Rafael Mahfoud
Marcoccia é professor do Centro Universitário FEI.
No último artigo, abordei como as concepções estadista e
liberal veem as funções da sociedade civil à luz de uma mesma antropologia
negativa. Agora, pretendo mostrar como a Igreja parte de outro ponto.
Os papas João Paulo
II e Bento XVI iniciaram um debate importante, ligando o tema das deficiências
do Estado e do mercado com um renovado entendimento antropológico do homem. Em Centesimus annus, João Paulo II afirma:
“O indivíduo hoje é, muitas vezes, sufocado entre dois polos representativos do
Estado e do mercado. Às vezes, parece que ele existe apenas como produtor e
consumidor de mercadorias, ou como objeto da administração do Estado. As pessoas
desapercebem o fato de que a vida em sociedade não tem nem o mercado nem o
Estado como seu propósito final, visto que a própria vida tem um valor único ao
qual tanto o Estado como o mercado devem servir” (n. 49).
Já em Deus caritas est,
Bento XVI diz que: “O Estado, que forneceria de tudo, absorvendo tudo em si
mesmo, se tornaria por fim uma mera burocracia, incapaz de garantir exatamente
aquilo de que a pessoa sofredora — na verdade, toda pessoa — precisa: ou seja,
interesse pessoal amoroso. Não precisamos de um Estado que regule e controle
tudo, mas de um Estado que, em harmonia com o princípio da subsidiariedade,
reconhece e apoia as iniciativas surgidas das diferentes forças sociais e
combina a espontaneidade com a aproximação dessas necessidades” (n. 28).
Partindo de uma antropologia que reafirma completamente a dignidade
humana, o filósofo Luigi Giussani ressalta que o que determina o homem são as
exigências fundamentais (desejo de bem, justiça, verdade) que guiam suas ações
- pessoais e sociais – e, portanto, estão na raiz de toda ação econômica,
social e política. “O desejo é como uma fagulha com a qual se acende o motor do
homem e então ele se põe a buscar o pão e a água, o trabalho, uma poltrona mais
cômoda e uma morada mais descente, interessa-se por saber como é que alguns têm
tanto e outros não têm nada. A partir daí, a pessoa se torna sujeito ativo e
verdadeiro da história” (O eu, o poder,
as obras. São Paulo: Cidade Nova, 2001, p. 167). São também essas exigências
fundamentais que fazem com que as pessoas se reúnam ao redor de ideais e formem
grupos sociais. “Eles encarnam as exigências, imaginando e criando estruturas
operacionais detalhadas e oportunas que são chamadas de ‘trabalhos’, ‘novas
formas de vida para o homem’, como as definiu João Paulo II” (Idem, p. 243).
É claro que esses grupos não são lugares idílicos e “puros”,
livres do erro ou do egoísmo humano. Mas eles são espaços para a redescoberta
das necessidades estruturais humanas, onde uma educação contínua ajuda a todos a
crescer, a alcançar uma percepção de si mesmo e da realidade, para educar o
próprio desejo. A reconciliação entre os interesses individuais e o bem comum
não ocorre por meio de coerção e repressão, como no modelo estatista, mas por
meio de contínua educação, a fim de experimentar a correspondência entre desejo
e realidade. E isso acontece em termos operativos, não dialéticos.
Assim, os interesses dos indivíduos podem sim ser aliados ao
bem comum; e é essa aliança o coração das ações políticas e econômicas que conduzem
a uma democracia real e a um mercado que não é sufocado por um governo com
atuação de cima para baixo.
A subsidiariedade, que parte de uma antropologia positiva e
de forças sociais, permite correções virtuosas ao liberalismo e ao estatismo. Assunto
para meu próximo artigo.
Jornal "O São Paulo", edição 3182, 17 a 23 de janeiro
de 2018.
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