Ilustração: Sergio Ricciuto Conte |
Daniela Jorge Milani é mestre e
doutoranda em Filosofia do Direito na PUC-SP e advogada em São Paulo.
Estado laico não é estado antirreligioso ou ateu, não é hostil
à religião ou censor de práticas religiosas em espaços públicos, não seleciona
entre argumentos que podem e não podem ser debatidos publicamente, não exclui,
não ergue muros!
São muitos os equívocos na compreensão deste instituto
político-jurídico.
Primeiro, cabe dizer que não foi Cristo ou a Igreja que deu
origem a um Estado fundido com a religião. Na verdade, desde a Antiguidade clássica
era a religião que legitimava o poder familiar e civil. O poder temporal
decorria do poder religioso. Não havia separação.
No Egito o Faraó era considerado o próprio Deus, portanto a
obediência lhe era devida nesta condição. Nas famílias e tribos da Grécia e
Roma antigas os primogênitos e herdeiros das fórmulas religiosas sagradasé que se
tornavam seus chefes. Cidades eram fundadas a partir de um ritual religioso.
Significa dizer que não havia divisão entre poder espiritual e civil, o poder
era uno.
Jesus de Nazaré foi subversivo nessa questão, pois ao dizer:
“A César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, retira do imperador parte
de seu poder. Foi uma completa mudança de paradigma.
A Idade Média se caracterizou pela presença da Igreja na
sociedade, tendo o Papa como representante de Deus na terra. Porém, a Igreja
também sofria com esta situação, pois o ideal de submissão do poder temporal ao
espiritual se transformou em ingerência do poder do império sobre questões
internas da Igreja, reis nomeando e destituindo bispos e papas conforme
interesses políticos. Evidente que isto gerou enormes abusos. Viu-se também o
fenômeno do cesaropapismo, em que reis
pretendiam anexar a seu poder civil o poder espiritual com o qual Cristo havia
investido sua Igreja, pretendendo ser eles próprios os representantes de Deus
na terra.
O início da Igreja no Brasil sofreu as mesmas interferências
indevidas. O Estado era católico, confessional, isto é, a Igreja era
completamente submetida à Coroa Portuguesa. Não havia autonomia dos bispos e
padres. Diversos direitos eram restringidos a cidadãos não católicos.
Ao contrário do que se possa imaginar, a separação entre os
poderes temporal e espiritual é totalmente aceito pela Igreja.
A laicidade do Estado garante não apenas a autonomia das
esferas civil e religiosa, mas a igualdade de direitos entre os cidadãos independente
de sua crença. Não significa, todavia, hostilidade em relação à religião ou supressão
do âmbito público e da política de manifestações religiosas, da expressão dos cidadãos
religiosos e das argumentações motivadas por crença em Deus. Esta seria uma
visão ideológica de laicidade, parcial, , não neutra.
O verdadeiro Estado laico reconhece a liberdade de crença e
não crença, acolhe e congrega, favorece o diálogo e a cooperação, faz parcerias
em prol do bem comum, não nega acesso ao ambiente público e político por
motivos religiosos a qualquer cidadão. Afinal a religião está presente com
força na pós-modernidade, havendo quem fale em pós-secularização, isto é, na
persistência da religiosidade e da fé, não obstante a promessa de libertação
racionalista do Iluminismo e do cientificismo.
A diferenciação é imprescindível para não nos tornarmos um
país laicista, excludente, que apenas tolera a religião e vê o cidadão
religioso como alguém de menor importância e, em seu extremo, chega a proibi-lo
de utilizar símbolos de sua religião em escolas, empresas e repartições públicas,
como tem ocorrido na França.
Jornal "O São Paulo", edição 3157, 28 de junho a 4
de julho de 2017.
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