Padre Léo Pessini
Toda vez que ocorre uma nova epidemia ou pandemia de
qualquer vírus novo, com muita facilidade a população entra em pânico, quando não
orientada responsavelmente pelo sistema público de saúde. Retornam ao nível consciente medos atávicos
de pestes que outrora dizimaram milhões de seres humanos. O livro clássico do historiador francês Jean
Delumeau História do medo no ocidente
1300-1800 (Companhia de Bolso, São Paulo, 2009), nos apresenta os três
medos clássicos da história antiga e medieval, são (1) o mar (onde estão os
monstros; (2) a escuridão, trevas (onde atuam os ladrões e assombrosos seres
noturnos) e (3) as pestes (que ceifavam impiedosamente milhares de vidas).
Estas três realidades não deixam ainda hoje de ser um perigo, mas em grande
parte o ser humano com o conhecimento técnico científico se aparelhou para se
proteger destes perigos. É provável que ainda o que mais assusta ainda hoje são
as novas formas de pestes, as diferentes pandemias. Quando surge em algum ponto
do planeta alguma nova epidemia desconhecida, o mundo fica em polvorosa, e
ressurgem os velhos medos atávicos de extinção da humanidade. É só lembrarmos o que ocorreu em relação a
AIDS a partir de 1981, quando foi identificado o vírus HIV, que já ceifou a
vida de mais de 30 milhões de seres humanos, sendo que temos em torno de 37
milhões de seres contaminados no mundo, dois terços dos quais na África
subsaariana. A tão prometida vacina para
esta pandemia para o ano 200 ainda não chegou praticamente duas décadas depois,
e o que hoje temos para combatê-la é tão somente o coquetel antirretroviral,
que não cura mas ajuda a pessoa a viver com a doença. Infelizmente são poucos
ainda os que tem acesso a esta medicação antirretroviral. No Brasil, temos em
torno de 250 mil soropositivos, sore os 670 mil contaminados que recebem esta
medicação do Ministério da Saúde gratuitamente. Na África o cenário é
simplesmente desolador, pois praticamente não existe medicação.
Mais recentemente tivemos na África Ocidental a epidemia do
Ebola (2014), que veio causou muitas perdas humanas e materiais. No Brasil, por ocasião do verão, volta sempre
o temor do retorno de epidemias de dengue, zika e chikingunya. Neste momento que redigimos este texto, o
Brasil, especialmente o Estado de São Paulo, passa por uma onda epidêmica de
Febre Amarela, com várias mortes comprovadas.
Neste mesmo momento, nos EUA, o que não acontecia há muito tempo, uma
epidemia gigantesca de febre amarela colocou em alerta e em crise o sistema de
saúde pública norte-americano, incapaz de socorrer a todos os vitimados pela
epidemia de febre amarela. Como vemos
estamos diante de uma questão de saúde pública de primeira grandeza em nível
global, para além dos limites geográficos de cada distinto país. Não existe
barreiras geográficas que impeçam a expansão do vírus. Este não precisa de
passaporte para entrar num outro país.
Este ano de 2018 marca o 100º aniversário da assim chamada
maior pandemia de gripe da história humana, que ficou conhecida como “gripe
espanhola”. Entre 50 e 100 milhões de pessoas morreram, aproximadamente 5% da
população mundial e cerca de meio bilhão de pessoas ficaram infectadas. Esta
pandemia fatal matou muito mais do que a Iª Guerra Mundial, que teria causado a
morte de 9,6 a 15 milhões de vítimas. Nos Estados Unidos, por exemplo, em
apenas um ano a expectativa média de vida caiu 12 anos, de acordo com
estatísticas oficiais do governo americano. As perdas de vidas mais numerosas,
foram de jovens adultos saudáveis, entre 20-40 anos, em vez de crianças e
idosos, que geralmente são sempre os alvos mais fáceis e vulneráveis.
Ao longo do século XX, muitos historiadores e cientistas realizaram
numerosos estudos e lançaram várias hipóteses a respeito de sua origem,
disseminação e consequências. Muita coisa foi cientificamente esclarecida, mas
nem tudo. Consequentemente, gerou-se muitos equívocos quanto a compreensão
desta pandemia.
E como teria chegado ao Brasil? Aqui, as estimativas são de
que 35 mil pessoas morreram, entre elas, o presidente reeleito para o 2o.
mandato, Rodrigues Alves, em janeiro de 1919. Não temos certeza, mas
especula-se que o vírus chegou em terras brasileiras pelo navio inglês Demerara,
que havia atracado em Recife e em Salvador em 1918. O grande fluxo migratório
que o Brasil recebia também é apontado como uma das causas do alastramento da
epidemia de gripe.
