Ilustração: Sergio Ricciuto Conte |
Francisco Borba Ribeiro Neto,
coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.
coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.
O Jubileu Extraordinário da Misericórdia, proclamado pelo
Papa Francisco, nos convida à conversão a uma mentalidade que é exatamente
oposta à mentalidade individualista e calculista de nossos tempos. Na tradição
cristã, o trabalho cultural para construir esta nova mentalidade começa pelo
arrependimento e a prática das obras de misericórdia, que correspondem ao ir
até as periferias da existência, como diz o Papa.
Talvez o termo arrependimento pareça muito duro para nossos
interlocutores. Mas todos nós – e neste tempo talvez até mais do que antes –
sentimos a necessidade de nos conhecermos, entender quem somos, olhar de frente
e sem culpa nossas frustrações e nossos fracassos.
A primeira e mais evidente “libertação do pecado” é poder
reconhecer nossos limites e nossos erros sabendo que eles não serão obstáculo
para nos sentirmos amados. Na sociedade de hoje, para sermos aceitos e nos
sentirmos estimados, temos a obrigação de aparentar uma perfeição e uma
adequação que nos oprime. O chefe tem que aparentar poder e segurança, o
subalterno tem que ser muito eficiente, os jovens têm que parecer legais e
liberados. Até os enamorados, os pais e os filhos se sentem pressionados pelas
expectativas uns dos outros.
Só o amor misericordioso, gratuito e ilimitado de Deus pode
nos dar a liberdade de sermos nós mesmos, de nos descobrirmos acolhidos sendo o
que somos. Da gratidão por esse amor nasce o verdadeiro arrependimento.
Trata-se de um “conhece a ti mesmo” que não é socrático, mas cristão, pois
nasce do amor.
Uma cultura da misericórdia implica nesta sabedoria que
reconhece o próprio pecado porque conhece o amor de Deus. A sabedoria de quem é
capaz de discernir seus erros e os dos outros, mas reconhece que é o amor e não
o erro que dará a última palavra sobre nosso destino – e prefere a misericórdia
à severidade, como lembrou o Papa Francisco na Misericordiae Vultus.
O exemplo de Francisco ilustra o quanto nós e o mundo
ansiamos por isso. A resposta a este anseio implica num discernimento, que não
pode ser desculpa para a condenação do outro, mas traz uma luz verdadeira à
questão de gênero, ao tráfico de drogas, aos casais em crise, ao combate à
pobreza e a tantas outras situações de nossa sociedade.
Esta sabedoria não será assimilada por discursos. Nosso
gesto da acolhida, que é o verdadeiro início de qualquer obra de misericórdia,
é fundamental não só para que o mundo reconheça a gratuidade do amor, mas
também para que reconheçamos em nós mesmos a dinâmica de amor acontecendo.
Nas décadas de 1960 e 1970, a Igreja passou por uma
“revolução cultural” em relação ás obras de misericórdia. Foi a época da
crítica ao assistencialismo, da percepção que a missão “não era dar o peixe,
mas ensinar a pescar”, que a dimensão política da caridade implica numa
transformação das estruturas.
No contexto atual, em que se reconhece claramente as
obrigações sociais do Estado, mas no qual são evidentes seus limites para realizá-las,
a reflexão cultural sobre a misericórdia implica em repensar com que luz o amor
cristão e a experiência das obras de misericórdia pode iluminar as políticas
públicas, a ação do Terceiro Setor e a construção de uma sociedade mais justa.
A misericórdia implica numa mudança de mentalidade que
atinge todas as dimensões da vida pessoal e social. Sem esta mudança, a
mensagem cristã corre o risco de se perder no pietismo e no intimismo, deixando
de ser força de construção de uma nova vida para todos nós.
Jornal "O São Paulo", edição 3081, 10 a 16 de
dezembro de 2015.
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