Ilustração Sergio Ricciuto Conte |
Cristina Casagrande é jornalista e mestre em Estudos Comparados de Literaturas na USP, com a dissertação "Em Boa Companhia - a amizade em O Senhor dos Anéis".
“O Senhor dos Anéis
obviamente é uma obra fundamentalmente religiosa e católica; inconscientemente
no início, mas conscientemente na revisão”, afirmou o autor J. R. R. Tolkien ao
padre Robert Murray, amigo da família. Tal declaração constantemente anima os teólogos
e filósofos cristãos. Mas, muitas vezes, a crítica coloca em xeque a qualidade
literária do autor, apesar de ele ter, categoricamente, rejeitado qualquer
alusão alegórica de sua obra.
Apesar de haver diversos tolkienistas famosos que fazem
primorosos estudos sobre a qualidade estética do autor, como Tom Shippey,
Verlyn Flieger e Dimitra Fimi e outros, muitos críticos ainda torcem o nariz
para o grande autor de literatura de fantasia. Uma das questões que suscitam
esse problema, certamente, é a popularidade de suas obras. Sabemos que O Senhor dos Anéis e O Hobbit são obras extremamente
populares, mesmo antes das produções cinematográficas de Peter Jackson. Para
essa discussão, no livro Mercado
Editorial Brasileiro, Sandra Reimão traz uma interessante distinção entre best-seller do ponto de vista
quantitativo e do qualitativo.
Os dois grandes romances publicados por Tolkien são, sem
dúvidas, literaturas de massa do ponto de vista quantitativo, mas do
qualitativo, divide opiniões. Reimão traz critérios propostos por pensadores
como Umberto Ecco e Muniz Sodré para a caracterização de uma literatura tida
como baixa: por exemplo, apresentar um herói super-homem ou ter um final feliz
imutável, em que tudo permanece onde estava. Os critérios são diversos, mas o
fato é que o romance tolkieniano não se encaixa em nenhum deles.
O que a crítica daqueles que rejeitam a literatura de
Tolkien me leva a pensar é que, talvez, o autor sofra – com o perdão da
analogia – o preconceito da garota bonita. A obra dele tem beleza, aquela que
atrai um grande público, não necessariamente a massa crítica intelectual de
humanas.
Para alguns, uma garota bonita não pode ser inteligente.
Talvez até possa, mas então que seja moralmente vazia. Tudo bem: que seja
bonita, inteligente e tenha uma moral impecável, mas nada de ser simpática com
muita gente. Assim, a obra tolkieniana desafia as leis da crítica mais sisuda:
a verdade é que a sua obra é extremamente sedutora para muitas pessoas e até
mesmo viciante para os mais apaixonados. Para agravar a contradição, é escrita
por alguém tão literariamente educado como Joyce ou Eliot – conforme diz
Gustavo Racy, em seu artigo “Tolkien e os críticos”.
Sua obra, além de atraente e escrita por uma mente
extremamente inventiva e culta, pode levar o leitor já iniciado – ou mais
interessando – a outras questões mais profundas, sobre o sentido de sua vida. Para
Tolkien, os contos de fadas trazem como característica a fantasia (o ato de subcriar um mundo, à semelhança de um
Criador), a recuperação (a retomada da visão de mundo a despeito do
racionalismo exacerbado), o escape (a possibilidade de desprender-se das
amarras do materialismo) e o consolo (o final feliz da condição humana, com
base na Ressurreição de Cristo).
Essas quatro características descritas pelo autor trazem
ares de novidade no desafio do autoconhecimento: não nega a imaginação para se
chegar à Verdade, ao contrário, percebe-se dependente dela nessa difícil tarefa.
Os textos tolkienianos trazem, enfim, o que Sócrates chama de reminiscência da
alma: nos leva a encontrar a nossa razão de ser primordial, despidos de nossos
vãos apegos, para assim, ganharmos asas em nossas almas.
Jornal "O São Paulo", edição 3152, 24 a 30 de maio
de 2017.
Vontade de ler essa dissertação inteira. Publica, Cristina, please!!!!
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