Precisamos tentar corrigir esses equívocos, compreender melhor
o que realmente aconteceu, aprender a prevenir e mitigar tais ameaças de saúde pública
no futuro. Seguindo o Dr. Richard Gunderman, professor de Medicina da
Universidade de Indiana (EUA), elencamos os 10 dos maiores equívocos
relacionados com esta pandemia, da qual se pensou que “exterminaria a
humanidade”:
1. A pandemia teve sua origem na Espanha. Ninguém mais acredita
que a chamada "gripe espanhola" seja originária da Espanha. A
pandemia provavelmente adquiriu nome por causa da I Guerra Mundial (1914-1918),
que estava em pleno andamento na época. Os principais países envolvidos na
guerra estavam empenhados em evitar incentivar seus inimigos, então os
relatórios sobre a extensão da gripe foram suprimidos na Alemanha, Áustria,
França, Reino Unido e EUA. Por outro lado, a Espanha que era um país neutro na
guerra, não tinha necessidade de manter a gripe sob sigilo. Isso criou a falsa
impressão de que a Espanha estava assolada pela pandemia. Na verdade, a origem
geográfica da gripe é debatida até hoje, embora hipóteses tenham sugerido o
Leste Asiático, a Europa e até mesmo no Kansas (EUA).
2. A pandemia foi o resultado da aparição de um
"super-vírus". A gripe de 1918 se espalhou rapidamente, matando 25
milhões de pessoas apenas nos primeiros seis meses. Isso levou a muita gente temer
o fim da humanidade. Alimentou-se a suposição de que a gripe era letal. No
entanto, estudos científicos recentes sugerem que o próprio vírus, embora mais
letal do que outras cepas, não era fundamentalmente diferente daqueles que
causaram epidemias em outros anos. Grande parte altíssima taxa de mortalidade
pode ser atribuída a aglomeração em campos militares e ambientes urbanos, bem
como uma má nutrição e saneamento, em função da guerra. A explicação é que
muitas das mortes foram decorrentes do desenvolvimento de pneumonias
bacterianas em pulmões já enfraquecidos pela gripe.
3. A 1ª. onda da pandemia foi a mais letal. Na verdade, a onda
inicial de mortes da pandemia no 1o. semestre de 1918 foi relativamente baixa.
A 2ª. onda, de outubro a dezembro de 1918, é que causou maior número de mortes.
A 3ª. onde, na primavera de 1919, foi mais letal que a 1ª, mas menos que a 2ª
onda. Os cientistas hoje afirmam que o aumento exponencial de mortes na 2a.
onda foi causado por condições favoráveis à disseminação deste vírus
mortal. As pessoas com casos leves ficaram em casa, e mais graves
foram encaminhadas a hospitais e acampamentos, aumentando assim transmissão de
uma forma mais letal do vírus.
4. O vírus matou a maioria das pessoas infectadas por ele. Na
verdade, a grande maioria das pessoas que contraíram a gripe de 1918
sobreviveram. As taxas de mortalidade nacional entre os infectados geralmente
não excederam 20%. No entanto, as taxas de mortalidade variaram entre os
diferentes grupos. Nos Estados Unidos, as mortes foram particularmente altas
entre as populações nativas americanas, talvez devido a menores taxas de
exposição a estirpes passadas da gripe. Em alguns casos, comunidades indígenas
inteiras foram dizimadas. Uma taxa de mortalidade de 20% excede amplamente uma
gripe típica, que mata menos de um por cento das pessoas infectadas.
5. Terapias existentes na época tiveram pouco impacto sobre a
pandemia. Não houve terapias antivirais específicas disponíveis durante a gripe
de 1918. Isso ainda é verdade hoje, onde a maioria dos cuidados médicos para a
gripe visa apoiar pacientes, em vez de curá-los. Existe uma hipótese sugerindo
que muitas mortes por gripe podem ser atribuídas à intoxicação por aspirina. As
autoridades sanitárias da época recomendaram grandes doses de aspirina de até
30 gramas por dia. Hoje, cerca de quatro gramas seriam considerados a dose
diária máxima segura. Grandes doses de aspirina podem causar muitos dos
sintomas da pandemia, incluindo o sangramento. Observa-se, no entanto, que as
taxas de mortalidade foram igualmente elevadas em alguns lugares do mundo onde
a aspirina não estava disponível. Então a pesquisa e o debate continuam.
