Ilustração: Sergio Ricciuto Conte |
Eduardo Rodrigues da Cruz é professor titular do Departamento de Ciências da Religião da PUC-SP. Tendo graus avançados em Física e Teologia, publicou extensamente sobre o relacionamento entre ciências naturais e fé Cristã.
Há pouco tempo a atriz Fernanda Torres publicou uma coluna
de jornal sobre o aborto (Folha de S. Paulo, 27/11/2015). Mas ao contrário do
que se poderia esperar, não adota a posição típica daqueles que defendem a
liberação do aborto, e reconhece a dramaticidade da situação da mulher, de seu
cônjuge, e do pequeno ser que luta pela vida.
Entretanto, ela ainda coloca a questão em termos de “um
embate sem solução entre ciência e religião”. Surge então a pergunta que motiva
a presente reflexão: será que há efetivamente um embate? A Igreja defende que,
desde o momento da concepção, a nova vida que se inicia é a de um ser humano,
diferente da dos pais que a acolheram. Será que isso recebe o respaldo da
ciência?
Bem, um novo desenvolvimento científico chamado "Evo-Devo”
sugere que sim. Trata-se da tradicional embriologia, agora vista sob uma
perspectiva evolutiva. Menciono agora um dos principais cientistas da área,
Sean B. Carroll, que tem um livro com versão em português chamado Infinitas formas de Grande Beleza (Jorge
Zahar Editor: 2006). Nele se mostra como alguns planos básicos e blocos de
construção (genes específicos) dão margem à fantástica diversidade da vida, e
como esses planos encontram-se já nos embriões. Para o autor, “a embriogênese é
um fenômeno magnífico. Em sapos, a jornada desde o zigoto até o girino leva
apenas alguns dias, e os principais eventos ocorrem numa escala de tempo de
algumas horas” (p.83).
E no caso do ser humano? O ritmo é muito lento, “são
necessárias três semanas para formar a região diferenciada da cabeça” (p. 85).
Nada parece acontecer nos primeiros momentos, o que fez alguns defensores da
liberação do aborto falarem que o embrião seria “um bando de células”. Mas o
que não é visível ao microscópio ótico fervilha em uma escala bem menor. Assim
que o espermatozoide se funde com o óvulo, um fantástico movimento começa a
ocorrer e que, se não houver acidentes de percurso, leva a um bebê bem chorão.
Portanto, qualquer divisão que se estabeleça, como zigoto, gástrula, feto,
criança, etc., ocorre apenas para fins de estudo—na natureza, o processo é
contínuo.
Isso pode ser confirmado a partir de outras considerações
evolutivas. Devido ao sucesso de nossa espécie, que leva ao bipedalismo e a
bebês de cabeça grande, o parto difícil indica que todo bebê nasce prematuro,
comparativamente a outras espécies. Com isso, temos a extrema dependência que
ele tem dos cuidados maternos, e a mobilidade começa apenas depois de muitos
meses de vida. O famoso “nove meses” tem um quê de arbitrário, um expediente da
natureza para que a mãe não morra durante o parto. Isso acentua a continuidade
do movimento a que aludimos anteriormente. A divisão que se estabelece no
direito, entre a criança já nascida, com uma série de direitos e um feto
tratado mais como objeto, reflete uma visão obsoleta de ciência. Do ponto de
vista daquilo que hoje se conhece, há que se atribuir os direitos desde a
criança já formada para trás, até o indefeso embrião.
Isso não quer dizer que a ciência “prove” o que a religião
já dizia há muito tempo. Elas apenas indicam que há evidências que favorecem a
afirmação de que desde a concepção até a criança nascida não há saltos
qualitativos, e que os vários momentos até os quais o aborto poderia ser
permitido são convenções humanas que estão ao sabor de opções ideológicas.
Portanto, dona Fernanda, não há aqui, de fato, nenhum embate entre ciência e
religião.
Jornal "O São Paulo", edição 3084, 13 a 19 de
janeiro de 2016.
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