Ilustração: Sergio Ricciuto Conte |
Não faz muito tempo, foi publicada nos jornais uma coluna de uma militante “pro-choice” com o sugestivo título “Deixe a menina transar em Paz”. Vou resumir alguns dos pontos principais: primeiro, a autora indica que a maioria dos brasileiros não aceita o aborto como método de controle da natalidade, mas, ao mesmo tempo, aceita a lei de 1940, que considera aceitável o aborto em caso do estupro. Ironicamente, a autora termina por reforçar o posicionamento da Igreja Católica, conforme vou passar a explicar.
Com razão, o texto indica que, se aceitamos que a vida começa na concepção, em qualquer ato de aborto mata-se o “inocente embrião” (palavras dela). Ainda segundo a autora, ao isentar os casos de estupro para o aborto, em 1940, “o Estado brasileiro já decidiu que um embrião não é vida”. Sem dúvida, a autora adota essa ideia (ela até não gosta da palavra “nascituro”, ainda que uso jurídico dessa seja multissecular) e diz que o embrião seria apenas “um punhado de células, ou um feto de menos de 12 semanas, sem sistema nervoso desenvolvido e nenhuma possibilidade de consciência”. Sobre esse arremedo de ciência já se discutiu em outros momentos.
O assunto me fez voltar à Encíclica Evangelium Vitae, de São João Paulo II (1995). Nela, o santo Papa fala das ameaças à vida em nossos tempos, em particular da prática do aborto e da ideologia que a sustenta. Reafirma a doutrina tradicional de que, uma vez que o embrião já é um membro da espécie humana, matá-lo é quase equivalente ao infanticídio. E no caso de estupro? Curiosamente, os documentos pontifícios não usam essa palavra, como se se fosse sensível demais para uma mensagem religiosa. O Catecismo menciona-o rapidamente, mas não em conexão com gravidez. Mas, há uma menção suave ao fato, pois esse é impossível de ser ignorado. Assim diz o parágrafo 11 da Encíclica: “Não faltam situações de particular pobreza, angústia e exasperação, onde... as violências sofridas, especialmente aquelas que investem as mulheres, tornam por vezes exigentes até ao heroísmo as opções de defesa e promoção da vida”. A opção pela vida, de qualquer forma, é reafirmada. Em tempos mais recentes, Francisco reitera algo semelhante no parágrafo 214 da Evangelii Gaudium : “Não é opção progressista pretender resolver os problemas eliminando uma vida humana. Mas é verdade, também, que temos feito pouco para acompanhar adequadamente as mulheres que estão em situações muito duras, nas quais o aborto lhes aparece como uma solução rápida para as suas profundas angústias, particularmente quando a vida que cresce nelas surgiu como resultado duma violência ou num contexto de extrema pobreza”. A preocupação pastoral é aí evidente. João Paulo II usa o termo “heroísmo” para falar da atitude subjetiva da gestante. No mesmo documento, há uma menção ao “jovem rico”, para ilustrar de que heroísmo se trata. Os dois papas concordam no mesmo ponto: a situação exige acolhimento. A gravidez indesejada, portanto, é motivo para o amor entre os que cercam a gestante, fazendo com que essa supere o medo, a solidão e a preocupação financeira. No caso extremo do estupro, pode-se até superar o trauma e a vergonha, e perceber que o nascituro é inocente no crime bárbaro que foi cometido. Assim, o heroísmo se torna algo mais próximo de nós – “o que é impossível para os homens é possível para Deus”.
Jornal "O São Paulo", edição 3162, 16 a 22 de agosto de 2017.
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