terça-feira, 20 de março de 2018

Um século da maior pandemia assassina da história: “a gripe espanhola” (1918-2018)


 Padre Léo Pessini

Toda vez que ocorre uma nova epidemia ou pandemia de qualquer vírus novo, com muita facilidade a população entra em pânico, quando não orientada responsavelmente pelo sistema público de saúde.  Retornam ao nível consciente medos atávicos de pestes que outrora dizimaram milhões de seres humanos.  O livro clássico do historiador francês Jean Delumeau História do medo no ocidente 1300-1800 (Companhia de Bolso, São Paulo, 2009), nos apresenta os três medos clássicos da história antiga e medieval, são (1) o mar (onde estão os monstros; (2) a escuridão, trevas (onde atuam os ladrões e assombrosos seres noturnos) e (3) as pestes (que ceifavam impiedosamente milhares de vidas). Estas três realidades não deixam ainda hoje de ser um perigo, mas em grande parte o ser humano com o conhecimento técnico científico se aparelhou para se proteger destes perigos. É provável que ainda o que mais assusta ainda hoje são as novas formas de pestes, as diferentes pandemias. Quando surge em algum ponto do planeta alguma nova epidemia desconhecida, o mundo fica em polvorosa, e ressurgem os velhos medos atávicos de extinção da humanidade.  É só lembrarmos o que ocorreu em relação a AIDS a partir de 1981, quando foi identificado o vírus HIV, que já ceifou a vida de mais de 30 milhões de seres humanos, sendo que temos em torno de 37 milhões de seres contaminados no mundo, dois terços dos quais na África subsaariana.  A tão prometida vacina para esta pandemia para o ano 200 ainda não chegou praticamente duas décadas depois, e o que hoje temos para combatê-la é tão somente o coquetel antirretroviral, que não cura mas ajuda a pessoa a viver com a doença. Infelizmente são poucos ainda os que tem acesso a esta medicação antirretroviral. No Brasil, temos em torno de 250 mil soropositivos, sore os 670 mil contaminados que recebem esta medicação do Ministério da Saúde gratuitamente. Na África o cenário é simplesmente desolador, pois praticamente não existe medicação.     
Mais recentemente tivemos na África Ocidental a epidemia do Ebola (2014), que veio causou muitas perdas humanas e materiais.  No Brasil, por ocasião do verão, volta sempre o temor do retorno de epidemias de dengue, zika e chikingunya.  Neste momento que redigimos este texto, o Brasil, especialmente o Estado de São Paulo, passa por uma onda epidêmica de Febre Amarela, com várias mortes comprovadas.  Neste mesmo momento, nos EUA, o que não acontecia há muito tempo, uma epidemia gigantesca de febre amarela colocou em alerta e em crise o sistema de saúde pública norte-americano, incapaz de socorrer a todos os vitimados pela epidemia de febre amarela.  Como vemos estamos diante de uma questão de saúde pública de primeira grandeza em nível global, para além dos limites geográficos de cada distinto país. Não existe barreiras geográficas que impeçam a expansão do vírus. Este não precisa de passaporte para entrar num outro país.
Este ano de 2018 marca o 100º aniversário da assim chamada maior pandemia de gripe da história humana, que ficou conhecida como “gripe espanhola”. Entre 50 e 100 milhões de pessoas morreram, aproximadamente 5% da população mundial e cerca de meio bilhão de pessoas ficaram infectadas. Esta pandemia fatal matou muito mais do que a Iª Guerra Mundial, que teria causado a morte de 9,6 a 15 milhões de vítimas. Nos Estados Unidos, por exemplo, em apenas um ano a expectativa média de vida caiu 12 anos, de acordo com estatísticas oficiais do governo americano. As perdas de vidas mais numerosas, foram de jovens adultos saudáveis, entre 20-40 anos, em vez de crianças e idosos, que geralmente são sempre os alvos mais fáceis e vulneráveis.
Ao longo do século XX, muitos historiadores e cientistas realizaram numerosos estudos e lançaram várias hipóteses a respeito de sua origem, disseminação e consequências. Muita coisa foi cientificamente esclarecida, mas nem tudo. Consequentemente, gerou-se muitos equívocos quanto a compreensão desta pandemia.
E como teria chegado ao Brasil? Aqui, as estimativas são de que 35 mil pessoas morreram, entre elas, o presidente reeleito para o 2o. mandato, Rodrigues Alves, em janeiro de 1919. Não temos certeza, mas especula-se que o vírus chegou em terras brasileiras pelo navio inglês Demerara, que havia atracado em Recife e em Salvador em 1918. O grande fluxo migratório que o Brasil recebia também é apontado como uma das causas do alastramento da epidemia de gripe.
