segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

A cultura da misericórdia

Ilustração: Sergio Ricciuto Conte
Francisco Borba Ribeiro Neto, 
coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

O Jubileu Extraordinário da Misericórdia, proclamado pelo Papa Francisco, nos convida à conversão a uma mentalidade que é exatamente oposta à mentalidade individualista e calculista de nossos tempos. Na tradição cristã, o trabalho cultural para construir esta nova mentalidade começa pelo arrependimento e a prática das obras de misericórdia, que correspondem ao ir até as periferias da existência, como diz o Papa.
Talvez o termo arrependimento pareça muito duro para nossos interlocutores. Mas todos nós – e neste tempo talvez até mais do que antes – sentimos a necessidade de nos conhecermos, entender quem somos, olhar de frente e sem culpa nossas frustrações e nossos fracassos.
A primeira e mais evidente “libertação do pecado” é poder reconhecer nossos limites e nossos erros sabendo que eles não serão obstáculo para nos sentirmos amados. Na sociedade de hoje, para sermos aceitos e nos sentirmos estimados, temos a obrigação de aparentar uma perfeição e uma adequação que nos oprime. O chefe tem que aparentar poder e segurança, o subalterno tem que ser muito eficiente, os jovens têm que parecer legais e liberados. Até os enamorados, os pais e os filhos se sentem pressionados pelas expectativas uns dos outros.
Só o amor misericordioso, gratuito e ilimitado de Deus pode nos dar a liberdade de sermos nós mesmos, de nos descobrirmos acolhidos sendo o que somos. Da gratidão por esse amor nasce o verdadeiro arrependimento. Trata-se de um “conhece a ti mesmo” que não é socrático, mas cristão, pois nasce do amor.
Uma cultura da misericórdia implica nesta sabedoria que reconhece o próprio pecado porque conhece o amor de Deus. A sabedoria de quem é capaz de discernir seus erros e os dos outros, mas reconhece que é o amor e não o erro que dará a última palavra sobre nosso destino – e prefere a misericórdia à severidade, como lembrou o Papa Francisco na Misericordiae Vultus.
O exemplo de Francisco ilustra o quanto nós e o mundo ansiamos por isso. A resposta a este anseio implica num discernimento, que não pode ser desculpa para a condenação do outro, mas traz uma luz verdadeira à questão de gênero, ao tráfico de drogas, aos casais em crise, ao combate à pobreza e a tantas outras situações de nossa sociedade.
Esta sabedoria não será assimilada por discursos. Nosso gesto da acolhida, que é o verdadeiro início de qualquer obra de misericórdia, é fundamental não só para que o mundo reconheça a gratuidade do amor, mas também para que reconheçamos em nós mesmos a dinâmica de amor acontecendo.
Nas décadas de 1960 e 1970, a Igreja passou por uma “revolução cultural” em relação ás obras de misericórdia. Foi a época da crítica ao assistencialismo, da percepção que a missão “não era dar o peixe, mas ensinar a pescar”, que a dimensão política da caridade implica numa transformação das estruturas.
No contexto atual, em que se reconhece claramente as obrigações sociais do Estado, mas no qual são evidentes seus limites para realizá-las, a reflexão cultural sobre a misericórdia implica em repensar com que luz o amor cristão e a experiência das obras de misericórdia pode iluminar as políticas públicas, a ação do Terceiro Setor e a construção de uma sociedade mais justa.
A misericórdia implica numa mudança de mentalidade que atinge todas as dimensões da vida pessoal e social. Sem esta mudança, a mensagem cristã corre o risco de se perder no pietismo e no intimismo, deixando de ser força de construção de uma nova vida para todos nós.
Jornal "O São Paulo", edição 3081, 10 a 16 de dezembro de 2015.

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