6. A pandemia tornou-se a notícia mais importante e conhecida.
Funcionários da saúde pública, policiais e políticos tinham na época serias
razões para minimizar a gravidade da gripe de 1918, o que resultou em menos
cobertura na imprensa. Além do medo de que a divulgação pudesse encorajar
inimigos durante a guerra, eles queriam preservar a ordem pública e evitar o
pânico. No entanto, os funcionários responderam. No auge da pandemia, foram
instituídas quarentenas em muitas cidades, em algumas destas os serviços
públicos foram restringidos ao essencial, a polícia e corpo de bombeiros.
7. A pandemia mudou o curso da Primeira Guerra Mundial. É
improvável que a gripe tenha mudado o resultado da Primeira Guerra Mundial,
porque os combatentes de ambos os lados do campo de batalha foram igualmente
afetados. No entanto, não há dúvida de que a guerra influenciou profundamente o
curso da pandemia. Concentrar milhões de pessoas criou circunstâncias ideais
para o desenvolvimento de cepas mais agressivas do vírus e sua disseminação em
todo o mundo.
8. A imunização
generalizada acabou com a pandemia. A imunização contra a gripe como a
conhecemos hoje não foi praticada em 1918 e, portanto, não desempenhou nenhum
papel no fim da pandemia. A exposição a estirpes anteriores da gripe pode ter
oferecido alguma proteção. Por exemplo, soldados que haviam servido nas forças
armadas durante anos sofreram menores taxas de morte do que novos recrutas.
Além disso, o vírus em rápida mutação provavelmente evoluiu ao longo do tempo
em cepas menos letais. Isto é previsto por modelos de seleção natural. Como as
cepas altamente letais matam seu hospedeiro rapidamente, elas não podem se
espalhar tão facilmente quanto menos letais.
9. Os genes do vírus da gripe nunca foram sequenciados. Em
2005, os pesquisadores anunciaram que eles determinaram com sucesso a sequência
de genes do vírus da gripe de 1918. O vírus foi recuperado do corpo de uma
vítima de gripe enterrada no Estado do Alasca, bem como de amostras de soldados
americanos que adoeceram na época. Dois anos depois, verificou-se que os
macacos infectados com o vírus exibiam os sintomas observados durante a
pandemia. Estudos sugerem que os macacos morreram quando seus sistemas
imunológicos reagiram exageradamente ao vírus, uma chamada "tempestade de
citoquinas". Os cientistas agora acreditam que uma reação exagerada do
sistema imune contribuiu para altas taxas de mortalidade entre adultos, jovens
saudáveis em 1918.
10.
A pandemia de 1918 oferece poucas lições para 2018. As
epidemias de gripe grave tendem a ressurgir ciclicamente, após alguns anos ou
décadas. Os especialistas acreditam que a próxima é uma questão não de
"se", mas "quando" isto ocorrerá. Enquanto poucas pessoas
vivas podem recordar a grande pandemia de gripe de 1918, podemos continuar
aprendendo suas lições, que variam desde o valor do senso comum à lavagem das
mãos e às imunizações, até os potentes medicamentos antivirais de hoje. Hoje,
sabemos mais sobre como isolar e lidar com um grande número de doentes,
prescrevendo antibióticos, não disponíveis em 1918, para combater infecções
bacterianas secundárias. Talvez a melhor esperança resida na melhoria da
nutrição, saneamento e padrões de vida, que tornam os pacientes mais
resistentes à infecção.
Olhando para o futuro, prevê-se que continuaremos a
enfrentar epidemias de gripe com seus ataques anuais em relação ao ritmo da
vida humana. Oxalá, que tenhamos aprendido algumas lições a partir desta pandemia,
bem como, outras lições no enfrentamento da pandemia vírus HIV/AIDS (a partir
de 1981), e mais recentemente do combate do Ebola na África Ocidental, evitando-se
assim uma catástrofe mundial.
A recorrência inesperada de novas epidemias e pandemias
desconhecidas, sempre que surgem, coloca sempre o sistema de vigilância nacionais
e mundial via organização Mundial da Saúde e ministérios da Saúde, em
vigilância continua. A globalização não ocorre somente na área de produtos,
serviços e instrumentos intercambiáveis. Se a humanidade tivesse prestado
atenção antes, teria já percebido vivemos a época das doenças globalizadas desde
há muitos milênios, portanto, não tem muita novidade por aqui, a não ser o
aumento exponencial de sua letalidade e aumento exponencial de número de
vítimas, aqui sim provocadas pela própria ação do ser humano. O curioso e fantástico, é que já temos o
conhecimento científico necessário de como prevenir e combater, a grande
maioria dessas doenças endêmicas fatais. Mas situações de desigualdades e
iniquidades provocados pelos seres humanos, provocam mais vítimas que as
próprias doenças em determinadas circunstancias.
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