Precisamos tentar corrigir esses equívocos, compreender melhor o que realmente aconteceu, aprender a prevenir e mitigar tais ameaças de saúde pública no futuro. Seguindo o Dr. Richard Gunderman, professor de Medicina da Universidade de Indiana (EUA), elencamos os 10 dos maiores equívocos relacionados com esta pandemia, da qual se pensou que “exterminaria a humanidade”:
1.  A pandemia teve sua origem na Espanha. Ninguém mais acredita que a chamada "gripe espanhola" seja originária da Espanha. A pandemia provavelmente adquiriu nome por causa da I Guerra Mundial (1914-1918), que estava em pleno andamento na época. Os principais países envolvidos na guerra estavam empenhados em evitar incentivar seus inimigos, então os relatórios sobre a extensão da gripe foram suprimidos na Alemanha, Áustria, França, Reino Unido e EUA. Por outro lado, a Espanha que era um país neutro na guerra, não tinha necessidade de manter a gripe sob sigilo. Isso criou a falsa impressão de que a Espanha estava assolada pela pandemia. Na verdade, a origem geográfica da gripe é debatida até hoje, embora hipóteses tenham sugerido o Leste Asiático, a Europa e até mesmo no Kansas (EUA).
2.  A pandemia foi o resultado da aparição de um "super-vírus". A gripe de 1918 se espalhou rapidamente, matando 25 milhões de pessoas apenas nos primeiros seis meses. Isso levou a muita gente temer o fim da humanidade. Alimentou-se a suposição de que a gripe era letal. No entanto, estudos científicos recentes sugerem que o próprio vírus, embora mais letal do que outras cepas, não era fundamentalmente diferente daqueles que causaram epidemias em outros anos. Grande parte altíssima taxa de mortalidade pode ser atribuída a aglomeração em campos militares e ambientes urbanos, bem como uma má nutrição e saneamento, em função da guerra. A explicação é que muitas das mortes foram decorrentes do desenvolvimento de pneumonias bacterianas em pulmões já enfraquecidos pela gripe.
3.     A 1ª. onda da pandemia foi a mais letal. Na verdade, a onda inicial de mortes da pandemia no 1o. semestre de 1918 foi relativamente baixa. A 2ª. onda, de outubro a dezembro de 1918, é que causou maior número de mortes. A 3ª. onde, na primavera de 1919, foi mais letal que a 1ª, mas menos que a 2ª onda. Os cientistas hoje afirmam que o aumento exponencial de mortes na 2a. onda foi causado por condições favoráveis à disseminação deste vírus mortal.   As pessoas com casos leves ficaram em casa, e mais graves foram encaminhadas a hospitais e acampamentos, aumentando assim transmissão de uma forma mais letal do vírus.
4.  O vírus matou a maioria das pessoas infectadas por ele. Na verdade, a grande maioria das pessoas que contraíram a gripe de 1918 sobreviveram. As taxas de mortalidade nacional entre os infectados geralmente não excederam 20%. No entanto, as taxas de mortalidade variaram entre os diferentes grupos. Nos Estados Unidos, as mortes foram particularmente altas entre as populações nativas americanas, talvez devido a menores taxas de exposição a estirpes passadas da gripe. Em alguns casos, comunidades indígenas inteiras foram dizimadas. Uma taxa de mortalidade de 20% excede amplamente uma gripe típica, que mata menos de um por cento das pessoas infectadas.
5.    Terapias existentes na época tiveram pouco impacto sobre a pandemia. Não houve terapias antivirais específicas disponíveis durante a gripe de 1918. Isso ainda é verdade hoje, onde a maioria dos cuidados médicos para a gripe visa apoiar pacientes, em vez de curá-los. Existe uma hipótese sugerindo que muitas mortes por gripe podem ser atribuídas à intoxicação por aspirina. As autoridades sanitárias da época recomendaram grandes doses de aspirina de até 30 gramas por dia. Hoje, cerca de quatro gramas seriam considerados a dose diária máxima segura. Grandes doses de aspirina podem causar muitos dos sintomas da pandemia, incluindo o sangramento. Observa-se, no entanto, que as taxas de mortalidade foram igualmente elevadas em alguns lugares do mundo onde a aspirina não estava disponível. Então a pesquisa e o debate continuam.
