebração
da eucaristia para que a presença real de Jesus no mundo continue.
Há, porém, um terceiro sentido de “secular”. “Esse se
concentraria nas condições de crença, ” escreve Taylor. “A mudança para a
secularidade nesse sentido consiste, entre outras coisas, num movimento de uma
sociedade em que a crença em Deus não era desafiada e, de fato, não era
problemática, para uma em que essa crença é uma opção entre outras. ” Taylor prossegue:
“Posso achar inconcebível abandonar minha fé, mas há outras pessoas cujo modo
de vida não posso desprezar como depravado, ou cego ou indigno, que não têm fé
(ao menos não em Deus, ou no transcendente). A crença em Deus não é mais
axiomática. Há alternativas. ”
Essa mudança ameaça o catolicismo por dentro. Quando a
crença em Deus passa a ser uma alternativa entre tantas disponíveis aos membros
da comunidade que habitamos, é porque essa crença passou a integrar um conjunto
logicamente superior que abarca essas alternativas. Se a crença em Deus não é
mais axiomática, isto é, se ela não serve mais de fundamento para tudo o que se
pensa. Algo tem que ocupar o posto de fundamento para explicar tudo, inclusive,
a partir de agora, a crença em Deus. Esse conjunto secular de alternativas de
que faz parte a crença em Deus é, para a cultura dominante hoje, o das várias dimensões
do ser humano. A crença em Deus seria uma das manifestações possíveis de uma
dimensão, digamos, espiritual.
Dessa forma, é possível alguém ser católico e acreditar
firmemente que sua alternativa é a melhor ou mesmo a única correta, evitando,
assim, o relativismo denunciado pelo papa Bento XVI. Ainda assim, esse católico
poderá estar na condição de achar que a sua é a única alternativa correta, mas
é uma alternativa, isto é, algo intrinsecamente humano, medido, portanto, pelos
mesmos critérios que as demais dimensões da vida humana. Uma vida plena seria
aquela vivida numa sociedade justa e honesta, mantida por um trabalho útil,
bem-remunerado e satisfatório, com saúde e equilíbrio em todos os papeis a que
se é chamado, com a crença em Deus coroando tudo isso. Ter-se-á perdido de vista, nessa situação, quanto
dista da vida neste mundo, por mais perfeita que ela seja, aquilo que a
confiança em Deus acarreta. Essa secularização da alternativa cristã tornou
opaca a transcendência, única aposta que importa. É quase inadmissível, para um
tipo de catolicismo que vai se tornando cada vez mais dominante, a fala de São
Paulo, para quem “o viver é Cristo e o morrer é lucro. ” Escrita há quase dois
mil anos em sua epístola aos Filipenses, a ideia ainda ecoava nos versos de
Santa Teresa de Ávila, no início da Idade Moderna: “Vivo sem viver em mim/e tão
alta vida espero/que morro porque não morro. ”
Jornal "O São Paulo", edição 3183, 24 a 30 de janeiro
de 2018.
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