6.     A pandemia tornou-se a notícia mais importante e conhecida. Funcionários da saúde pública, policiais e políticos tinham na época serias razões para minimizar a gravidade da gripe de 1918, o que resultou em menos cobertura na imprensa. Além do medo de que a divulgação pudesse encorajar inimigos durante a guerra, eles queriam preservar a ordem pública e evitar o pânico. No entanto, os funcionários responderam. No auge da pandemia, foram instituídas quarentenas em muitas cidades, em algumas destas os serviços públicos foram restringidos ao essencial, a polícia e corpo de bombeiros.
7.  A pandemia mudou o curso da Primeira Guerra Mundial. É improvável que a gripe tenha mudado o resultado da Primeira Guerra Mundial, porque os combatentes de ambos os lados do campo de batalha foram igualmente afetados. No entanto, não há dúvida de que a guerra influenciou profundamente o curso da pandemia. Concentrar milhões de pessoas criou circunstâncias ideais para o desenvolvimento de cepas mais agressivas do vírus e sua disseminação em todo o mundo.
8.    A imunização generalizada acabou com a pandemia. A imunização contra a gripe como a conhecemos hoje não foi praticada em 1918 e, portanto, não desempenhou nenhum papel no fim da pandemia. A exposição a estirpes anteriores da gripe pode ter oferecido alguma proteção. Por exemplo, soldados que haviam servido nas forças armadas durante anos sofreram menores taxas de morte do que novos recrutas. Além disso, o vírus em rápida mutação provavelmente evoluiu ao longo do tempo em cepas menos letais. Isto é previsto por modelos de seleção natural. Como as cepas altamente letais matam seu hospedeiro rapidamente, elas não podem se espalhar tão facilmente quanto menos letais.
9.     Os genes do vírus da gripe nunca foram sequenciados. Em 2005, os pesquisadores anunciaram que eles determinaram com sucesso a sequência de genes do vírus da gripe de 1918. O vírus foi recuperado do corpo de uma vítima de gripe enterrada no Estado do Alasca, bem como de amostras de soldados americanos que adoeceram na época. Dois anos depois, verificou-se que os macacos infectados com o vírus exibiam os sintomas observados durante a pandemia. Estudos sugerem que os macacos morreram quando seus sistemas imunológicos reagiram exageradamente ao vírus, uma chamada "tempestade de citoquinas". Os cientistas agora acreditam que uma reação exagerada do sistema imune contribuiu para altas taxas de mortalidade entre adultos, jovens saudáveis ​​em 1918. 
10.   A pandemia de 1918 oferece poucas lições para 2018. As epidemias de gripe grave tendem a ressurgir ciclicamente, após alguns anos ou décadas. Os especialistas acreditam que a próxima é uma questão não de "se", mas "quando" isto ocorrerá. Enquanto poucas pessoas vivas podem recordar a grande pandemia de gripe de 1918, podemos continuar aprendendo suas lições, que variam desde o valor do senso comum à lavagem das mãos e às imunizações, até os potentes medicamentos antivirais de hoje. Hoje, sabemos mais sobre como isolar e lidar com um grande número de doentes, prescrevendo antibióticos, não disponíveis em 1918, para combater infecções bacterianas secundárias. Talvez a melhor esperança resida na melhoria da nutrição, saneamento e padrões de vida, que tornam os pacientes mais resistentes à infecção.
Olhando para o futuro, prevê-se que continuaremos a enfrentar epidemias de gripe com seus ataques anuais em relação ao ritmo da vida humana. Oxalá, que tenhamos aprendido algumas lições a partir desta pandemia, bem como, outras lições no enfrentamento da pandemia vírus HIV/AIDS (a partir de 1981), e mais recentemente do combate do Ebola na África Ocidental, evitando-se assim uma catástrofe mundial.
A recorrência inesperada de novas epidemias e pandemias desconhecidas, sempre que surgem, coloca sempre o sistema de vigilância nacionais e mundial via organização Mundial da Saúde e ministérios da Saúde, em vigilância continua. A globalização não ocorre somente na área de produtos, serviços e instrumentos intercambiáveis. Se a humanidade tivesse prestado atenção antes, teria já percebido vivemos a época das doenças globalizadas desde há muitos milênios, portanto, não tem muita novidade por aqui, a não ser o aumento exponencial de sua letalidade e aumento exponencial de número de vítimas, aqui sim provocadas pela própria ação do ser humano.  O curioso e fantástico, é que já temos o conhecimento científico necessário de como prevenir e combater, a grande maioria dessas doenças endêmicas fatais. Mas situações de desigualdades e iniquidades provocados pelos seres humanos, provocam mais vítimas que as próprias doenças em determinadas circunstancias.

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